A editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC) lança nesta terça-feira, na Capital, “O Novo Conto Catarina” (166 páginas), livro que reúne 31 escritores nascidos no Estado ou que o adotaram e “trazem nossa terra como pano de fundo”, como diz a escritora e professora aposentada Regina Carvalho, responsável pela seleção e organização do volume.

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Todos os textos são inéditos. A edição fecha as comemorações dos 25 anos da EdUFSC. O livro, no valor de R$ 20,00, traz nomes como os dos poetas Dennis Radünz, Marco Vasques e Renato Tapado, o romancista Ivan Panchiniak e os jornalistas Dauro Veras, Rodrigo Schwarz e Raquel Wandelli.

Há contistas respeitados como Carlos Henrique Schroeder, Maicon Tenfen, Inês Mafra, Jaime Ambrósio e Rubens Lunge e representantes da chamada “novíssima geração”, que nasceu na década de 1980, como Vanessa Clasen, Willian Vieira e Camille Bropp.

Veja abaixo alguns contos que estão no livro:

Caro irmão

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Aleph Ozuas *

Hoje cheguei ao povoado. Nesse momento estou na casa de uma simpática senhora que costuma hospedar os inexistentes viajantes que misteriosamente surgem nesta região. Contei a ela meus planos de morar aqui e pedi informações sobre um possível terreno à venda. Ela ficou surpresa que um “moço da cidade” tivesse interesse de morar neste “lugar esquecido por Deus”. Disse a ela que planejo passar apenas algum tempo. Senti hoje, logo que cheguei aqui, uma estranha sensação de paz interior. Confesso que sinto falta de computadores conectados à internet e outras bugigangas da mesma família, coisas às quais eu estava tão intimamente ligado no meu trabalho, na minha vida. Felizmente trouxe esta velha máquina de datilografar, pois não conseguiria lhe escrever esta carta à mão! De qualquer forma estou bem…Ah, como sou incompetente em mentir! Não sou capaz disso, meu irmão, não estou em paz! Estou tremendo, coisas me incomodam. Ao falar de meus planos, tive a certeza de que esta senhora é um maldito lagarto! Quando desviei meus olhos dela por um instante, vi algo, uma sombra nas lentes de meus óculos, algo que me deixou aterrorizado e faz minha barriga doer agora. Também antes de chegar aqui, havia encontrado um velho senhor capinando na beirada da estrada, ele pareceu me dizer algo tão tranqüilo e simples e percebi no fundo de seu estômago algo se contorcendo, algum organismo vivo que havia sido frito com a gordura do próprio corpo. A cidade inteira parece ser habitada por esses simulacros de boa e simples gente, meu irmão. Você consegue imaginar meu terror? Esperei tanto tempo por este momento, tantos planos, tantas certezas, e agora isso! O horror, o profundo desconforto, a dor. Como posso colocar em palavras o que sinto? É algum castigo não poder me refugiar longe dos meus pesadelos? Eu vejo as coisas, não é minha vontade, mas eu sei, consigo ver a miséria no interior destas criaturas. Pretendia escrever uma carta com boas notícias para você, pretendia esquecer o que vi hoje, mas precisava desabafar com alguém, mesmo não tendo certeza se você receberá esta carta. As palavras no papel ajudam a me acalmar. Ajudam, sim. Queria poder viver em paz, parar de ser perseguido. O que querem de mim? Por que me torturam? Fugi porque resolvi parar de procurar respostas para estas questões. Tenho certeza agora de que nunca conseguirei, tenho a prova cabal disso em torno de mim, do outro lado destas paredes velhas. Meus pés doem, meu irmão, doem como se estivessem sendo devorados por formigas. É outra forma de ver a vida, é outra forma de criar os parâmetros! Preciso deles para poder me libertar desta prisão. Preciso lhe falar ainda a respeito das outras pessoas que me espreitam aqui, que fazem eu me sentir assim. Os objetos dançam vagarosamente aqui neste quarto simples. O homem da carroça, a filha da dona desta estalagem, o padre na frente da pequena igreja… Todos eles. Juro que não tomei nenhuma droga hoje, nem mesmo os fármacos receitados. Queria entrar puro em um reino que considerava puro. Meus batimentos cardíacos continuam acelerados.

* Nascido em 1974, em Florianópolis, Aleph é web designer. Seus autores favoritos são Kafka, Cortázar, Campos de Carvalho, Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, William Burroughs, Edgar Allan Poe, George Orwell, Guimarães Rosa, William Gibson, Philip K. Dick.

