Chuva fina e frio no fim de tarde em Paris. Com o endereço em mãos, começo a observar a principal rua de Montmartre, um dos bairros mais famosos da capital francesa. Em meio a prédios antigos, que abrigam cafés e restaurantes, uma janela que ocupa dois andares chama atenção. A iluminação permite identificar a decoração e acompanhar a movimentação dos moradores. Não é necessário nem checar o endereço, tenho certeza de que é ali que mora um dos maiores artistas catarinenses.

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>> Instituto Juarez Machado deve ser aberto em 2014 em Joinville

Atrás da porta de ferro do prédio de quatro andares número 55, da Rue des Abbesses, está o ateliê/lar de Juarez Machado. Nas escadas que levam ao apartamento, um portão enfeitado com lápis coloridos dá as boas-vindas. É o primeiro sinal artístico (que depois se tornaria apenas mais um detalhe) em um ambiente com peças de todas as técnicas, do metal ao desenho.

Cerca de 30 degraus acima, Melina Mosimann, presença forte na vida do artista, espera na sala decorada com muitos quadros, pincéis, vasos Lalique, flores e máscaras penduradas no teto. Em minutos, Juarez surge impecável em jeans preto e camisa branca.

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Uma taça de vinho e a conversa flui, no melhor estilo europeu. Cercado por suas paixões (Melina incluída), Juarez conta um pouco de seu cotidiano e revela como, ao longo de 30 anos, foi construindo a relação com o bairro que inspira muitos artistas, mas onde poucos têm condições de morar.

Criação não linear

Em frente ao sofá da sala, sobre um tapete persa sem um pingo de tinta, uma tela no cavalete parece estar quase concluída. Percepção errada: ao lado da mesa de refeições, Juarez mostra uma série de telas que se acumulam. Todas em fases distintas, mas com temas e cores semelhantes.

Às vezes, pinta um quadro sobre outro já pronto, em outras deixa a obra “adormecendo” até ficar no ponto para ser concluída. Sua criação não é linear. Uma forma de criar tão peculiar quanto sua visão de mundo. A obra no cavalete, que faz parte da série, é para um amigo de Curitiba e mostra a realidade sendo observada em cada uma das cenas, com misturas de cores sóbrias e quentes, bem ao estilo Juarez.

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As novas telas dividem espaço com o passado do artista. Nas paredes está o quadro de uma de suas exposições em Paris (Manifestação na Praça da Bastille,1995), ao lado de uma obra sobre as noivas (Casamento da Viúva,1991). Abaixo, Saudades do Tom ao Piano 2, que entregaria ao amigo Tom Jobim, falecido antes de recebê-la, em 1994.

No canto da sala cheia de vasos com centenas de pincéis – todos brasileiros – ficam também as palhetas e os pincéis usados. Consciente do valor de sua assinatura, Juarez manda emoldurá-los para dar de presente aos amigos.

O jardim suspenso dos namorados

A casa iluminada pela luz natural tem o primeiro andar reservado para o quarto do casal. O espaço íntimo guarda algumas características de Juarez, como oito gavetas só com camisas brancas e pretas – muitas ainda embaladas. No closet também fica outra marca do artista: os sapatos bicolores exclusivos, feitos sob medida.

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O toque do mestre está presente em todas as partes. Acima da cama, um quadro pintado em tempo recorde, retrata Melina nua. A obra foi composta logo no início do relacionamento, há oito anos, como uma provocação a amigos que vieram visitá-los.

Melina se diverte ao contar o episódio. Diz que ele colocou o quadro na sala só para esperar que as pessoas fizessem uma pergunta e ele pudesse dar uma resposta indiscreta.

Fotos: Fabiana Maruno/Especial

Perto da cama, sobre um espelho com as inicias JM e moldura de marchetaria estão Branca de Neve e os sete anões junto a um grupo de porquinhos – uma forma que Juarez encontrou para realizar a declaração de amor pedida por Melina. Ela queria que a princesa e seus amigos estivessem no “jardim suspenso”, improvisado sobre a marquise de uma loja, mas o artista impôs seu jeito inusitado e uniu-os aos porquinhos na parte de dentro da casa.

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Ervas e chás acondicionados em pequenos potes recebem cuidados diariamente no espaço que só pode ser acessado pela janela do quarto. Símbolo da cumplicidade de um casal que se trata carinhosamente por “namorado”.

Amigos desde sempre Melina e Juarez viraram “cúmplices” em 2004, quando se olharam de uma forma diferente. Separados e com filhos – Juarez tem três, e Melina, uma filha -, foram muito objetivos e verdadeiros desde o início do relacionamento, quando o artista a pediu em namoro.

