Ilan Berman Rincón tem um mês e 14 dias, três quilos e 900 gramas, 51 centímetros, uma cabeleira de dar inveja no berçário e duas mães. Uma é Cinthia Berman, 37 anos, a mãe biológica. A outra é Carla Rincón, também 37 anos, a mãe-companheira. Cinthia e Carla estão juntas desde 2000. Há dois anos resolveram ter um filho.
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Combinaram que Cinthia seria a primeira a engravidar, procuraram uma clínica de reprodução assistida e, sinal dos tempos, buscaram o doador pela internet, num tradicional banco de sêmen dos Estados Unidos. Em dezembro de 2009 fizeram a primeira tentativa. Em março do ano passado, arriscaram a segunda. Nove dias, três testes de farmácia e três exames de sangue depois, com mão suando e frio no estômago, veio a confirmação: as duas iriam ter um bebê.
A barriga ainda nem aparecia quando procuramos Cinthia pela primeira vez, em julho, e combinamos esta reportagem para a Agência O Globo. Desde então, acompanhamos de perto a vida dessas duas mães à espera de um filho. Dos exames ao parto, eis aqui a história de uma família que ainda não aparece nas estatísticas, mas já é cada vez mais comum no Brasil. Eis aqui a história de Ilan.
Antes, porém, uma correção: oficialmente, o cabeludinho só carrega o nome de uma das mães. É Ilan Berman. O sobrenome Rincón, de quem também planejou a gravidez, viveu toda a expectativa, arrumou a casa para receber o filho e tem passado as noites em claro do mesmo jeito, só deve existir na certidão do menino se Carla ganhar esse direito na Justiça. Passado o recesso, ela vai ajuizar uma ação de adoção unilateral, um recurso que vem sendo buscado – e conquistado – por vários casais na mesma situação.
O procedimento é simples: a mãe biológica concorda que a criança seja adotada pela outra, as duas mostram uma série de documentos, apresentam testemunhos de que vivem uma relação estável, são ouvidas pelo juiz e, se a sentença for favorável, uma nova certidão é emitida, com o nome das duas e dos avós de cada lado.
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Com ou sem papel, o garotinho que nasceu às 16h50min do dia 26 de novembro de 2010, na Clínica Perinatal, em Laranjeiras, é filho das duas. Ilan era esperado para 15 de dezembro. Cinthia entrou em trabalho de parto antes do tempo. Acordou inquieta na madrugada do dia 26. Bateu um prato de macarrão, voltou para a cama, não dormiu mais. No início da tarde, começavam as contrações. Em menos de duas horas, num quarto com luz suave e músicas como a 9ª sinfonia de Beethoven, Ilan vinha ao mundo, de parto normal, humanizado, como elas queriam. Missão cumprida, Cinthia descansava, e Carla admirava o bebê no berçário quando foi surpreendida por uma enfermeira:
– É seu filho, né? É a sua cara.
Parecia o céu. Mas, para aflição das duas, Ilan precisou ir para a incubadora. Ficava cansado demais respirando. No segundo dia, mais habituado à vida outdoor, ele teve alta. No sexto, acompanhou as mães num ensaio da Orquestra Petrobras Sinfônica, na Fundição Progresso. Estava em casa. Carla é violinista da orquestra e do Quarteto Radamés Gnattali. E Cinthia é gerente de produção e marketing da Petrobras Sinfônica. Por tudo isso, ele já nasceu com trilha sonora. Durante toda a gestação ouviu o violino de uma e as músicas que as duas escolhiam para ele.
– Mesmo que não se saiba o número, famílias com duas mães ou dois pais são realidade no Brasil todo. Uma realidade já percebida pela Justiça – diz a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), especialista em Direito Homoafetivo e autora de livros como “União homossexual – O preconceito e a Justiça”.
O assunto é tão urgente que será um dos temas principais do I Congresso Nacional de Direito Homoafetivo, promovido pela OAB e pelo IBDFAM de 23 a 25 de março, no Rio. Ao mesmo tempo, o Censo 2010, cujos resultados vêm sendo divulgados aos poucos desde o fim do ano passado, promete trazer pela primeira vez dados sobre casais gays.
