Aos 76 anos, o catarinense Murilo Sebastião Ramos Krieger é um dos principais nomes da igreja católica no Brasil. O garoto nascido em Brusque dedicou mais de cinco décadas à vida religiosa. Há nove anos lidera a arquidiocese de Salvador, e agora prepara-se para voltar ao solo catarinense.

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Por e-mail, dom Murilo Krieger fala sobre a missão e a honra de ser o primaz da igreja no Brasil, sobre a praga das fake news, do papel da igreja no momento que atravessamos e outros assuntos. Confira na entrevista a seguir:

Em 2005, o senhor estava à frente da arquidiocese de Florianópolis e o papa era João Paulo II, o qual foi substituído por Bento XVI, e agora o deixa o cargo de Primaz da Igreja Católica no Brasil no pontificado de Francisco. Para você, qual é a maior inspiração de cada um deles para o mundo católico?

A história mostra que cada papa tem características especiais, pois cada um tem passado diferente, formação própria, envolvimento particular com o mundo em que se formou e viveu. João Paulo II sempre deixou transparecer os efeitos do domínio comunista no país dele (Polônia), durante várias décadas da vida. Bento XVI viveu o tempo em que o nazismo de Hitler foi dominando a Alemanha e, num passo seguinte, querendo dominar o mundo, deu origem à Segunda Guerra Mundial. O Papa Francisco conheceu os horrores da convulsão interna vivida pela Argentina, num total desrespeito aos direitos fundamentais dos cidadãos.

Como resposta aos desafios enfrentados em seu pontificado, S. João Paulo II insistiu muito na necessidade de buscarmos a santidade, que consiste em se procurar fazer a vontade de Deus. Papa Bento XVI insistiu muito na necessidade de colocarmos Deus no centro de nossa vida, não nos deixando levar pelo relativismo e consumismo. Já o Papa Francisco tem um tema recorrente: a misericórdia de Deus. Segundo ele, a consciência dessa misericórdia leva o ser humano a voltar-se mais para Ele e a respeitar a “Casa Comum” – isto é, nossa mãe Terra, tão dilapidada e desrespeitada pelos seus filhos.

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O senhor atuou como mediador no encerramento de greves dos policiais baianos, de professores e de rodoviários. Esta postura de uma igreja mais presente nas lutas dos trabalhadores trouxe-lhe mais aplausos ou críticas?

Se houve críticas, não chegaram a mim. O que senti foi muita gratidão pelo papel de intermediador. Afinal, o bispo deve ser uma ponte entre pessoas e grupos que não se entendem, mas que têm boa vontade. Com a greve dos policiais, por exemplo, o número de assassinatos e roubos aumentou de forma preocupante aqui na Bahia. Conseguir que os dois lados se ouvissem, se respeitassem e buscassem o entendimento só trouxe benefícios para a sociedade. Recebi, depois, homenagens tanto do governo da Bahia quanto dos policiais: tanto pelo que falei, quanto por ter dado oportunidade aos dois lados de se expressarem e de ouvirem a outra parte.

O senhor é um homem da comunicação, inclusive gosta de falar sobre o hábito cultivado na infância pelas mãos de seu pai de ler jornais. Parece ter se adaptado bem às tecnologias: grava vídeos, faz podcasts e tem programas na televisão e no rádio. Todos nós, no entanto, temos que conviver com as fake news, as quais de acordo com o Papa Francisco estão se tornando cada vez mais “sofisticadas”. Como os católicos que usam redes sociais podem não ser semeadores das notícias falsas, às vezes tão destrutivas?

O grande problema das fake news é que uma meia-verdade (se é que isso possa existir) é pior do que a mentira. A mentira mostra logo o seu rosto, na linha do que o povo fala: “A mentira tem pernas curtas”. Uma mentira envolvida por alguns aspectos ou informações verdadeiras gera confusão, divisão. Jesus disse claramente que o diabo é mentiroso e o pai da mentira (João 8,44). Para combater isso, vejo dois caminhos: despertar nas pessoas o senso crítico para não acolherem ingenuamente qualquer informação – antes, procurarem verificar se seu conteúdo é verdadeiro. Um segundo caminho consiste num compromisso, o de não repassar adiante informações duvidosas ou tendenciosas.

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(Foto: Patrícia Luz, Divulgação)

Declaração do governo Bolsonaro sobre o Sínodo da Amazônia, em outubro do ano passado, recebeu críticas da CNBB e até do papa reforçando que não se tratava de uma intromissão à soberania nacional, mas a defesa dos povos originários da Amazônia. Índios, ribeirinhos, quilombolas, imigrantes, trabalhadores, entre outros, têm sofrido com constantes medidas e ameaças de direitos sociais e humanos. A igreja não tem quer ser mais firme nas ações para que os católicos também se coloquem na defesa dessas pessoas, e não apenas de forma institucional?

Dom Helder Câmara, famoso pelo trabalho social desenvolvido no Rio de Janeiro e, posteriormente, pelas palestras mundo afora, dizia: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, me chamam de comunista”. A dimensão social da Igreja é parte inerente de sua missão. Aliás, Jesus antecipou que o julgamento final será sobre isso: tive fome, tive sede, estava nu, preso etc., e me atendeste ou não. Jesus tanto condenou a ganância e o egoísmo de uns, como com a fome e a pobreza de outros. Se é verdade que a dimensão social não esgota a missão da igreja, ignorá-la será apresentar um evangelho incompleto.

