Nos artigos que escreve analisando o cenário político brasileiro, o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle costuma mirar contra a direita. Mas a preferência por desnudar algumas práticas nada republicanas adotado pelos representantes do conservadorismo não o impede de, mesmo sendo filiado ao PSOL, refletir sobre a esquerda e seus desmandos. Pelo contrário: são as forças ditas progressistas que recebem as maiores críticas, por reproduzir – e, em muitos casos, aperfeiçoar – práticas e vícios associados à corrente oposta.

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Nascido no Chile há 44 anos, o filho de ex-guerrilheiro da Aliança Libertadora Nacional esteve em Florianópolis para a palestra “Brasil: entre o esgotamento do populismo e a reinstauração institucional”, realizada na UFSC. Na ocasião, lançou o livro Só Mais um Esforço, em que demonstra como o lulismo alcançou e manteve o poder por meio de uma conciliação de classes fadada a dar errado. Ele expôs um pouco do seu pensamento na entrevista a seguir, concedida após autografar a obra para os estudantes que fizeram fila para comprá-la.

Por que a sociedade em geral, pelo menos em Santa Catarina, vem repudiando mobilizações organizadas por movimentos de esquerda, ainda que muitas das demandas reivindicadas a beneficiem?

Essas manifestações das quais você está falando são muito específicas. Ou eram em defesa do governo Dilma ou em defesa de Lula. Então elas estavam muito vinculadas à adesão a certos governos. No caso de Lula, ainda tem um agravante, que é a adesão a um ex-presidente que se fragilizou por causa de corrupção no governo dele. Existe uma repulsa explícita de parte significativa da população contra a corrupção. Essa repulsa, muitas vezes, é “estratégica”. Não é contra a corrupção, é contra a corrupção de certas pessoas. O cara é contra a corrupção no governo Lula, mas você vai ver em quem ele votou e foi em políticos corruptos notórios. Mas também não se pode ignorar que os casos de corrupção do PT são reais. Há uma parte da população que deixou de aderir por causa disso. Tem uma parcela da classe média, é verdade, que nunca engoliu o governo do PT por razões ideológicas profundas. E tem ainda uma parcela da população que se sentiu lesada no meio de todo esse processo. Acho que essa parcela fica meio sem saber como proceder. Ela percebe que o governo atual também tem casos graves de corrupção, mas não está disposta a ir para a rua defender governos anteriores que tiveram os mesmos problemas.

Tem gente confundindo a posição contrária ao governo Temer com defesa de Lula e/ou o PT?

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Sim. Essa é uma questão muito impressionante: como setores da sociedade, devido ao seu antipetismo, chegaram mesmo a admitir um governo (Temer) que não é apenas o mais impopular da história brasileira como tem um nível de corrupção explícita que também nunca existiu igual na República. Nunca um presidente em exercício havia sido processado por corrupção, nunca um presidente havia sido flagrado por grampo telefônico fazendo prevaricação. Ou seja, diante de Temer, qualquer outro presidente aparece como um santo. Mas o antipetismo está tão arraigado que faz com que a sociedade acabe “normalizando” algo que é uma aberração internacional absoluta. Você é contra o PT, tudo bem; agora, dar sustentação, nem que seja tácita, a um governo que é a demonstração mais evidente da corrupção da classe política no Brasil?

O que o senhor quer dizer quando escreve que a polaridade acirrada deixou claro que nunca fomos um país no sentido de identificação, e sim que apenas habitamos o mesmo território?

De fato, existe essa ideia no imaginário nacional de um país unido: falamos a mesma língua, temos mais ou menos a mesma religião, nossa unidade territorial não passou por muitas modificações depois que foi construída, não existiriam grandes conflitos por aqui. Esse imaginário é completamente falso. Não existe um país no Brasil, nós não estamos de acordo sobre nada. Nem um acordo mínimo sobre, por exemplo, a ditadura militar. Você pode ser liberal, pode ser comunista, e admitir que algo como uma ditadura militar nunca mais pode ocorrer de novo – e que aquilo que ocorreu deve ser alvo de uma ação da Justiça. Mas nem nisso a gente consegue concordar! Então, dentro desse horizonte, não dá para falar de um país no sentido de um povo que partilha uma história. A gente não tem uma história em comum. Isso se explicitou agora. Pode ter certeza: nunca vamos encontrar uma história consensual sobre o que aconteceu de 2015 para cá.

Aí que entra a chamada guerra de narrativas?