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O que as estatísticas ainda não reconhecem, e a lei deixa de fora (a união civil entre pessoas do mesmo sexo empacou há mais de 15 anos no Congresso), acaba batendo à porta dos tribunais.
– No Rio, em São Paulo, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul e em Goiás têm havido várias decisões a favor dessas famílias – lembra Maria Berenice.
Semana passada mesmo, uma sentença inédita foi conseguida por duas mães em São Paulo. Cada uma havia engravidado com o óvulo da outra. Na segunda-feira, elas conseguiram na Justiça que as duas crianças fossem registradas com os sobrenomes de ambas.
Quando Carla e Cinthia foram ao cartório registrar Ilan, dez dias após o parto, elas sabiam o que iria acontecer: na certidão do menino só seria aceito o nome da mãe biológica. Ainda assim, ficaram tristes. Por outro lado, sabiam que poderiam recorrer à Justiça. Orientadas pela advogada Renata Granha, já vinham juntando documentos e depoimentos para atestar que, apesar de não terem vínculo de sangue, Carla e Ilan merecem ter seu parentesco reconhecido.
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– O que rolar comigo e com ele vai ser totalmente nosso. E sem rótulos – ela afirmava, cinco meses antes de o bebê nascer.
Quem vê os dois entende exatamente o que Carla queria dizer.
Cinthia Berman nasceu em Buenos Aires. Aos 19 anos, de olho num convênio entre o Brasil e a Argentina, foi estudar Música em João Pessoa. Passou dois anos lá, transferiu-se para o Rio e concluiu o curso aqui. Já na faculdade começou a se envolver com produção cultural. Em pouco tempo, estava trabalhando no projeto da Orquestra de Jovens do Mercosul. E foi por esse caminho que conheceu Carla. Nascida em Caracas, Carla Rincón formou-se pelo Sistema Nacional das Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela, entrou para a Orquestra Simon Bolívar, foi estudar Música na North Carolina School of Arts, acabou escalada para tocar na Orquestra de Jovens do Mercosul. E foi por esse caminho que conheceu Cinthia. As duas se encontraram pela primeira vez em 1998, no Rio. E mantiveram contato por email. Em março de 2000, a orquestra do Mercosul voltou a se reunir. E elas também. Começava ali o namoro. Carla teve que voltar aos EUA, Cinthia seguiu sua vida no Rio, indo trabalhar no Teatro Municipal, mas o romance se manteve firme, na ponte aérea. Em 2003, enfim, Carla veio de vez para o Rio, e as duas foram morar juntas, numa casa de vila, num cantinho da Lapa que nem parece a Lapa.
– Perto de toda a confusão, mas com canto de passarinho na janela – define Carla.
Nesse meio tempo, tudo mudou na carreira das duas. Cinthia saiu do Municipal, passou pelo Teatro do Amazonas, fez uma pós em gestão cultural, foi trabalhar na Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) e, enfim, na Petrobras Sinfônica. Carla também passou pelo Municipal e pela OSB, foi para a Petrobras Sinfônica e fundou o Quarteto Radamés Gnattali, que, entre outros projetos, faz concertos didáticos pelo país, se apresenta bastante no exterior e venceu o Prêmio Carlos Gomes, em 2010. A vida a duas também mudou. Ficou mais sólida. E foi assim que elas começaram a sonhar com Ilan.
Verdade seja dita, Ilan já era chamado de Ilan nas primeiras semanas de gravidez, mas teve vários nomes até o fim da gestação. Na segunda vez em que encontramos as duas, ele se chamaria Simón. Também perigou ser Andrés, Tomás, Gael. Enquanto o nome não se definia, elas decidiram: iriam chamar o menino de Pimpollo.
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– Eu soube o sexo na 12ª semana. E na minha cabeça só vinham nomes de meninas – lembra Cinthia. – Começamos a ver listas na internet e encontramos Ilan. Gostei do modo como soou. Aí fomos pesquisar, descobri que é um nome hebraico e fiquei com o pé atrás. Sou de família judia, a Carla é de família católica, mas nenhuma de nós é religiosa. De qualquer forma, achei que ficava desequilibrado. Mas Ilan também é o nome de uma árvore. Gostei.
