Desde 1980, quando atendeu o primeiro sequestro, o delegado Renato Hendges, 65 anos, tornou-se símbolo da Polícia Civil catarinense na investigação e prisão de um dos crimes que mais traz pavor e transtornos psicológicos às vítimas e familiares.

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Agora a luta contra o segundo câncer interrompe a saga de 34 anos contra sequestradores. O pedido de aposentadoria para cuidar da saúde representa o fim da era Renatão, como é conhecido, na Divisão Antissequestro da Diretoria Estadual de Investigações Criminais (Deic), em Florianópolis.

Foram mais de três décadas, pelo menos 30 anos casos de sequestros resolvidos somente em Santa Catarina – além de outros Estados brasileiros. Com a saída do policial mais experiente da Polícia Civil catarinense, foi dissolvida a equipe da divisão. Alguns policiais o acompanhavam há décadas.

O grupo alcançou resultados impressionantes: esclareceram todos os sequestros praticados no Estado, libertando vítimas de cativeiros e prendendo quadrilhas – algumas internacionais e que causaram pânico em todo o Brasil entre as décadas de 1980, 1990 e 2000. Confira os principais trechos da entrevista ao DC:

Como foi a decisão de se aposentar?

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Profissionalmente acho que cumpri a minha missão como policial. Me considero realizado. Podia ter me aposentado há 18 anos. Sou totalmente satisfeito com minha família, que hoje está unida me dando força, os amigos, as manifestações das pessoas, da sociedade.

Em quantos sequestros atuou?

Todos em Santa Catarina a partir de 1987 como delegado. Antes, em 1980, atendi um como comissário. Também dois no Mato Grosso, um em Maceió (Alagoas) e um na Argentina (representante da Busscar de Joinville), que graças a Deus foi solto. Fui lá para salvar. Porque o anterior mataram e o posterior também. Lá na Argentina a lei não permite, em tese, pagamento de sequestros, a imprensa divulga fatos. Num deles, publicou que a polícia tinha rastreado um telefonema. Foram lá e mataram o cara no cativeiro.

Aconselha o pagamento do resgate?

O sequestro tem que negociar e pagar. Mas depois a polícia tem que agir. Tem que pagar o menor valor possível porque se oferecer logo o valor eles são capazes de exigir o dobro. Deve-se negociar exaustivamente por causa da segurança da vítima e só com orientação da polícia. Deve-se entrar em contato imediatamente com a polícia. A técnica é assim: temos uma equipe pronta para atuar e já vou orientando o delegado da cidade a tomar algumas providências.

Qual a prevenção para evitar sequestro?

Evitar muita exposição na mídia, a questão de funcionários que podem estar envolvidos com pessoas… É difícil. O sequestro diminuiu muito no Brasil. A polícia se organizou, começou a ter experiência. O auge ocorreu nas décadas de 1990 e 2000. Aqui íamos para um hotel, onde era feita a reunião. Era 24 horas ali. Nunca na casa da família. A gente transferia até o telefone da família.

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Teve sequestro de pessoa humilde?

Teve, uma menina de Barreiros, de oito anos. A mãe, às 6h, quando recebeu o telefonema, reconheceu a voz do sequestrador, que era o próprio padrinho. Em 24 horas tivemos que agir se não iam matar a menina. A mãe chamou o sequestrador pelo nome.

Além da inteligência policial o que é preciso para investigar sequestros?

Tem que ter malandragem. Na minha delegacia fizemos a primeira interceptação de telefone celular no país, a primeira de MSN (caso de uma grávida desaparecida em Joinville). Ela fugiu e sem estar grávida. Tive que movimentar operadoras e provedores. Ela trocava mensagens com o marido, com suposto nome falso. Também fizemos a primeira interceptação da quebra da caixa do IMEI em caso de pedofilia. O cara ia na lan-house, abria o endereço, botava todo o conteúdo de pedofilia na rede. Onde fica esse material? Na operadora na Microsoft, nos Estados Unidos. Vieram 300 gigas de material de pedofilia. Foi a primeira quebra de endereço eletrônico.

E a mesma equipe ao longo desses anos?

