Ex-integrante da assessoria jurídica para casos de direitos humanos da Presidência da República, Maria Laura Canineu dirige o novo escritório da Human Rights Watch (HRW), primeiro na América Latina. Fundada na década de 1980, é uma das mais respeitadas organizações não governamentais internacionais. Com uma equipe formada por cerca de 400 pesquisadores, elabora dezenas de informes sobre a situação dos direitos humanos em cerca de 90 países.

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Hoje, em eventos concomitantes em São Paulo e em uma dezena de cidades no Exterior, a HRW lança o Relatório Mundial de Direitos Humanos 2014, com um capítulo específico sobre o Brasil.

Maria Laura lamenta o fato de o país, apesar de ter influência crescente no cenário internacional, omitir-se em resoluções que poderiam fazer pressão sobre o governo sírio e o fato de descumprir a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos de punir os crimes cometidos durante o período da ditadura militar.

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Seguindo críticas já feitas em anos anteriores, a organização aponta graves desafios aos direitos humanos no país, com a política carcerária e violações cometidas por policiais.

Leia ao lado trechos da entrevista realizada ontem, por telefone.

Zero Hora – Como a HRW avalia a atuação da polícia na repressão aos protestos de junho?

Maria Laura Canineu – Vemos com bastante apreensão o uso da força pela polícia nessas ocasiões, atingindo inclusive jornalistas, agindo arbitrariamente contra estudantes e outros manifestantes. Esse é, sim, motivo das nossas preocupações dentro do relatório. Mas, acreditamos que essa ação policial nos protestos não foi uma ação isolada. Há, por trás, um problema maior, sistêmico, na ação policial. Há uma falta de preparo para lidar com essas multidões, o que se está verificando também agora nesse novo fenômeno dos rolezinhos. Esse padrão também se repete nas investigações, com torturas nas abordagens policiais.Citamos o caso Amarildo, que retrata um problema muito maior dentro de uma medida no Rio de Janeiro para se fazer policiamento mais ostensivo nas comunidades carentes, mas que ainda repete o padrão de conduta agressiva.

ZH – O relatório de 2013 fez críticas profundas à política carcerária no Brasil. Houve algum avanço?

Maria Laura – Reconhecemos avanços, como quando a presidente Dilma lançou no ano passado o Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura, mas os apontamentos em relação à questão carcerária mostram mais retrocessos. A questão carcerária reflete um problema crônico de negligência do poder público. O poder público ignora a superlotação, com presídios operando 45% acima de sua capacidade e com os próprios presos controlando o acesso e o seu destino.

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ZH – Há recomendações sobre o modelo de gestão de presídios?

Maria Laura – Pedimos a aplicação das normas internacionais. A Convenção Internacional de Direitos Civis inclui algumas normas que devem ser observadas pelo país, como, por exemplo, o tratamento humano de todos os presos, a separação de presos em condição provisória e condenados definitivamente, a possibilidade de reinserção social. Não achamos que haja um modelo. Não fazemos um ranking de modelos positivos e negativos. Pode ser um modelo público, um modelo privado, público-privado, desde que essas normas internacionais, das quais o Brasil é signatário, sejam observadas.

ZH – O caos nos presídios brasileiros é comparável à situação carcerária em algum outro país?

Maria Laura – Não fazemos um ranking. Levantamos os temas mais preocupantes. Condições carcerárias são um tema preocupante em vários países, inclusive nos latino-americanos, como a Venezuela e o México, principalmente. Mas não é toda a hora que se vê decapitação dessa forma degradante como se viu no caso do Maranhão. Não se espera de um país como o Brasil esse nível de violação dos direitos humanos.

ZH – O relatório critica a postura brasileira em relação aos direitos humanos em países como a Síria?

Maria Laura – Esse balanço dos direitos humanos também se aplica ao Brasil como país do qual se espera uma atuação muito maior e mais relevante no plano internacional. Assim como a presidente Dilma Rousseff exerceu liderança na questão do direito à privacidade e da vigilância massiva dos EUA, reconhecemos que o Brasil pode fazer muito mais em relação à Síria. Diferentemente de Chile, Argentina, Honduras, Panamá, Uruguai e Paraguai, o governo brasileiro não apoiou a iniciativa da Suíça de levar a Síria ao Tribunal Penal Internacional. Quando o Brasil fala, pode ter uma função internacional muito relevante, mas, quando se omite, pode ter uma influência negativa nas grandes questões de direitos humanos no mundo.

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ZH – O estabelecimento da Comissão da Verdade é suficiente para retratar os abusos da ditadura?

Maria Laura – Saudamos o estabelecimento da Comissão da Verdade, mas isso não significa o cumprimento das obrigações internacionais, uma vez que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já determinou que o país punisse os responsáveis por esses crimes. A Comissão da Verdade é muito importante, em termos de realização do direito à memória e à verdade, mas não é suficiente como medida de enfrentamento da impunidade. Como o Brasil acedeu voluntariamente à jurisdição da Corte, afirmamos que a decisão no caso do Araguaia é obrigatória (A Corte condenou o Estado pelo desaparecimento de 62 pessoas entre 1972 e 1974 e determinou a investigação, a retratação das vítimas, e a punição dos culpados, o que obrigaria o Brasil a rever a Lei da Anistia).