Depois de muitas idas e vindas, ao olhar para o rosto do filho, elas não tiveram mais dúvidas: seria Ilan mesmo. Mas antes de tudo isso, o mais difícil: a preparação para o nascimento do garoto.
– Ter um filho sempre foi uma questão para mim. Venho de uma família de sete irmãos (ela é a terceira) – diz Carla.
– Eu sempre disse que queria passar por essa experiência. Mas fui empurrando. Só que chega uma hora em que você não pode adiar. E, de repente, tudo amadureceu junto – explica Cinthia.
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Foi assim que as duas decidiram: cada uma teria um bebê. Primeiro, Cinthia, que estava com a vida mais calma. No futuro, Carla, que ainda viaja muito com o quarteto. Desde o começo, as duas pensaram em inseminação artificial, usando sêmen de um doador que pudesse engravidar ambas. Para que os irmãos fossem irmãos de sangue também.
– E queríamos um doador de tipo físico parecido com o nosso. Na Argentina, o banco de sêmen escolhe o doador para você. No Brasil também. Mas nos EUA, não. A gente pode escolher – diz Cinthia.
De tão completo, o site do Fairfax Cryobank deixou as duas boquiabertas. Elas escolheram, escolheram, escolheram.
– Ficamos na dúvida entre cinco. O banco permite que a gente veja fotos de infância dos doadores. Então, pedimos. Isso, os históricos clínicos e as entrevistas feitas com eles, com as impressões dos entrevistadores. Acabaram sobrando dois – lembra Cinthia.
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– Um foi descartado porque disse que seu programa favorito era ir ao shopping. Não dá, né? – entrega Carla.
Submetida a tratamento, Cinthia ovulou demais. Como havia risco de múltiplos gêmeos, optou-se pela fertilização in vitro, em vez da inseminação. No dia da transferência do óvulo, elas levaram música para a clínica e fizeram um circo. Não rolou. Cinthia tentou de novo. Dessa vez, só havia um óvulo, e foi feita a inseminação. Tudo correu diferente. Carla estava nos EUA fazendo mestrado em performance de violino na Universidade de Hartford. Cinthia foi sozinha. Não teve música, não teve circo.
– Voltei para casa e fiquei quietinha, tentando esquecer. Impossível – ri. – As chances são de 20% por ciclo. Fiquei compulsiva com os números.
Isso foi num sábado. Nove dias depois, Cinthia acordou estranha. Irritada e com azia, fez um teste de farmácia. Eram quatro da manhã. Deu positivo. Fez mais um. Idem. Às sete, já estava no laboratório para o exame de sangue. Enquanto o resultado não saía, mais um teste de farmácia. Todos deram positivo.
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– Depois repeti o de sangue duas vezes para ver como os hormônios iam aumentando, e a gravidez ia progredindo. Louca, né? – lembra.
Carla estava nos EUA quando recebeu a notícia. Quase pirou:
– A gente se falava a toda a hora. Gastei uma fortuna de celular.
Essa história, Carla contou no dia 20 de julho, no café do Cine Odeon, Rio. Cinthia estava na 19ª semana de gravidez. E era a segunda vez que nos víamos. A terceira foi num concerto da orquestra, no Teatro Municipal. Pouco depois, fomos à casa das duas, conhecemos as gatas Flora e Isolda, falamos mais da aventura. Foi a primeira vez que elas mencionaram a ação na Justiça. Aos poucos, nossas conversas ficaram mais soltas, elas relaxaram diante da câmera, passamos a acompanhar a gravidez ainda mais de perto. No dia 2 de agosto, Cinthia escreveu, num email:
– O bebê não para de mexer, as borbulhinhas que eu sentia semana passada cada dia são mais fortes e constantes. Estou muito emocionada, agora sinto que é de verdade, que tenho um bebê dentro de mim!