Canta pra ela voltar ou cala a boca, Chico

Ludmila Gadotti Bolda *

Sr. Francisco Buarque de Hollanda, Devo antecipar que esta não é uma carta de fã. É, na verdade, o desabafo de um homem com o peito dilacerado. E sabe de quem é a culpa? É sua, inteiramente sua! Você transformou meu casamento num faz-de-conta e minha mulher acabou sumindo no mundo sem nem me avisar. Devo admitir que suas músicas foram a trilha sonora da nossa vida conjugal. No entanto, isso não significa que devo lhe agradecer. Peraí! Foram, não. Pelo jeito continuam nos perseguindo, mas agora cada qual no seu canto… Olha, não sei se fico mais indignado com o senhor, por enfeitiçar as mulheres com esses olhos azuis embaçados e enfiar um monte de caraminholas na cabeça delas, ou com a minha própria esposa _ ou melhor, ex-esposa _, por cair no seu blá-blá-blá e me abandonar. E agora, Francisco, sem ela, o que é que a vida vai fazer de mim? Você apareceu dando uma de inofensivo, com aquela historinha de banda, coisa e tal. Hoje suspeito que foi uma estratégia só pros homens não desconfiarem de sua lábia. A prova da sua canalhice são aquelas fotografias em que você aparece aos beijos com uma fulana só pra enlouquecer a mulherada de ciúme e inveja. Quem te viu, quem te vê, hein? Pode confessar que foi tudo planejado, que foi uma jogada de marketing, vai. Olha, e não é só isso, não! Desvendei a sua mais ardilosa artimanha de sedução: compor e cantar como se fosse uma mulher só para encantá-las e convencê-las de que você é um profundo conhecedor dos mistérios e desejos da alma feminina. Que golpe baixo! Agora te peguei, seu escafandrista! Dane-se o significado literal dessa palavra aí, pra mim ela foi e sempre será um palavrão, viu? Perdão, mil perdões, Chico… Desculpe a minha cabeça quente, mas é que ela anda pelas tabelas e, é claro, ninguém se importa com a minha aflição… Talvez você me entenda, já que é o responsável por essa desgraceira toda. Enfim, trocando em miúdos, resolvi lhe escrever porque estou aqui desconsolado, precisando desabafar depois de tanto maltratar meu coração ao rever os velhos retratos em branco e preto e… Viu só? Tudo na minha vida tem dedo seu! Estou farto disso! Já que é assim, se lhe interessar, ela foi embora sem um tostão, apesar de ter causado perdas e danos. Me deixou os discos do Pixinguinha, os livros do Neruda, e até a aliança, acredita? Não quis nem levar pra empenhar ou derreter, a orgulhosa! Ai, Chico… orgulhosa, sim, mas como sinto falta da minha menina! Ei, agora fiquei realmente preocupado: e se meu coração for um quindim? Será que suporto o tranco? Ai, ai, ai! Saudade mata a gente, companheiro… Sinceramente, tinha cá pra mim que vivia o tal do grande amor. Hoje tenho apenas uma pedra no meu peito. Quanto a ela, não sei. Como será que está? Temo pensar que você esteja certo ao dizer que “por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz e atrás dessa mulher, mil homens sempre tão gentis”… Mas que droga! Mereço ser respeitado por deixar de ser um bobo sonhador, não é? Qual é… esse casamento foi uma grandessíssima mentira! Na verdade, ela sempre foi apaixonada por você, seu traidor! Agora preste atenção, veja o que essa desalmada fez comigo! Certo dia, notei que a moça tava diferente, que já não me conhecia direito. Suspeitei que estivesse me enganando, me passando pra trás. Tempo vai, tempo vem… fuçando na internet, descobri que ela participava de uma comunidade no Orkut chamada “Eu daria pro Chico Buarque”. Desaforo! Bom, cuide-se ao sair na rua porque não só ela, mas ela e a Gaviões da Fiel querem te abocanhar! Algum tempo depois dessa descoberta, já conformado com a traição virtual, resolvi surpreendê-la. Comprei rosas vermelhas, cheguei de mansinho, segurei aquelas mãozinhas delicadas, dei um beijo na testa e, engolindo meu orgulho, pedi a ela que me perdoasse por eu não ser você. Achei que agradaria, que dessa forma faríamos as pazes, mas foi aí que minha estrada entortou de vez. Olhos nos olhos, me apunhalou com palavras sem dó nem piedade: “Te perdôo por te trair. Ah, quantos homens me amaram bem mais e melhor que você!”. É, ela só me guarda despeito, só me guarda desdém… Mas sabe que no fundo, no lado esquerdo do peito, acho que ela ainda me quer bem. Concorda comigo, né? Olha, no final das contas, Chico, começo a acreditar que quando nasci também veio um anjo safado, como o daquela canção, e me decretou essa vida torta. Só pode ter sido agouro de um querubim chato, meu Deus! Ou será que você é o meu anjo? Será? Falando sério, eu não queria falar, viu? Falando sério… Mas vou até o fim, certo? A essa altura do campeonato, vou até o fim! Sabe com quem ela fugiu? Adivinhe, meu caro amigo! Vou dar uma dica: a idéia foi sua! Chico, o desgraçado era o dono da venda! Ora, ora, que coincidência! Agora me diz: pra onde ainda posso ir? Diz, vai… com que pernas eu devo seguir depois dessa tragédia? Pois é… e então? Por favor, só não me venha com “amanhã vai ser outro dia”!

* Nascida em 1984, em Belo Horizonte, é jornalista. De família de catarinenses, sempre viveu em Santa Catarina. Jornalista. Autores essenciais: Machado de Assis, Gabriel García Márquez, Gay Talese, Dostoiévski, Manuel Bandeira, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa.

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Desorientação

Adriano Marcelo de Souza*

Depois de quinze dias caminhando à beira do asfalto, Edgar chegou em casa. Não soube dizer à sua mulher onde esteve depois de sumir por um mês, não reconheceu o menino de seis anos que a mulher dizia ser seu filho e, ao deitar-se na cama, dormiu por dois dias inteiros. Quando acordou, saltou da cama com os olhos arregalados, levou as mãos à cabeça e gritou no desespero de sua confusão que precisava voltar pra casa. Não reconheceu a mulher que o agarrava dizendo ser aquela a sua casa, onde já havia chegado, mas o menino de seis anos que chorava agarrado à sua perna, parecia lembrar-se dele de algum lugar. Desvencilhou-se deles e partiu, deixando a mulher no portão com o olhar perdido e o garoto, que via sumir na distância crepuscular o homem estranho a quem sua mãe obrigava a agarrar chorando, desde que apareceu perdido pela primeira vez naquela casa.

* Adriano Marcelo de Souza é autor de “Euforia” (Editora Apeijas) e editou dois fanzines sobre música e literatura. Nasceu em Cascavel (PR), mas mora em Guaramirim há 15 anos