*Por Li Yuan

Xie Yiyi perdeu o emprego recentemente, o que tornou a moradora de Pequim, de 22 anos, um dos milhões de jovens na China que ficaram à deriva e abalados pelo coronavírus.

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Então, no mesmo dia, seguindo o conselho de um dos principais líderes da China, ela decidiu montar uma barraca para vender churrasco.

Muitas pessoas na China diriam que vender espetinhos de carne de carneiro foi um rebaixamento para uma jovem educada nos EUA como Xie – ou, na verdade, para qualquer um na segunda maior economia do mundo. Os vendedores ambulantes são vistos por muitos chineses como monstruosidades embaraçosas do passado do país, quando este ainda emergia da pobreza extrema. Em muitas cidades chinesas, vigilantes uniformizados nos bairros, chamados “chengguan”, regularmente despejam e agridem vendedores ambulantes de bijuterias, roupas baratas e lanches.

Mas Li Keqiang, o primeiro-ministro chinês, havia pedido publicamente que os desempregados do país incentivassem uma “economia estagnada” para colocá-la de volta nos trilhos. No processo, ele expôs as narrativas divergentes após a epidemia do coronavírus. A China é um país cada vez mais de classe média, representado por grandes prédios e pelos campi tecnológicos em Pequim, Xangai e Shenzhen? Ou grande parte ainda é pobre e retrógrada, uma nação de barraquinhas nas ruas e nos becos?

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Xie, que se formou no ano passado na Universidade da Califórnia, em Irvine, sabia que a situação estava longe de se resolver. Ela carregou seu carrinho de compras digital com uma churrasqueira, carvão, espetos e caixas de Arctic Ocean, o clássico refrigerante de laranja de Pequim, na esperança de que o negócio de churrasco pudesse sustentá-la até que um trabalho melhor aparecesse. Mas ela esperou para ver se as autoridades da cidade de Pequim concordariam com Li antes de clicar em “Comprar”.

Isso não aconteceu, em um raro sinal de discordância. Um comentário no jornal oficial “Beijing Daily” divulgou uma longa lista dos problemas que as barracas poderiam criar, rotulando-as de “anti-higiênicas e incivilizadas”.

“O pessoal da cúpula está dizendo coisas diferentes. Portanto, é melhor tomar cuidado antes de fazer o pedido”, afirmou Xie.

Li iniciou a conversa sobre a prosperidade da China em maio, quando realizou sua conferência de imprensa anual no fim da sessão legislativa do país e abordou diretamente as perdas de emprego decorrentes da luta do país contra o coronavírus. Ele elogiou os jovens que, nos primeiros dias após a Revolução Cultural, abriram barracas de chá.

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Em seguida, Li apontou que cerca de 600 milhões de chineses, ou 43 por cento da população, ganham uma renda mensal de apenas cerca de US$ 140. Ele citou o exemplo de um trabalhador migrante na casa dos 50 anos que não conseguia arrumar um emprego depois de trabalhar em cidades por 30 anos.

Ressaltando seu foco nos menos bem-sucedidos da China, Li visitou vendedores ambulantes dias depois na província de Shandong. “O país é feito do povo. Só quando o povo estiver bem o país ficará bem”, ele lhes disse.

Os comentários de Li desafiaram a narrativa usual de prosperidade sem trégua do Partido Comunista, algo que ajudou a legitimar seu governo. Inicialmente, quando os valores dos rendimentos se espalharam pela internet chinesa, alguns usuários de mídia social – sem saber de sua fonte – disseram que os números eram falsos e acusaram forças hostis de tentar minar o sucesso chinês.

Muitos moradores urbanos de classe média têm razões para não acreditar nos números. As maiores cidades da China dificultaram a vida lá para pessoas de baixa renda e baixa qualificação, praticamente apagando-as da narrativa oficial. Por exemplo, o governo municipal de Pequim cunhou o termo “população de baixo nível” quando expulsou muitas dessas pessoas há três anos, derrubando casas, mercados e restaurantes onde viviam e trabalhavam.

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(Foto: Jialun Deng / The New York Times)

É pouco provável que Li, que há muito foi ofuscado por Xi Jinping, o líder supremo do país, consiga ir contra a grande narrativa de sucesso do partido. A última vez que ele inspirou tanto burburinho foi há cinco anos, quando defendeu a inovação e o empreendedorismo, ajudando a desencadear um frenesi de investimentos em fundos de risco e startups.