Não é só isso. Há posições ideológicas claramente arraigadas na sociedade brasileira. A gente saiu da ditadura sem conseguir criar uma narrativa sobre ela. Não existe uma versão aceita por todos sobre o que foi a ditadura. Isso é a expressão mais grave de um país que não consegue elaborar sua história. Pegue o caso da Argentina: eles têm relatos memorialistas, uma elaboração de sua própria história enorme na literatura. O Brasil não tem. Você consegue contar a história de vários países pelo cinema. A do Brasil, não.

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A que o senhor atribui isso?

Pelo modo com que a sociedade brasileira se estruturou. Ela se estruturou com medo de se autoanalisar, porque sabe do grau de violência, ao grau de injustiça ao qual está submetida. Ela sabe que, se se autoanalisar, a sua imagem do presente fica insustentável. Então ela faz de tudo para não ter que se confrontar com o que tem de insuportável no seu presente.

O senhor fala também que a ebulição que há no país pelo menos desde 2013 não conseguiu convergir para um sujeito político. Como chegamos a esse ponto?

Primeiro, os atores hegemônicos da Nova República – eram eles que permitiam esse processo – foram todos se degradando. Não foi só a esquerda que se degradou. O centro se degradou. Você teve dois grandes atores políticos com capacidade de formulação: o PT e o PSDB. Os dois foram testados no governo. Os dois se degradaram, cada um à sua maneira. Então se criou um vácuo no Brasil, que faz com que haja força de revolta, mas essa força não consegue se transformar em um ator político. Porque esses atores políticos que se degradaram não deixaram outros atores aparecerem. Eles morreram – e não tem ninguém.

A esquerda vai esperar o desfecho da situação de Lula para tomar alguma decisão?

Isso é dramático. É todo um campo de debate organizado em torno do destino de uma figura.

Nesse sentido, o que representa a candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) à presidência?

Faz parte de um horizonte em que a esquerda brasileira vai tentar mostrar para a população que ela tem a oferecer algo diferente, algo mais do que foi oferecido até agora. Lula tem uma posição muito singular: se ele concorresse (à eleição), ele ganharia. Na maioria das pesquisas, ele aparece com quase o dobro de votos do segundo colocado. Por que? Porque as pessoas fazem um raciocínio muito racional: “Hoje é uma catástrofe, então é preferível voltar atrás, que era melhor do que isso”. É um instinto de sobrevivência que é muito natural, “deixa eu voltar para o lugar que estava melhor”. Só que não se pode organizar um campo político a partir desse tipo de reação! Você tem que aderir acreditando que isso vai produzir um novo país, uma transformação, uma possibilidade de emancipação social real. Isso não existe mais, o vínculo da população é defensivo, é reativo.

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O que significa o esgotamento do ciclo histórico que o senhor acredita estarmos vivendo?

O ciclo histórico é a Nova República, que acabou em 2013, com seus pactos, seus processos de conciliação, seus modos de governo. As manifestações daquele ano foram a ruptura.

A direita soube aproveitar melhor do que a esquerda as manifestações de 2013 ao catalisar demandas represadas da classe média?

A História é cheia desses processos. Todas as revoltas reais, quando não têm um horizonte de organização por trás, geram reações de setores que impõem sua pauta. Em 2013, houve uma revolta espontânea, real, e os atores da esquerda não souberam equalizá-la, ficaram com medo. Foi uma oportunidade perdida. Havia uma demanda muito clara por transformação, que passava pela estrutura política, pelo aprofundamento dos processos de distribuição de renda, o pessoal reclamando de falta de escola, do transporte público ruim… Só que houve uma incitação da violência por parte da polícia, que fez com que as manifestações perdessem a solidariedade do povo; um jogo da imprensa, de tentar empurrar goela abaixo a pauta da corrupção, como se fosse a única coisa em debate. Ora, naquele ano houve 2.050 greves, não tinha nada a ver com corrupção. Houve diversas manifestações a favor dos direitos homossexuais, contra o uso de animais em experiências de laboratório, a favor de mais investimentos em saúde e educação. A direita pareceu ser mais revolucionária porque assumiu o discurso anti-institucional que a esquerda não teve coragem de assumir. Veja o (deputado estadual Jair) Bolsonaro (PSC-RJ), ele chega e diz que é contra tudo o que está aí, que vai romper com tudo.

Para o senhor, no governo Lula houve mais capitalização dos pobres do que combate à desigualdade. Qual a diferença?