– Sempre que nos reencontrávamos, nos divertíamos muito. Com o namoro, não podíamos perder a grande amizade que tínhamos construído.

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Foto: Fabiana Maruno/Especial

Os 27 anos de diferença de idade fazem com que cada um tenha seus objetivos e suas conquistas, mais um motivo para fazerem tantos planos e desenvolverem um jeito próprio de manter suas individualidades: Juarez mora pelo mundo, e Melina, em Joinville. Nos períodos que passam juntos, vivem uma deliciosa história de amor, até meio egoísta, define Melina, pois gostam tanto de conversar por horas seguidas, que às vezes se isolam do mundo.

– O Juarez tira de mim as melhores gargalhadas – derrete-se.

O carinho entre os dois está explícito em pequenos gestos, como num leve toque no braço dele e na risada fácil diante de uma cena inusitada de Juarez. Para celebrar os momentos juntos, estabeleceram uma rotina de trabalho que se encerra no fim de tarde. A partir dali, vão juntos para a cozinha, preparam o jantar com elementos frescos. Escolhem o vinho e, na pequena mesa decorada com flores, trocam ideias e fazem planos para o futuro.

Das ruas para as colunas

Com as paredes todas tomadas e produção intensa, o artista se viu obrigado a comprar parte do prédio ao lado para servir como ateliê e ter um quarto a mais para abrigar os amigos – só naquela semana, três pessoas haviam passado por lá.

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No espaço ainda improvisado estão guardadas peças que correm o mundo, como um quadro usado em uma exposição de Yves Saint Laurent, documentos – que Melina tenta organizar – e relíquias: os primeiros desenhos de Juarez, aos 3 e aos 11 anos.

É neste lado da casa que ele se inspira para fazer a coluna dominical do Diário Catarinense e A Notícia. Em um bloquinho, anota todos os insights, que normalmente nascem no momento da foto. Quando não surgem na hora, as fotos vão parar em uma grande gaveta, junto com lembranças de amigos e fãs. Um dia podem sair dali, mas é raro irem parar nas páginas do jornal.

Foto: Romí de Liz/Agência RBS

Juarez prefere compor suas colunas em um processo totalmente manual, da concepção à montagem. Não se entende muito bem com a tecnologia e se nega a escrever seus textos no computador. Precisa enxergar a arte pronta, tocar.

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Da janela do segundo andar, observa o mundo e decodifica a realidade por meio das palavras. Interpreta o que vê e traz uma simbologia para ser entendida. Nas colunas, consegue ser profundo em frases sintéticas, transportando o leitor para a Paris que só ele conhece.

Reiventando-se aos 73

Na entrada do restaurante La Mascotte, escolhido para nosso jantar, monsieur Machado e Melina são saudados pela garçonete com intimidade e levados à mesa preferida. Juarez olha o cardápio já conhecido e mostra-se um pouco indisposto. A garçonete sugere trazer o que ele gosta: um prato com vários queijos, e ele aceita. Melina e eu escolhemos vieiras com purê de salsão.

Atrás da mesa, a chef prepara um crepe. Ao ver o fogo subindo, o artista não tem dúvidas, desarruma o cabelo e faz pose para uma foto. No grande salão, em meio a muitos casais saboreando frutos do mar, o artista é novamente o centro das atenções.

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Romí de Liz, Juarez Machado e Melina no restaurante La Mascotte. Foto: Arquivo Pessoal

Cardápio escolhido, vinho na mesa e a conversa continua. Desta vez, com um tom um pouco mais sério. Juarez revela que está em um momento especial, repensando a vida e a arte após um susto no meio ano.

Em junho, ele descobriu que estava com um câncer de intestino. Sempre com a presença de Melina, procurou médicos, fez cirurgia em Curitiba e está bem. Mas o episódio mexeu com a cabeça do homem de 73 anos.

O artista, que fazia no tape o que hoje só é possível digitalmente, tem seus dilemas quanto ao futuro da arte e em como se reinventar. Nos anos 1970, no Fantástico, ele era visionário, montava e apagava elementos do cenário como em um Photoshop manual. Viu o digital muito antes de acontecer.

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Hoje percebe que a arte está em uma encruzilhada com a expansão das expressões artísticas por meio da tecnologia, mas acredita que nada vai substituir a técnica e a pesquisa.

– Fazer coisas novas é como cruzar uma ponte. O medo não está em cruzá-la, mas em não conseguir voltar.

Sem acomodação, mas com uma pegada um pouco mais lenta depois da doença, ele se propõe a reinventar sua história a cada dia e lidar com a volatilidade do mundo digital. Neste conflito entre o passado e o futuro, fazendo arte para embalagens de perfume, chocolate, esculturas ou pintando telas, o que mantém a alma de Juarez feliz é a criação diária.