Nessa época, a China se sentia ambiciosa. Agora, enfrenta o que pode ser um de seus maiores desafios desde a era Mao. Sua economia desacelerou acentuadamente por causa de seus esforços de contenção do coronavírus. Enquanto o governo diz que o desemprego está em seis por cento, outras estimativas o colocam em 20 por cento. Outros países são cada vez mais hostis, algo que alguns integrantes das elites chinesas atribuem à atitude prematura de Xi de posicionar o país como uma superpotência.

Então, “economia estagnada” se tornou uma palavra de ordem, e Li acabou virando o assunto da internet chinesa. Alguns usuários de redes sociais o elogiaram por ousar falar a verdade. Muitos disseram que ele se preocupava com o bem-estar das pessoas comuns, um toque sutil no resto da liderança do partido, sugerindo que este se preocupa mais em cumprir metas arbitrárias e construir seu poder no exterior.

As cidades correram para atrair vendedores para as ruas. Alguns até definiram cotas de recrutamento para os “chengguan”, o que significa que aqueles que uma vez assediaram e bateram nos vendedores agora tinham de apoiá-los. Um economista estimou que 50 milhões de empregos poderiam ser criados se o governo desse mais espaço aos vendedores e agricultores que vendem seus produtos.

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A mídia chinesa espalhou histórias sobre vendedores ambulantes que ganham milhares de dólares por mês e podem ter carros de luxo. Citou empresários famosos como Jack Ma, cofundador da gigante do comércio eletrônico Alibaba, que vendia artesanato na rua para pagar o aluguel de seu primeiro negócio. A Alibaba e sua rival JD.com começaram a liberar microempréstimos e outros esforços para apoiar os vendedores ambulantes. O preço das ações da “economia das barraquinhas” – operadores de shopping centers, fabricantes de guarda-chuvas e montadoras que fazem picapes que podem ser convertidas em lojas móveis – aumentou.

Os comentários de Li também inspiraram o humor negro. Jovens profissionais falavam sobre o que poderiam vender, agora que a perspectiva de carreira deles havia diminuído. Talvez café artesanal em um carrinho atrelado a uma bicicleta? Serviços jurídicos à beira da estrada? Imagens editadas do Capitão América vendendo protetores de tela de smartphones, da Mulher-Maravilha puxando um carrinho de macarrão e do presidente Donald Trump vendendo legumes circularam na internet chinesa.

Em seguida, veio a reação. Alguns comentários sobre a renda desapareceram. Na plataforma de mídia social WeChat, um artigo que Li escreveu em 1997 sobre um professor de jardim da infância foi excluído por violar regulamentos. As ações da economia estagnada despencaram.

A mídia oficial começou a controlar o entusiasmo. “A economia estagnada não é apropriada para cidades de primeiro nível”, declarou a China Central Television, a emissora estatal, referindo-se a cidades relativamente ricas como Pequim e Xangai. Permitir que a economia estagnada retorne a essas cidades é o “equivalente a retroceder em décadas da noite para o dia. É deixar para trás o crescimento de alta qualidade”.

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Para qualquer chinês que já esteve em um mercado aberto ou viu vendedores ambulantes intimidados por autoridades locais, deve ser bastante óbvio que operar uma barraca é uma maneira difícil de ganhar a vida. Somente para aqueles com poucas habilidades ou outros meios de sobrevivência é que se poderia chamar a atividade de opção. Mesmo aqueles que levaram a ideia a sério provavelmente viram a venda de rua para trabalhadores educados como apenas algo temporário, como Xie em Pequim.

Mas essa era uma conversa necessária para um país que ainda tenta descobrir como prover seu povo. O governo estabeleceu a meta de criar nove milhões de novos empregos este ano, menos que os 11 milhões do ano passado. Isso não será suficiente para os 8,7 milhões de jovens que se formam este ano, além dos muitos trabalhadores e profissionais que perderam o emprego com a forte crise econômica.

Também levanta a questão de saber se a China se esquecerá novamente das centenas de milhões de trabalhadores de baixa remuneração que ainda dão duro para sobreviver, apesar da riqueza de seu país.

“Quando eles precisam de você, você é um empreendedor. Quando eles não precisarem de você, você será uma monstruosidade para a aparência da cidade”, diz uma piada de mídia social amplamente divulgada sobre a incerteza de ter uma barraquinha.

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