Há pouco menos de um mês, o mundo da ciência foi sacudido pelo anúncio da descoberta de um estado da matéria além do sólido, líquido, gasoso e plasma que aprendemos na escola. É um fenômeno difícil de explicar – e mais difícil ainda de entender –, mas que pode resultar em materiais supercondutores com aplicações no dia a dia, desde transmissão de energia até computadores com capacidade de processamento infinitamente superiores aos atuais. Entre os americanos, austríacos e alemães da equipe que conduziu os experimentos, há um único brasileiro: Germano Woehl Jr., catarinense de Itaiópolis, atualmente pesquisador no Instituto de Estudos Avançados da Força Aérea Brasileira (FAB) em São José dos Campos (SP). Na entrevista a seguir, o físico fala sobre a participação no processo e como faz para conciliar os afazeres de cientista com o trabalho voluntário que realiza em escolas por meio do Instituto Rã-Bugio para Conservação da Biodiversidade. Aos 57 anos, casado, sem filhos (“por opção”) e desapegado dos bens materiais, quando não está congelando átomos por aí é quase certo que ele estará no meio do mato na região de Guaramirim protegendo alguma espécie ameaçada.

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Como um sujeito de Itaiópolis nascido, aluno do ensino médio e fundamental em escolas públicas, vai parar em um avançado instituto de pesquisa?

Desde os 11 anos eu tinha o sonho de ser cientista. Acho que o que motivou foi eu estar assistindo com meu pai à chegada da (nave) Apollo 11 à lua (em 1969) – lembro muito bem, eu tinha nove anos. Na escola, gostava de ler bastante, embora nunca tivesse visto como era o trabalho de um cientista porque em Itaiópolis não existia.

Qual foi a reação de seus pais quando o senhor disse que queria ser cientista?

Meu pai teve um AVC quando eu tinha três anos e ficou bem debilitado, nunca o ouvi falar. Mas sempre fui muito estimulado a estudar. Diziam para mim: “Se você quiser ser alguém, tem que estudar!”. Venho de uma família de agricultores. Passamos por muitas dificuldades, então estudar era um jeito para tentar sair da miséria, digamos assim. Chegou um momento em que minha mãe tirava leite de vaca e eu o entregava nas casas, a gente vivia disso. Com a morte do meu pai, quando eu estava com 12 anos, a gente teve que se esforçar bastante para vencer as adversidades.

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No que consiste a descoberta da equipe de pesquisadores da qual o senhor é um dos integrantes?

A gente conseguiu observar um novo estado da matéria e também um novo tipo de ligação química: uma maneira de os átomos se ligar que ninguém tinha observado antes. Todo mundo está habituado com os estados (da matéria) sólido, líquido, gasoso e plasma. Descobrimos que, em condições extremas, há um estado diferente. Esse estado é chamado de “polarons de Rydberg” e é criado em temperaturas extremamente baixas, por isso que se diz “átomo frio”. Participei da preparação dos feixes de lasers para aprisionar os átomos e resfriá-los para obter a condensação de Bose-Einstein (fase da matéria formada por bósons – partículas – a uma temperatura muito próxima do zero absoluto). São temperaturas tão baixas que só existiram no início da formação do universo. Nessas condições, a matéria exibe um comportamento puramente quântico, com propriedades “mágicas”.

Como o senhor foi parar nessa equipe?

Fui fazer pós-doutorado em Houston, no Texas (Estados Unidos), na Rice University. É uma universidade que foi fundada em 1912 em homenagem a William Rice, um bilionário que deixou toda a fortuna dele para criar a instituição. A cultura de doar bens para educação ou para promover melhorias na cidade, como um parque, é muito comum por lá. Essa técnica de fazer “parar” os átomos com lasers é recente. Em 1997, pela primeira vez foi observado isso que (Albert) Einstein previu, a condensação de Bose-Einstein. Os descobridores acabaram ganhando o prêmio Nobel naquele ano. Fui trabalhar com o professor Thomas Killian, que havia sido orientado por um desses premiados. Ele me aceitou porque eu havia trabalhado nessa área durante o doutorado na Unicamp: também “freando” átomos, mas não a ponto de chegar a observar esse fenômeno. Então eu já tinha essa experiência quando apareceu a oportunidade de fazer o pós-doutorado lá. Escolhi esse laboratório porque eles já faziam muitas pesquisas nessa área.

Qual a aplicação dessa descoberta no dia a dia?

Uma das primeiras aplicações desse material quântico obtido em 1997 foi em sensores inerciais usados em navegação, robótica ou aviação. Esses sensores de átomos frios são extremamente precisos, 10 bilhões de vezes mais do que os de fibra ótica, por exemplo. Também pode abrir caminho para novas tecnologias em materiais supercondutores a temperatura ambiente, que conduzem eletricidade sem perdas. Itaipu, por exemplo, não perderia 30% da energia na transmissão entre a usina e os centros de consumo no Sul e Sudeste. Não só na transmissão, mas também dentro de motores, porque essa perda se dá por calor.

Há alguma previsão dessas aplicações chegarem ao cotidiano?

