Nessa vida de repórter a gente aprende a fazer conexões. Uma dessas aprendi muito cedo: redação de jornal em regime de plantão, esvaziada, sem o tradicional burburinho, é tão triste quanto hospital aos domingos. Sem equipes médicas numerosas e com poucas ou sem visitas, o ambiente hospitalar se torna ainda mais triste. Um dia compartilhei essa ideia com Carlos Machado Fehlberg, médico formado sem nunca exercer a Medicina, e jornalista igualmente profissional sem nunca ter deixado de sê-lo. Inclusive nesta semana derradeira, em que ficou numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

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Conheci Carlinhos, como amigos e familiares o chamavam ainda estudante. Trabalhei com ele em Zero Hora e no Diário Catarinense. Acabamos amigos, relação que se intensificou quando ele casou-se com a colega Estela Benetti.

Acompanhei as doenças e o quadro de piora de sua saúde. Mas nem o AVC e a perda da fala interromperam nossa comunicação: sempre que o visitava a gente “falava” de jornalismo, de reportagem, de matérias, de jornal, de guerra. Sim, no sentido de que fazer jornal é estar em estado permanente de guerra. Num desses diálogos, Fehlberg criou uma expressão, algo como “matirias”. Entendemos que seria “matérias”.

Na terça, o visitei na UTI. Estava agitado, e naquele momento precisando ser contido. Estela encontrava-se sozinha, e quase sem conseguir. Lembrei-me de nossas conversas, e também do que me disse uma amiga: a audição é o último sentido que perdemos. Retomei antigas conversas. Pronunciei palavras como “jornal”, ” “notícia”, “fechamento”, “calma”, “vamos para guerra “, “obrigada por seres um grande jornalista”, ” eu estou aqui”, “redação”. E, claro, “matirias”.

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Aos poucos, as coisas foram se acalmando. Algumas palavras que não entendemos, mas até um sorriso foi esboçado por ele, no leito. Minutos depois eu me despedia do ex-chefe e amigo. Hoje, coube a mim um pedido para escrever algumas linhas. Lembrei do que me ensinou: quanto mais fonte, mais credibilidade ao texto. Mas fontes boas.

O jornalista Cláudio Thomas sucedeu Fehlberg à frente da redação do DC. Reconhece a boa relação e o aprendizado que ocorre especialmente a partir de março de 1998, período de transição entre a aposentadoria de um e a chegada em Santa Catarina de outro. Foi o tempo de identificar sobre as três peixões de Fehlberg: o jornalismo, o Vasco da Gama e a política. Em seguida, observa Thomas, entra em cena uma quarta: Estela Benetti, a qual contribuiu muito para dar uma vida mais centrada no conceito propriamente dito de família.

— Fehlberg era espetacular: mesmo fora da redação, todo o dia descia para dar ideias, para sugerir pautas, para traçar um panorama sobre o o contexto jornalístico do momento. Era muito articulado, conhecia muita gente e os meandros da política — disse.

Jurandir Silveira conheceu Fehlberg em 1989, quando foi convidado a fazer parte da equipe de fotógrafos do jornal Zero Hora, onde Carlinhos era diretor de redação. Mais tarde, em 1993, a dupla voltaria a trabalhar no Diário Catarinense. Silveira era o editor de fotografia.

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— Fehlberg não tinha só conhecimento da profissão: era possuidor de um grande faro jornalístico — recorda Silveira.

Outro repórter fotográfico que se diz privilegiado por ter trabalhado com Fehlberg é Júlio Cavalheiro. Era o ano de 1981, e Cavalheiro iniciava a carreira no laboratório fotográfico, em Zero Hora:

— Fehlberg tinha uma memória invejável. Entrava no laboratório, pedia um foto de fulano de tal, assim e assado. A gente nem sempre achava, e ele: “temos sim, foi publicada a uns seis meses atrás, na coluna tal”. Mesmo que estivesse mal indexada, podia procurar que seria localizada. Foram muitos furos jornalísticos que resultaram da sua obstinação, como a morte da Princesa Daiana, que fez o DC furar o Brasil inteiro.

A jornalista Juraci Perboni trabalhou com Fehlberg como repórter e com produção de pauta no DC:

— Estamos falando de alguém que vivia intensamente o jornalismo, 24 horas por dia. Era um prazer viver essa experiência de buscar sempre o melhor jornalismo possível, de ser cobrado por quem realmente entendia do assunto. Não havia furo em outro veículo concorrente (jargão do jornalismo de quem da uma informação exclusiva) aceitável por Fehlberg.

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A jornalista Romi de Liz considera que aqueles que passaram pelas redações em que Fehlberg atuou têm alguma história para contar. Seja por conta da sua personalidade distraída, seja pelo perfeccionismo jornalístico:

— Mas absolutamente por seu jeito humano nas relações.

Núbia Silveira conheceu Fehlberg muito jovem e foram contemporâneos em algumas redações, como no DC . Ela lembra quando, ao ser designado presidente da República, o general Emílio Garrastazu Médici, convidou o repórter gaúcho a assumir a sua assessoria de imprensa. Fehlberg não gostou muito da ideia. Mas as direções do Jornal do Brasil e Zero Hora exerceram pressão para que ele assumisse o cargo em Brasília. Foi o que fez.

— Lembro-me bem de uma visita de Médici a sua terra natal, Bagé. Não sei mais por que, repórteres, fotógrafos e cinegrafistas resolveram fazer um protesto. Os da canetinha colocaram blocos e canetas no chão. Os das imagens, câmeras. Tenho gravado nitidamente na minha memória a figura do Fehlberg indo em nossa direção negociar o fim da “paralisação”. Demorou um pouco, mas ele se mostrou um bom negociador e teve sucesso na sua missão — recorda Nubia.

Fehlberg me contou um dia que foi o primeiro jornalista a assinar o documento (se não me engano da Associação Brasileira de Imprensa) que pedia o reconhecimento de que Vladimir Herzog não havia se suicidado, mas morto pelo DOI-CODI, em São Paulo. Como tínhamos maturidade para isso, eu perguntei:

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— Foi o médico ou o jornalista que se convenceu disso?

Bom de redação, saiu-se com a resposta:

— Nessas duas profissões, temos que saber ouvir e perguntar muito, muito. Um erro pode ser fatal. Não só pro paciente e pra fonte, mas também pro médico e pro jornalista.

Sugiro que levemos a sério. Quem falou foi alguém que viveu muito em redação, inclusive domingos de plantões silenciosos. Como este de 15 de janeiro de 2023 em que Carlos Machado Fehlberg nos deixou.