Tinha uma equipe. O Mário Rocha trabalhou 26 anos comigo. Agora foi para o expediente da Deic com a Rossi. O Martins e o Tiago foram para outras equipes. Não sei como fica. Quem vai atuar num caso de sequestro agora cabe ao diretor do Deic. Só fui lá, peguei as minhas coisas. Não sei quem vai me substituir. Deixo a critério de quem vai ter essa responsabilidade daqui para a frente. Tem que continuar. Porque o crime de sequestro sempre vai repercutir, por causa da vida. Uma falha qualquer pode por em risco a sobrevivência da vida no cativeiro.

Os casos de sequestros estão diminuindo em Santa Catarina?

Totalmente. A própria imprensa dizia que aqui todos os casos eram resolvidos. Mas tem que manter porque hoje a maioria, vai numa roda de droga, o que eles pensam: “vamos sequestrar o filho do dono do jornal, o dono da empresa tal, que tá aparecendo”. Houve período em que havia quadrilhas.

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E o sequestro mais tenso?

Foi o do Brandalise (dois filhos da família, de 8 e 14 anos, em Videira, em 1988). Teve tiroteio mas não participei porque comandava a negociação em Videira com a família, orientando e tal. Quando entrevistei os garotos, repassei à equipe a informação. Em Camboriú houve o pagamento, as ligações, o cativeiro era por ali, um Buggie vermelho abordado. Trocamos informações e em duas horas levantamos quem estava envolvido, um policial inclusive. Eram do Mato Grosso, Neder Vicente Nunes e Lafaiete Nunes. Depois fizeram o sequestro do Wagner Canhedo (empresário dono da Vasp).

Houve um caso em que refém morreu?

Um único caso, do ex-prefeito de Papanduva (Nataniel Ribas, em 2007). Ele já tinha sido morto. Mataram na abordagem e colocaram ele num cemitério. Uma semana depois prendi os autores. Quando eu cheguei já orientei a família para continuar negociando, mas já sabendo que…

Tem contato ainda com vítimas?

Tenho, algumas ainda me ligam. Meu método é de coordenar e no momento vou junto. Antes ia mais. Tomei até um tiro. Alguém tem que coordenar, comandar. É experiência, coordenação e depois execução. Enquanto o sequestro perdura você tem que aproveitar as informações e a equipe atuando sem colocar em risco a vida do refém. A polícia sempre diz que não está, mas está atuando.

Falou com algum sequestrador no andamento do sequestro?

Já libertei do cativeiro por telefone. Porque ele soube da prisão de colega. Foi do golpe do chute (venda de mercadoria que não existe). Tem o sequestro de cativeiro clássico, 3, 4, 5 dias e tinha o do golpe do chute. Na operação cativeiro foram 36 presos, 31 condenados e me parece que recorde de 1,9 mil anos de penas aos condenados.

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E o crime organizado, atentados, PGC (Primeiro Grupo Catarinense) no Estado?

Tem que investir no combate, pegar gente experiente, trazer gente de fora. O Brasil num dado momento quando veio essa onda de sequestro a polícia estava totalmente despreparada. Agora vejo ameaças. Aqui em SC somos uma população muito pacata. O crime organizado está pegando pesado. Está se solidificando o tráfico de drogas, hoje o crime do momento. Por que SC teve toda essa queimação de ônibus? Porque o Estado falhou. Penitenciária, superpopulação, maus-tratos. Todo mundo sabe. Vi pela imprensa que com o PGC, o governo não cumpriu acordo. Não é que o governo fez acordo. Veio uma comissão de Brasília visitar a cadeia, “nós vamos acertar”. E depois não acertou. Em todo presídio tem crime organizado. É fácil identificar alguém da quadrilha, muito fácil, mesmo não usando celular, só telefone público. Sempre fazem contato com a família. É uma questão de inteligência e perspicácia. O bandido sempre deixa rastro.

E o sequestro em 2005 com bandidos paraguaios em Joinville (do empresário Sidnei Hahnemann)?