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Dalí, Renoir, Machado

Em um passeio noturno pelo bairro, Juarez e Melina falam sobre o que os atrai nas redondezas e no quanto Montmartre respira arte até na decoração das casas. Melina aponta para um apartamento que parece iluminado por mangueiras, como se fosse uma instalação. Em outro, os lustres são um luxo.

Juarez mostra os endereços onde moraram artistas como Salvador Dalí, que tem um museu dedicado a sua arte; e Renoir, que pintou ali duas de suas obras mais conhecidas, O Camarote e A Bailarina.

Foto: Fabiana Maruno/Especial

O artista conta um pouco da história do bairro e mostra que, algumas quadras mais adiante, fica o maior cemitério do bairro, um dos mais famosos do mundo, onde estão enterradas figuras como Edgar Degas, Émile Zola, Jean Bernard Foulcault, Stendhal e Dalida, cantora que se suicidou no fim da rua que fica em frente ao prédio de Juarez.

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No extremo oposto do bairro está a basílica Sacre Couer, cuja escadaria de 222 degraus é usada diariamente por Melina para se exercitar. Na Rue Tholozé, na quadra próxima à casa de Juarez, fica uma de suas paixões: o único cinema de Montmartre, o Studio 28, cuja sala idealizada por Jean Cocteau acomoda apenas 170 espectadores e só exibe filmes de arte.

Paris é a base de Juarez Machado na Europa, assim como Joinville e Rio de Janeiro são no Brasil. Em cada cidade, o artista mantém um lar montado. Até suas centenas de camisas são mantidas. Ele conta rindo que quando contratou uma nova empregada, no Rio de Janeiro, ela comentou com uma vizinha que ele era médico.

Localizado estrategicamente próximo aos centros de arte, o ateliê/lar é o ponto de referência para o planejamento de exposições pelo mundo, como a que está ocorrendo, neste mês no sul da França.

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O tempo do artista também é dedicado ao Instituto Juarez Machado, que teve como primeiro evento a exposição de 70 anos do artista, no ano passado, no Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), em Florianópolis. O instituto foi a forma que Juarez encontrou para dar perenidade às pesquisas artísticas e ajudar a desenvolver a arte.

Inspiração para Amélie

Na manhã seguinte, mesmo com a chuva persistente, proponho darmos uma volta à luz do dia. Quando sai à rua, Juarez é saudado por sorrisos e apertos de mão entusiasmados. O dono do mercadinho deixa o caixa para cumprimentá-lo, a menina da floricultura distribui sorrisos. O artista é festejado em cada esquina. Na localidade que abrigou Picasso, Edith Piaff e Renoir, monsieur Machadô é rei.

Juarez dá uma lição sobre a localização do bairro que abriga dois pontos paradoxalmente famosos, o cabaré Moulin Rouge e a basílica de Sacre Couer: Montmartre não é Paris. Ali, muitos moradores dizem nunca ter ido a Paris. Consideram o bairro como uma cidade. O próprio artista diz que faz o roteiro só quando necessita ir ao banco, o mesmo há 30 anos. Um pouco mais tarde, revela que o Louvre também é um de seus destinos em Paris, pois lá há referências para tudo.

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Foto: Lumière/Divulgação

O amor de Juarez pelo bairro é recíproco. Quando chegou ao reduto de mestres da arte, a primeira surpresa veio da dona da padaria, que deu-lhe um pedaço de papel para carregar o pão. O motivo não era a higiene do pão, mas não sujar a mão do artista com farinha.

Ele conta que, na morte de Ayrton Senna, a rua toda veio lhe dar pêsames. Quando o Guga ganhou em Roland Garros, recebeu parabéns, mas também teve que ouvir muitas gozações na vitória da França sobre o Brasil na Copa de 1998.

– Quando ouvi eles me chamando, abri a janela e fiz um sinal para que ficassem em silêncio. Logo depois, dei uma “banana” com o braço e fechei a janela rapidinho. Só fiquei ouvindo as vaias – conta, rindo.

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A presença do artista na região é tão forte, que levou o cineasta Jean-Pierre Jeunet a se inspirar na paleta de cores usadas por Juarez para conceber Amélie Poulain (2001), um dos clássicos do cinema francês moderno, filmado em Montmartre. A poucas quadras do prédio de Juarez, o bar em que a personagem principal trabalhava atrai a atenção de turistas ávidos por uma foto no cenário.

Na posteridade, o nome de Juarez deverá estar gravado em uma plaquinha na porta do prédio da Rue des Abbesses construído em 1896 com a indicação de que ele morou ali, assim como ocorre com todos os grandes artistas cultuados na memória de Montmartre.