É difícil precisar quando, mas está andando muito rápido. Desse material quântico, a aplicação mais imediata que surgiu foi, como já falei, em sensores inerciais. Mas poderá ser aplicado ainda em computadores quânticos, inclusive já tem protótipo. São computadores com uma capacidade de processamento tamanha que consegue quebrar todas as senhas de computadores do mundo. A expectativa é de que esses materiais quânticos causem um impacto na sociedade muito maior do que os materiais semicondutores, que provocaram toda essa revolução que vivemos hoje, com computadores sendo usados para qualquer coisa. Os materiais quânticos vão substituir os componentes eletrônicos atuais, possibilitando mais economia e mais segurança. Essa nova tecnologia permite também entendermos melhor como se formam certas ligações químicas dos átomos.

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Seria possível uma descoberta assim no Brasil? Quais são os principais entraves para o desenvolvimento da ciência no país?

Seria quase impossível, principalmente devido à falta de recursos. O Brasil investe pouco em ciência. Houve cortes nesse programa com o qual eu fui (estudar nos Estados Unidos), era uma bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Hoje há apenas um aluno de Física contemplado, enquanto países mais pobres mandam centenas de pessoas ao exterior. É muito importante mandar pesquisadores para fora, a gente ganha experiência. A Física é bastante avançada no Brasil, eu sou fruto disso. Só consegui ir para uma universidade de ponta nos Estados Unidos porque tive uma base muito boa aqui. Mas muitos investimentos foram cortados; quando tem crise a primeira área que sofre é a ciência. E é uma área que nunca deveria ser cortada, e sim haver investimentos constantes, porque não podemos viver eternamente vendendo soja, minérios e outras commodities. Um dia isso vai acabar e, se nós quisermos gerar empregos e renda, temos que nos desenvolver também em tecnologia.

Na sua opinião, o ensino público hoje é capaz de produzir novos “Germanos” como fruto de uma política de educação ou só por acaso mesmo?

Realmente, sou uma exceção. Tive sorte porque meu ensino médio foi muito bom. Mas hoje decaiu muito. Nosso sistema de ensino está falido, os políticos tinham que dar mais atenção. É preciso investir mais, a começar pela remuneração dos professores. Fazer como a Coreia do Sul fez: gastar 60% do orçamento do país em educação básica. O salário de professor lá é maior do que o de médico, todo mundo quer dar aula. Aqui, o salário do professor tinha que ser no mínimo uns R$ 10 mil. Se pagasse bem, teríamos professores de altíssimo nível. Mas, mesmo com todas as dificuldades, em nosso trabalho nas escolas vemos como há professores motivados, competentes e dispostos a fazer de tudo para dar a melhor formação aos alunos e produzir os profissionais que o Brasil precisa para se desenvolver. Imagine se ganhassem melhor! Se não for feito isso, não adianta.

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O senhor também faz trabalho voluntário em escolas, como é isso?

Por meio da ONG (o Instituto Rã-Bugio para Conservação da Biodiversidade, que fundou em 1998 com a esposa, Elza, em Guaramirim), ensinamos Educação Ambiental às crianças. Focamos na conscientização sobre a importância de se preservar as áreas remanescentes da Mata Atlântica, principalmente a proteção dos mananciais e da biodiversidade. É como se fosse uma aula prática de Biologia.

Como o senhor concilia o trabalho de pesquisador com o voluntariado?

Eu vou (para Guaramirim) aos finais de semana e feriados. A ONG cresceu tanto que foi necessário que Elza ficasse em Santa Catarina. Tivemos de fazer esse sacrifício e vivermos separados por causa do projeto – esse trabalho que fazemos de levar as crianças em trilhas na Mata Atlântica para aprender sobre biodiversidade é, na verdade, o nosso projeto de vida.

Como o senhor mantém a ONG?

A maioria do financiamento obtemos submetendo projetos a empresas ou quando têm editais públicos. Também é possível fazer doações em dinheiro em nossa página na internet. As pessoas que ajudam se tornam sócios-contribuintes.

O que o levou a se dividir entre a ciência e a ONG?

Por causa da minha ligação com a natureza. Eu via tudo sendo destruído e pensava: “Temos que fazer alguma coisa”. Aí me ocorreu a ideia de comprar áreas, que é outra coisa que fazemos muito também: com nossas economias, adquirimos terras e as transformamos em reservas. Já temos 860 hectares classificados pelo governo como unidades de conservação, a matrícula do imóvel deixa claro que nunca poderão ser desmatadas.

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Mas sobra dinheiro para um pesquisador no Brasil ficar comprando terras?

A gente não tem um nível de consumo muito alto. Nossos carros são simples, levamos uma vida sem desperdício, não costumamos viajar com frequência, então dá para economizar.

O que é mais difícil, fazer as pessoas entenderem as descobertas da Física que o senhor está envolvido ou que é preciso proteger a natureza?

(risos) Entender que é preciso proteger a natureza é muito mais complicado, sem dúvida. Às vezes, a gente não tem liberdade de andar nas nossas próprias terras, porque há ameaças, caçadores… Cuidar do meio ambiente no Brasil é uma atividade perigosa.