Blindados com óculos escuros e toucas, 10 jogadores observam-se em busca de sinais que acusem blefe ou confiança. As fichas giram por entre os dedos, denunciando a ansiedade. Como em uma sinfonia de tons secos, batem os nós dos dedos na mesa acarpetada, pedindo ao crupiê que vire a próxima carta.
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Um a um, desistem. As cartas que têm em mãos não formam boas combinações com as já dispostas na mesa. Restam dois jogadores – no linguajar do pôquer, um “heads up”, ou mano a mano. O mais velho aposta duas fichas pretas com números dourados, daquelas mais cobiçadas.
O outro, olhos cansados, boné escuro, vira o rosto e o encara demoradamente. Tem apenas uma pilha de fichas – se aceitar o embate e perder, será sua última mão por hoje. O mais velho vacila, baixa de relance o olhar. Entrega seu blefe. O outro cobre a aposta. Cartas viradas, o vencedor é o mais novo, Bruno Gehrke, 25 anos. Tem um par de damas, maior do que o par de 7 do adversário. Recolhe a pilha e ressurge no jogo.
VÍDEO: como e onde jogam os profissionais de pôquer na Capital
Eles não estão em Las Vegas ou Punta del Este – sequer em um cassino. Gehrke, morador de Parobé, que aprendeu a jogar pôquer com amigos e hoje disputa torneios a dinheiro. Foi um dos 450 jogadores que participaram da Copa do Mundo de Poker, há duas semanas, em Porto Alegre.
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A Federação Gaúcha tem mais de 4 mil jogadores de pôquer cadastrados, que participam de competições organizadas por pelo menos 30 associações e clubes
– A sorte é o que menos importa. Tu tens que fazer tua estratégia, sacar o adversário, tenha ou não um “nuts” (o melhor jogo) – diz Bruno, enquanto acaricia seu talismã: uma ficha ganha na meca do jogo, o Caesars Palace, em Vegas.
Empacotada como legítimo torneio americano – com regras texanas e vocabulário que só os amantes do jogo entendem -, a Copa aterrissou nessas bandas não por acaso: o Rio Grande do Sul já tem mais de 4 mil jogadores cadastrados na Federação Gaúcha de Texas Hold’em (sim, há uma federação), que regula e organiza competições no Estado. A cada ano, recebe 150 novas inscrições.
– São pessoas que começam a jogar pela internet, tomam gosto pelo pôquer, pas-am a frequentar clubes e disputar torneios – afirma o presidente da federação, Maximo Bertamon, Tio Max para os jogadores habituais.
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A mania se propaga na Capital e no Interior, onde pelo menos 30 associações organizam competições. Mas é em Porto Alegre que são erguidos os maiores clubes. O Ypiranga Texas Club, em um prédio imponente no coração do bairro Moinhos de Vento, é um desses. Com mais de 3,5 mil sócios e torneios quase que diários, transmitidos ao vivo pelo YouTube, chega a distribuir R$ 100 mil em prêmios em uma noite para os cinco primeiros colocados – os demais perdem o que investiram.
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Ok, mas o jogo não é proibido no Brasil? Sim, mas o pôquer não é considerado jogo de azar. Segundo o promotor do Ministério Público do Estado (MP) José Francisco Seabra Mendes Júnior, responsável pela força-tarefa que combateu jogos ilícitos no Estado de 2009 a 2013, o entendimento da Justiça em decisões recentes é de que o pôquer tem menos a ver com azar e mais com estratégia, raciocínio e treinamento.
– Conforme jurisprudência, o pôquer é diferente de caça-níquel ou bingo, por exemplo, em que sorte e azar são fatores preponderantes. No pôquer, o jogador aposta em sua própria habilidade – explica Seabra.
O limite legal é cruzado quando há apostas de outras pessoas nos jogadores, ou a casa cobra comissão sobre a venda de fichas, explica o promotor. Durante a operação, o MP atendeu a denúncias de jogo ilegal em clubes de pôquer na Capital. Chegando aos locais, verificou que atuavam dentro da lei.
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Os organizadores de torneios se protegem de complicações ao moldar o formato das competições: a taxa de inscrição dá direito a um número fixo de fichas, sem possibilidade de ser aumentado com pagamentos extras, o que poderia ser interpretado como agenciamento.
Ídolo dos torneios largou o estágio em administração

Fonseca dedica de oito a 10 horas diárias a torneios on line ou em clubes
Faltava menos de um ano para o porto-alegrense Marcelo Fonseca se formar em administração de empresas quando foi apresentado ao pôquer. Instigado por amigos, conheceu sites e, depois, clubes. Ganhou torneios pequenos e então achou que tinha aptidão para a coisa. Abriu mão do estágio em uma multinacional de tecnologia e decidiu viver do jogo.
– Meus pais nem acreditaram, acharam que era brincadeira. Quando viram que eu falava sério, ficaram apreensivos. Precisei mostrar que existe um mundo de pôquer, com jogadores profissionais, federações e torneios – diz Fonseca, 28 anos.
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Isso foi há seis anos. De lá para cá, Marcelo se tornou um tubarão das mesas. É um dos melhores jogadores do Brasil e coleciona troféus e milhares de dólares em premiação – o maior título foi em 2012, o Campeonato Latino-americano, em Punta del Este, que rendeu US$ 120 mil. Nos torneios, é cercado por iniciantes ávidos por dicas ou uma foto ao lado do ídolo.
– Ganho bem mais com o pôquer do que se trabalhasse com administração – garante.
Mas faz uma ressalva: também trabalha mais. Dedica de oito a 10 horas diárias a torneios on line ou em clubes, nos quais junta dinheiro para pagar de US$ 1 mil a até US$ 10 mil em inscrições para participar das grandes competições.