No dia 13 de agosto, chegou, também por email, o convite do chá de fraldas, que elas decidiram fazer em casa, comemorando, junto, o aniversário de Carla. Foi em 29 de agosto. A sala, colorida e cheia de fotos, se encheu de vozes em português, espanhol, portunhol. Eram músicos da orquestra e do quarteto, que tocam com Carla, amigas de infância e colegas que praticam canoa havaiana com Cinthia, casais com filhos, homens, mulheres, gays, héteros. E uma montanha de fraldas, claro. Na época, Ilan ainda era Pimpollo.
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– São tantos filhos de homens e mulheres que nascem por aí, sem serem desejados. E aqui, nesta família de duas mulheres, há tanto amor. Esse bebê é tãããão desejado. É uma alegria fazer parte de uma história assim – derramava-se o padrinho Fernando Thebaldi, colega de Carla no quarteto.
Três dias mais tarde, outro sinal dos tempos: entrava no ar o blog Minhas Mães e Eu, onde as duas passaram a relatar as etapas da gravidez, postar fotos, imagens de ultrassonografias, expectativas e surpresas. Sempre “narradas” pelo bebê. Com sete meses de gravidez, Cinthia retomou a canoa havaiana, na Praia da Urca. Desde a 12ª semana, ela já vinha nadando e fazendo ioga. Com a preparadora de grávidas Maria de Lourdes da Silva Teixeira, a Fadynha, fez ioga para gestantes e aulas teóricas sobre parto e amamentação. Nesse meio tempo, Cinthia e Carla decidiram fazer obras na casa toda (e desistiram). Apesar das viagens com o quarteto, Carla esteve sempre por perto. Num dos ultrassons, olhou a fotógrafa e disse, de pronto:
– Eu adoraria ter uma máquina dessas.
– Dessa aqui? – perguntou Marizilda, apontando a câmera.
– Nããão, uma daquela de ultrassom. Para ver o Ilan dentro da barriga todo dia até ele nascer.
No dia 13 de outubro, encontrei as duas, no almoço, num restaurante a quilo no Centro. A barriga chamava a maior atenção. Carla andava às voltas com a trilha sonora para tocar no parto. Já tinha selecionado coisas desde o século XVIII. Cinthia estava com aquele ar altivo (e isso vai soar cafona, mas é fato) que só a gravidez ou uma paixão arrebatadora…
Tudo corria bem, Ilan era esperado para o dia 15 de dezembro, mas… no dia 26 de novembro, ele nasceu, com dois quilos e 455 gramas, 46 centímetros. Dedos compridos, cara de menino, olho puxado, a tal cabeleira. Vindas de Buenos Aires e de Caracas, as duas famílias baixaram no Rio para conhecer o menino. Terá que ser assim. Carla e Cinthia, com residência permanente no Brasil, não pretendem deixar a cidade.
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– Não sei se é otimismo infundado, mas acho que o Rio tem um potencial… – aposta Cinthia.
No dia 4 de dezembro, ela e Ilan foram ver Carla num concerto na Igreja da Ressurreição, em Ipanema. Ilan nem chorou. Ele chora pouco, aliás. Dorme bem, mama direitinho. Dá trabalho, claro, como qualquer recém-nascido. Mas nada que tenha feito as duas desistirem do sonho de um segundo filho. Por enquanto, a única dor de cabeça mesmo é o processo para adotar Ilan.
– Normalmente, ações assim levam cerca de um ano – diz a advogada Renata Granha. – Sendo a sentença procedente, o juiz manda expedir uma nova certidão de nascimento, com o nome da criança e os respectivos sobrenomes das mães. No campo “filiação” fica estabelecido: “filho(a) de XXX e filho de YYY”, “sendo avós WWW e ZZZ”, sem mencionar as palavras mãe, pai, avós maternos ou avós paternos.
Ilan é o sexto caso assim que vai parar nas mãos de Renata. Ela ganhou três. Os outros esperam decisão.
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– Infelizmente, este ainda é um tema sensível para a nossa sociedade, mas a mentalidade está mudando – ela diz.
Como as ações correm em segredo de Justiça, elas só são conhecidas quando pais e mães decidem se expor e contar suas histórias. Como Carla, Cinthia e Ilan. E aí, quando a gente vê de perto, percebe que família é mesmo tudo igual. Só muda nos detalhes.