Mario Volpi é uma das maiores referências no tema infância. Mestre em Políticas Sociais e membro do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, ele atuou na mobilização e atuação para aprovar o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 30 anos.
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Volpi é atualmente coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes do UNICEF no Brasil. Confira a entrevista que ele concedeu para a NSC.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, chega aos 30 anos. Qual o significado desta conquista para as crianças brasileiras?
Trata-se de uma mudança fundamental na forma como a família, a sociedade e o Estado devem olhar a criança e o adolescente. No antigo “Código de Menores” a atenção aos “menores” só acontecia se eles estivessem numa situação irregular: abandonados, órfãos, vivendo nas ruas, praticando delitos. Para os mais pobres aplicavam-se medidas punitivas e de recolhimento às instituições. Além disso, as crianças eram vistas quase como objeto do interesse dos adultos.
O Estatuto rompe com esta visão?
Sim, o Estatuto supera a ideia de crianças e adolescentes como incapazes e passa a tratá-las como sujeitos de direitos e que vivem uma fase especial de desenvolvimento. Por isso, a infância passa a ser tratada como prioridade absoluta. Com o Estatuto acaba a divisão de duas categorias: “os menores” e as crianças e adolescentes. Todos e todas são crianças e adolescentes com os mesmos direitos.
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Olhando para o ECA e observando as políticas implantadas: o que você acredita ter sido o maior avanço?
Houve uma redução histórica da mortalidade infantil, caindo de 47,1 mortes de crianças antes de completar um ano de idade para cada mil que nasciam vivas, para 13,4 por mil, entre 1990 e 2017. Em 1990, a idade de educação obrigatória era de 7 a 14 anos, mas 20% das crianças nesta idade estava fora da escola; em 2018, mesmo tendo sido estendida a idade de educação obrigatória para 4 a 17 anos, diminuímos para 4,2% das crianças e adolescentes de 4 a 17 anos que estão fora da escola. Outro exemplo que considero importante é que, entre 1992 e 2015, o Brasil evitou que 5,7 milhões de meninas e meninos de 5 a 17 anos estivessem em situação de trabalho infantil.
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Ainda nem integralmente aplicado pelo Estado brasileiro, existe quem defenda alterações no ECA. O principal argumento é que os tempos e a sociedade mudaram e, por isso, legislações precisam ser atualizadas. Como fazer isso sem o risco de abrir mão de direitos já conquistados?
Existem mudanças importantes. É preciso incluir na lei todo um conteúdo relacionado à internet, o que implica tanto na proteção da criança para fazer o uso seguro desta tecnologia de comunicação e informação, quanto assegurar o acesso gratuito. Neste momento da pandemia ficou muito evidente que não acessar a internet fará com que as vulnerabilidades presentes na sociedade em função da pobreza, renda, escolaridade, acesso a bens e serviços vão se agravar e aumentar ainda mais as desigualdades. Se as alterações na lei forem para ampliar direitos teremos crianças e adolescentes mais protegidos. Mas a sociedade não pode aceitar a perda de direitos, pois seria um retrocesso absurdo.
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As medidas socioeducativas sempre foram pontos polêmicos entre os que pedem mais medidas de internação e os que entendem que o excesso altera o espírito do ECA. Como avaliar isso?
O Estatuto definiu um sistema socioeducativo que quando aplicado integralmente é muito eficiente para assegurar que os adolescentes que praticam atos infracionais voltem a conviver na sociedade sem praticar delito. Mas tanto o governo federal, quanto os governos estaduais e municipais levaram muito tempo para adaptar as instituições para o atendimento. Isso faz com que se tenha num mesmo estado ações exemplares e bem estruturadas em algumas unidades, mas outras que reproduzem o sistema carcerário dos adultos. O problema não está no Estatuto, mas naqueles que não cumprem a lei de forma adequada.
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Possivelmente este seja um dos momentos em que o ECA precise de maior atenção: desemprego nas famílias, pandemia do coronavírus, ameaça aos valores conquistados pelo cidadão. O que é preciso fazer para que o ECA continue como referência sobre as conquistas?
Assim como a falta de democracia exige mais democracia, a falta do cumprimento dos direitos exige mais direitos. É preciso reafirmar que uma sociedade só se desenvolve de maneira sustentável se conseguir proteger os mais vulneráveis e criar oportunidades para todos. Os países bem-sucedidos criaram leis para proteger a infância, direitos para os trabalhadores, sistemas de saúde, educação e proteção social, os quais são mantidos até hoje.
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Não existe nenhuma razão aceitável para o Brasil continuar matando mais de 10 mil adolescentes pobres e negros todo ano. Não tem justificativa para que crianças continuem sendo vítimas dos maus-tratos, da exploração sexual, de violência física ou psicológica. O país do futuro só existe se os investimentos necessários para garantir o pleno desenvolvimento da infância forem feitos agora, no presente.
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