Ainda que haja divergências na natureza da expressão, os teóricos concordam que canto do cisne nasce de um eufemismo poético (não são todos?) para o último suspiro, o qual seria o mais belo. No cinema, é o último filme de um cineasta, a sua palavra final dentro das artes. De certa forma, ele pode ser um apanhado de todo o trabalho de alguém, o diagnóstico de uma filmografia ou o acalanto para seus fãs. A história nos conta, entretanto, que qualquer que seja o resultado, a decepção varia entre um filme abaixo do esperado ou o “cair da ficha” que aquele de fato é a obra derradeira do diretor.

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Poucos são os que compreendem que estão realizando seu último trabalho. Alguns escritores, talvez. Charles Bukowski deixava claro em Pulp sua proximidade com a morte, por exemplo. Mas com exceção de quem exerce algum poder ou consciência sobre seu último trabalho – Alan Parker simplesmente parou de dirigir –, a maioria dos cineastas não controla sua última respiração no cinema. E, assim, os trabalhos nem sempre saem como seus fãs esperam. Hitchcock parou em A Trama Macabra. Embora críticos defendam que Frenesi simboliza um canto do cisne mais apropriado. Amigos, Amigos, Negócios à Parte, de Billy Wilder, tampouco faz jus ao brilhantismo anterior do polonês. O mesmo com A Voz da Lua, de Fellini, A Condessa de Hong Kong, de Chaplin, Dama por Um Dia, de Capra, Os Comancheros, de Curtiz, Monstros da Cidade Submarina, de Jacques Tourneaur, e Os Vivos e Os Mortes, de Huston.

Por outro lado, alguns desses “cantos” foram os filmes mais conhecidos de seus autores – o caso de Jacques Becker, com o fabuloso A Um Passo da Liberdade, cuja natureza ambígua fascinava, e As Coisas Simples da Vida, de Edward Yang. Já Krzystof Kieslowski apostou na sua trilogia das cores como a principal referência de seu cinema, A Fraternidade é Vermelha é um epílogo de encher os olhos; Wes Craven, igualmente, retornou ao mundo que lhe consagrou, o de Woodsboro, em Pânico 4; Lucio Fulci usou um pseudônimo para realizar seu último filme e fugir dos holofotes, em Porta para o Silêncio; e o italiano Mario Bava, quiçá meu diretor favorito, também não esquivava do que já havia arquitetado em suas outras obras-primas, no seu canto de cisne Schock. Ao mesmo tempo, Charles Laughton fez seu primeiro e último filme com O Mensageiro do Diabo, deixando-nos apenas com a sensação de promessa. Jean Vigo, com O Atalante, é dono de sensação semelhante.

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Sem contar os filmes que fazem jus às filmografias de seus respectivos realizadores: De Repente, Num Domingo, de Truffaut; Tabu, de Nagisa Ôshima; A Prisioneira, de Clouzot; Mandadayo, de Kurosawa; Gertrud, de Dreyer; Saraband, de Bergman; Os Mil Olhos do Dr. Mabuse, de Fritz Lang; Querelle, de Fassbinder; A Rotina Tem Seu Encanto, de Ozu; O Inocente, de Visconti; Passagem Para a Índia, de Lean; Ivan, de Eisenstein; Um Homem e o Cinema, de Alberto Cavalcanti. Além de alguns dos meus favoritos: Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto, de Sidney Lumet; O Sacrifício, de Andrei Tarkovsky; Esse Obscuro Objeto do Desejo, de Luis Buñuel; Saló, ou os 120 Dias de Sodoma, de Paolo Pasolini; De Olhos Bem Fechados, de Kubrick; Era uma Vez na América, de Sergio Leone; A Última Noite, de Robert Altman; A Idade da Terra, de Glauber Rocha; e, claro, agora parte dessa seleção – Cosmos, do ucraniano Andrzej Zulawski, que não deixou de perseguir um padrão no controverso, no “feio” e no surreal durante suas obras; e Um Alguém Apaixonado, de Abbas Kiarostami, de quem nos despedimos nesta segunda-feira, 4 de julho. Seriam necessárias mais do que quatro ou cinco mil palavras para falarmos de todos os cantos de cisnes que alcançam o merecimento de fazer parte da poesia da expressão.

Em Um Alguém Apaixonado, o espectador tinha apenas quatro lugares para se situar na narrativa: um café, um trajeto de taxi, um apartamento e dentro de um carro. A força da obra de Kiarostami estava concentrada nessa lentidão precisa e na peculiaridade da simplicidade aleatória da vida. Contando com poucos personagens para dar profundidade, assim, o diretor conseguia estabelecer uma complexidade até para um taxista ou uma senhora que observava a vida passar pela vista limitada de uma janela. Quem sabe, a janela seja exatamente a grande metáfora para os filmes de Kiarostami.