Aos finais de semana, mergulha em livros sobre estratégia, lógica e matemática. Como as competições são à noite, dedica pouco tempo a programas com amigos.
– Não dá para negar que causa estranhamento quando conto com o que trabalho. Ainda existe uma impressão de que o pôquer é um vício, praticado em ambientes escuros e tomado por fumaça de cigarro. E não é nada disso – afirma.
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Glamour, dólares e vagas: um mercado em pulsação
Atraídos por sites e seduzidos pela transmissão ao vivo de torneios pela TV, são os jovens, na maioria, os novos jogadores de pôquer, que passam a frequentar clubes e participar de torneios. Não raro, arrastam familiares e amigos – o que também tem contribuído para aumentar o número de mulheres tentando um straight flush.
Aos 19 anos, o estudante Bruno Beidacki começou a jogar em uma liga fechada criada por amigos na web e logo migrou para os clubes. Chegou a finais de campeonatos regionais e embolsou um bom dinheiro ao terminar em 5º lugar numa etapa do Brazilian Series of Poker (BSOP), principal torneio do país, em Foz do Iguaçu.
Entusiasmados com o hobby do filho, o pai e a avó passaram a jogar pela web.
– Dá para ganhar dinheiro nesses torneios, mas se gasta bastante com viagens, inscrições e livros – diz Beidacki.
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Novos jogadores fazem florescer um mercado. Conforme a Confederação Brasileira de Texas Hold´em, pelo menos 4 milhões de brasileiros gastam dinheiro com inscrições, camisetas, bonés, livros e cursos de pôquer. Nos torneios, marcas de luxo abrem estandes para atrair um público que não se constrange em ostentar.
Do outro lado do balcão, muita gente lucra. Moradora de Guaíba, Fabiana Costa ganha R$ 150 por noite como crupiê em clubes e torneios. Com um uniforme impecável, feição séria e habilidade ímpar na distribuição das cartas, aprendeu o ofício na prática, depois que o bingo foi proibido, e o clube onde trabalhava fechou.
– Caí meio de repente nesse ramo, mas agora não me imagino fazendo outra coisa – afirma.
Com Ensino Médio completo, Fabiana diz que a carreira do pôquer vale a pena – dificilmente encontraria uma ocupação que remunerasse igual – mesmo que isso signifique passar noites e madrugadas longe do marido e do filho.
Jogo é jogo. Fique atento aos sinais de vício

Cerca de 3% dos adultos são propensos a se tornar dependentes do jogo, altera especialista
Ainda que seja permitido por lei e tenha se popularizado nos últimos anos, a prática do pôquer requer cuidado. Especialista em estudos relacionados ao vício, o psiquiatra Guilherme Letsch, supervisor da psiquiatria no ambulatório da Cruz Vermelha, em Porto Alegre, afirma que a “recompensa” que o cérebro registra com a vitória no carteado é a mesma despertada em outros jogos, álcool e drogas: a dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Há casos em que o jogador cria compulsão por jogar cada vez mais e liberar doses crescentes da substância. E pouca diferença faz se o jogo depende mais ou menos de sorte, afirma Letsch:
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– Cerca de 3% dos adultos são propensos a se tornar dependentes do jogo. Talvez os casos de vício envolvendo pôquer sejam escassos no Brasil por ainda haver pouca gente jogando.
Uma consequência nefasta não significa, necessariamente, perder o salário do mês ou virar 24 horas em sites de torneios. Deixar a família de lado ou abandonar os amigos para se dedicar ao baralho, assim como perder rendimento no trabalho em razão do desgaste após uma jogatina, é o alerta de que o jogo deixou de ser apenas prazeroso e começou a se tornar um problema.
– Essa mudança é muito sutil. É preciso ficar atento ao tempo dispensado e às expectativas que coloca sobre o pôquer – afirma a professora do pós-graduação da Faculdade de Psicologia da PUC-RS, Irani Argimon, especialista em dependência química.
Conforme Irani, o jogo se torna uma ameaça quando absorve a maior parte do tempo livre, servindo como distração ou válvula de escape a preocupações do dia a dia.
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– Se a pessoa souber colocar limites nas suas perdas ou no tempo de jogo, o pôquer pode se tornar um hobby saudável, que estimula o raciocínio e a cognição – explica a especialista.
Apaixonado por carteado, o executivo Christian Cottica decidiu estabelecer limites quando percebeu que passava mais tempo nos clubes do que com a namorada e os amigos. Chegou a frequentar as mesas todos os dias, nem que fosse para passar o tempo antes de um próximo compromisso. Quando chegava em casa, jogava online.
– Vi que estava exagerando e puxei o freio de mão – diz.
Criou regras: limitou a ida aos clubes a até duas vezes por mês, e passou a jogar na web não mais que três vezes na semana. Para evitar torrar o dinheiro do trabalho, criou uma reserva financiada com premiações para se inscrever em novos torneios.
– O pôquer é ótimo. O que não se pode é deixar tomar conta da tua vida – afirma Cottica.
Quem joga regularmente anda no limite do exagero. Bruno Gahrke, o vencedor da rodada descrita no início desta reportagem, admite que o jogo o deixa exausto no dia seguinte. Veterinário, ele tem uma clínica em Parobé, onde trabalha das 8h às 18h. Na Copa do Mundo disputada na Capital, Bruno jogava até as 4h30min da manhã, em sequências de sete horas lançando e recolhendo cartas e fichas. O esforço lhe rendeu o 5º lugar e R$ 1,5 mil, dinheiro já usado para pagar a inscrição do próximo torneio, em Novo Hamburgo.
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