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Combate à desigualdade é um processo no qual se reduz a diferença capitalizando os pobres e diminuindo o rendimento dos ricos. Os ganhos dos ricos têm que cair, porque se não vai acontecer o que aconteceu no Brasil: continua uma concentração de renda muito forte. Então não é só capitalizar os pobres. Você tem que, de fato, fazer os ricos ganharem menos. Ser rico no Brasil é a melhor coisa que existe no mundo: você não paga nada de imposto e seus rendimentos são completamente blindados.

A que o senhor atribui o fato de, em 15 anos de governo, o PT não ter sido capaz de acabar com essa lógica da acumulação?

À uma política conciliatória equivocada, que não percebeu que a função de um governo de esquerda é criar um processo de combate à desigualdade. Não é possível combater a desigualdade em um país onde as seis maiores fortunas equivalem ao rendimento de 50% da população. É uma coisa indescritível, obscena, e a gente perdeu completamente a sensibilidade para isso.

O que levou um governo de esquerda a apostar no crescimento de empresas para competir no mercado global, como a JBS?

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Foi uma lógica desenvolvimentista completamente distorcida: a ideia de que esse era o problema do capitalismo brasileiro, de que era necessário entrar na globalização de uma maneira mais ativa. Mas você não podia transformar o Estado brasileiro em sócio de monopólio. Ao fazer isso, o governo simplesmente referendou uma posição que o Estado brasileiro sempre teve: ser babá da burguesia nacional. De uma burguesia que, diga-se de passagem, não tem capacidade nenhuma para se submeter a uma concorrência de verdade. A burguesia nacional não perde nunca, ela sobrevive de compras do governo. Isso demonstra claramente o que é capitalismo brasileiro: um capitalismo de compadrio, que tenta conservar uma burguesia ineficiente, incompetente, incapaz, que quebraria se estivesse em qualquer situação de concorrência real. Ela só sobrevive por monopólio.

O senhor acredita mesmo que o Rio de Janeiro é um laboratório para o Brasil, como disse o interventor federal na Segurança Pública daquele Estado, o general do Exército Walter Souza Braga Netto?

Sim. É um laboratório da presença das Forças Armadas no interior da vida social. É o que sai da cabeça do chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo federal, o general (Sérgio) Etchegoyen, que é filho e neto de torturadores, o tipo de sujeito que nunca deveria estar em nenhum cargo público do país porque representa o que as Forças Armadas têm de pior.

O brasileiro não se revolta com o auxílio-moradia dos juízes porque, no fundo, sonha em gozar do mesmo benefício?

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Não, essa é a visão do cara que quer defender o auxílio-moradia. O que existe é um país de extrema violência, do Estado contra a sociedade civil. A sociedade não tem mais nenhuma garantia de que o Estado não vai agir de maneira violenta contra ela. Em uma situação como essa, se você for fazer manifestação, dependendo de qual for o seu lado, a polícia vai aparecer, vai arrebentar, vai jogar bomba – e não vai acontecer nada, você ainda vai ser tratado como bandido. As pessoas não saem às ruas porque estão desmobilizadas, e sim porque estão com medo.

Somos um povo democrata?

A experiência de democracia no Brasil é frágil, falsa e parcial. Antes de falar que não quer democracia, o sujeito tem que entender: o que ele viu de democracia? O parâmetro é a Nova República, feita de conchavo, de corrupção contínua. Então, nunca houve uma experiência de democracia efetiva nos últimos anos.

Teremos eleições em outubro?

Pode ter formalmente, mas não haverá eleição como um espaço de confrontação, onde todos os atores significativos da política nacional podem lutar pela conquista do eleitorado. Tem um candidato que está liderando as pesquisas e será preso, tem um processo de uso da máquina que é evidente, tem uma bruta presença do poder financeiro, tem um tempo mínimo para debate. E digo mais: se houver no horizonte a chance de o governo, ou aqueles que o rodeiam, perderem, a gente vai ter mais intervenção.

As eleições de outubro terão o poder de apaziguar esse clima belicoso que permeia o debate político no Brasil?

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Não, vai ser uma eleição farsesca – e a população vai perceber.

O senhor é otimista?

O Brasil sempre superou seus problemas e sempre mostrou muita capacidade de criação e de abertura de novos horizontes. Só que, para acontecer isso, é preciso primeiro saber a extensão do problema. Acho que isso é o que está em questão hoje: saber a extensão do problema.