O mundo enfrenta a pandemia do coronavírus, o que exigiu medidas restritivas como distanciamento social. Em que pese as ações de solidariedade surgidas para quem ajudar quem mais precisa, a Covid-19 parece ter contribuído para dividir mais a sociedade: preservação da vida x manutenção da economia. Qual orientação a ser dada para os cristãos neste momento?

Para um cristão, o critério fundamental em qualquer situação deve ser o da vida. A vida está em primeiro lugar. Todo o resto – economia, política, cultura etc. – é útil e necessário enquanto favorece a vida. Jesus foi claro: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (João 10,10). Portanto, não se trata de escolher entre vida e economia, mas de nos perguntarmos: o que e como fazer para que os recursos de nosso país possam ser melhor aplicados para favorecer a vida do povo?

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A posse do novo arcebispo de Salvador está marcada para em 5 de junho. Até lá o senhor responde como administrador apostólico da Arquidiocese de Salvador. Como é este trabalho?

Desde 11 de março, quando foi anunciado o nome de meu sucessor (cardeal dom Sérgio da Rocha), tudo continuou igual. As alterações que aconteceram foram por causa do novo coronavírus: pela minha idade, faço parte do grupo de risco. Trabalho muito por telefone, por textos, pela assinatura de documentos. Claro que a impossibilidade de contatos físicos impede que eu faça muita outra coisa, mas, afinal, o mundo todo está meio parado.

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(Foto: Sara Gomes, Divulgação)

O senhor e seu substituto, dom Sergio da Rocha, trabalharam juntos na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entre 2015 e 2019, quando foram respectivamente vice-presidente e presidente da entidade. O que esperar do trabalho do novo primaz da Igreja Católica no Brasil?

Antes ainda do trabalho na presidência da CNBB, o cardeal Dom Sérgio e eu trabalhamos durante quatro anos na Comissão de Doutrina da CNBB. Nosso relacionamento foi sempre muito amigo, marcado pela alegria: ele, porque tem histórias mil para contar, eu, porque gosto de ver o mundo com uma pitada de humor. Ambos, temos imenso amor à igreja. Nossos estilos são diferentes, mas não creio que a condução da Arquidiocese vá mudar muito.

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Ouvi dizer que os baianos consideram a empatia com eles – aliada ao jeito acolhedor – o maior legado na terra de Nosso Senhor do Bomfim. E o senhor, o que guardará no coração depois desta experiência na Bahia de todos os santos como primaz da Igreja no Brasil?

Penso que uma das maiores riquezas dos baianos é a capacidade de acolhida. Em outros lugares (não vou dizer onde), a gente convida: “Apareça lá em casa!”, mas não dá o endereço. Aqui, eles vão ao encontro da pessoa para que ela se sinta logo em casa. Os baianos se destacam também pela alegria. Eles têm uma maneira alegre de levar a vida. Aqui aprendi uma expressão curiosa: em momentos de reunião com pessoas, é comum justificarem a ausência de alguém que já deveria estar ali com a observação: “Ele está chegando!”. Eu, então, completo: “Sim, está acabando de tomar o café, vai escovar os dentes, entrará no carro, atravessará a cidade e chegará…”. Todos riem, porque sabem que é assim mesmo.

Como é para o catarinense nascido em Brusque a honraria de ter participado tão ativamente do processo e estar chefe da Igreja Católica na época em que o país ganha a primeira santa genuinamente brasileira, a irmã Dulce dos Pobres?

Os santos, melhor, as santas têm sido muito generosas comigo. Logo que cheguei a Florianópolis, participei da canonização de Madre Paulina. Ao chegar aqui, em menos de dois meses estava à frente da beatificação de Irmã Dulce. Nove anos depois, poucos meses antes de deixar a arquidiocese, participei da canonização dessa Irmãzinha dos Pobres. Nada fiz para merecer isso. Senti-me honrado, sim, e tudo encarei como graça divina. Jesus, que conhece minhas limitações, colocou ao meu lado pessoas especiais, que muito me ajudam no trabalho evangelizador.

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O senhor deixou a arquidiocese de Florianópolis em 2011. Como pensa o futuro próximo? Volta para a congregação em Santa Catarina? O que pretende fazer?

Em 1985, religioso e sacerdote da Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, a igreja me pediu que assumisse responsabilidades especiais. E, obediente, aceitei. Passados 35 anos, tendo chegado à idade limite para continuar à frente de uma diocese, tenho a possibilidade de voltar à minha congregação. E o farei. Irei morar em Corupá (no Norte do Estado), onde há o Seminário Sagrado Coração de Jesus. Lá estudei nos meus primeiros sete anos de formação religiosa e sacerdotal. Foi uma experiência muito rica. Voltarei para Corupá e, de lá, servirei a igreja onde for possível e quando for solicitado, pregando retiros, dando palestras, assumindo compromissos a pedido de algum bispo. Em tudo, quero viver a experiência expressa em meu lema episcopal: “Deus é amor!” (João 4,16).