Foi duro. Eram os dois mais procurados, estavam com extradição, tinham sido resgatados de um presídio de Curitiba com 15 elementos na quadrilha. Negociação difícil. Eles compraram chip na véspera de receber o dinheiro. Sabíamos que o pagamento ia ser dia 30 de dezembro. O homem (pai da vítima) já tinha o dinheiro. Na véspera, num dos telefones que estavam, habilitaram esse chip. No dia seguinte já estava interceptado o chip. Acompanhamos tudo. Eles se comunicavam entre eles. O cara pegou o dinheiro e correu para a casa da mulher que estava dando apoio. Botaram as armas no forro. Estava na escuta e a equipe em Curitiba com o Tigre (grupo da polícia do PR esperando). Tínhamos levantado essa casa de apoio.

O senhor passou a maior parte das investigações na escuta telefônica?

Só na escuta, na coordenação, no viva-voz. Teve um caso em Xavantina (2002) em que o sequestrador chegou num orelhão, ligou para a mãe e falou que se fosse para chamar ele era devolver a ligação nesse orelhão que ele morava bem na frente. O refém foi solto pelo carcereiro porque não aguentava mais. Eles abandonaram o cativeiro, não levaram comida, o rapaz ficou no mato, frio, luz de vela, não tinha barraca. No fim de semana o sequestrador batizou uma filha. Nós filmamos. E quando o refém foi solto, recolhemos ele na estrada e já começamos a prender. E para prender esse em Curitiba, ele tinha dito “liga para esse telefone que alguém atende e me chama”. Aí o doutor Ênio (Matos) fez essa ligação para um telefone público, “quer falar com quem?, Ah com o Vilmar”. Ah, o cara (sequestrador) veio na hora e foi preso.

E o caso mais complicado?

O do Batistella (empresário Carlos Batistella, em 1991, em Lages), foram 66 dias de cativeiro. É o que mais me deu trabalho pela periculosidade. Resgatamos no cativeiro. Alugamos uma casa do lado. Pegaram US$ 130 mil. Eu disse que não iam libertar porque não houve finalização da negociação. Compraram uma casa na praia do Grant, em Piçarras. Tinha um carcereiro, a vítima acorrentada. Conseguimos interceptar o telefone depois de 60 dias. Fui a Goiás, ao Mato Grosso. Faziam pouco contato, a cada 10 dias. Peguei o avião do governo e fiz essa turnê. Com a interceptação alugamos uma casa do lado do cativeiro. Tinha gente em Itapema, era a maior quadrilha com mais de 20 assaltos (a gerentes de bancos). Há pouco tempo fizeram em Lages de novo, essa é uma modalidade que vai continuar (contra gerentes de bancos).

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E síndrome de Estocolmo (estado psicológico em que a vítima cria laços afetivos com o raptor)?

Existe. A filha do Silvio Santos queria distribuir cesta básica. Em todo o sequestro a partir do primeiro instante já começa a ocorrer. É sintomático pela necessidade de sobrevivência.

Como vê a divulgação pela imprensa do sequestro em andamento?

Nunca escondi nada da imprensa e por isso sempre tive o apoio. É uma faca de dois gumes. No do Wellington Camargo (irmão dos sertanejos Zezé di Camargo e Luciano), a imprensa foi responsável pelo corte da orelha. Tive contato com esse caso, forneci até o equipamento para acompanhar o digital. A família acertou, ia pagar US$ 300 mil. Polícia, todo mundo quieto. Veio uma emissora e divulgou um 0800 para levantar o dinheiro. Aí os sequestradores estavam assistindo. O valor passou a ser US$ 2 milhões se não iam cortar a orelha. Foi uma tragédia (cortaram a orelha e mandaram para a emissora). Num caso em Xanxerê ligaram “tamo com o filho, queremos tantos milhões e quando vocês tiverem o dinheiro botam a caminhonete no bar tal, com a luz acesa. A família morava em Xanxerê e o sequestro foi em Rondonópolis (1999). No sétimo dia reuni a imprensa e divulgamos uma nota, agradecendo o silêncio, dizendo que estamos negociando e em breve esperamos o nosso filho de volta”.A imprensa publicou. Não deu meia hora e uma ligação: “mas nós que estamos com o sequestrado”. Aí foi mais 15 dias e resgatamos ele num cativeiro numa fazenda. A imprensa precisa colaborar.