— Eu preferia conversar na minha folga. Porque falar deste assunto mexe muito comigo, eu fico muito mal…
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Durante quase três meses de apuração, a reportagem de ‘AN‘ tentou ouvir relatos de mulheres que foram vítimas de violência sexual em Joinville. A frase acima foi declarada por uma delas e demonstra a complexidade em conversar sobre o assunto. Essas mulheres acabam se sentindo causadoras da violência que sofreram. A culpabilização transparece no julgamento externo, que abre a discussão para a roupa que a mulher vestia na hora do crime ou para o local em que ela estava. O diálogo sobre o tema ainda precisa evoluir e focar na atitude do estuprador, não mais da vítima.
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— Qualquer mulher pode passar por uma situação dessas: as extrovertidas ou introvertidas, de todas as raças, que estejam usando vestido longo ou curto. Independentemente da idade ou da situação socioeconômica, esses crimes existem — aponta a psicóloga Márcia dos Santos.
Dados do Sistema Integrado de Segurança Pública (SISP) demonstram, que até junho deste ano, 90 mulheres foram vítimas de violência sexual em Joinville. O número, atualizado em oito de agosto, reúne informações das delegacias de toda a cidade e abrange crianças, adolescentes e adultas do sexo feminino. Comparando este número ao registrado no mesmo período do ano passado, a incidência deste tipo de crime aumentou quase 17%. Até junho de 2016, 77 mulheres sofreram violência sexual em Joinville.
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Dada a dificuldade das vítimas em relatar a situação vivenciada, todas as entrevistas programadas durante a apuração foram reagendadas diversas vezes. Nenhuma chegou a acontecer. Remexer na lembrança destas mulheres traz à tona o sofrimento e o sentimento de fraqueza diante do crime.
— Toda vez que eu toco no assunto eu fico uns dois ou três dias muito mal. Eu tive bastante problema por causa disso: depressão, síndrome do pânico e mexe muito comigo — completou a jovem.
Números não refletem a realidade
Estupro é a prática sexual sem a permissão de uma das partes, exigida por violência ou ameaças, envolvendo penetração ou não, segundo o código penal. A delegada da Delegacia de Proteção à Mulher, à Criança, ao Adolescente e ao Idoso de Joinville (DPCAMI), Georgia Marrianny Gonçalves Bastos, reforça que a violência sexual é qualquer ato sexual contrário à vontade da vítima.
Ainda que os dados coletados pelo SISP apontem o aumento da incidência do crime, os números não refletem fielmente a realidade. Algumas mulheres em situação de violência sexual ainda têm muito receio de denunciar este tipo de situação, diz a delegada. Os principais motivos que as levam a guardar para si a violência sofrida são: medo, vergonha, não querer se expor e descrédito na Justiça. Esses crimes não comunicados oficialmente à polícia são chamados de ¿cifra negra¿.
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— Pela delicadeza que é esse tipo de crime, os dados não vão conseguir extrair a realidade. É um trauma que só as mulheres entendem, porque às vezes só um olhar já é uma violência — acrescenta.
A reflexão sobre o empoderamento feminino ajuda na percepção das mulheres como donas do próprio corpo. O conhecimento dos direitos da mulher e o maior espaço ao debate sobre o tema nas redes sociais podem incentivar a confiança na denúncia. Para a delegada, os meios de comunicação têm um papel fundamental de repercutir a questão e melhorar a percepção de que ¿não é não¿.
— O acesso à informação produz uma crença na justiça. A mulher pode pensar que, se foi solucionado outro caso, então o dela também será.
Existem situações em que é feita a denúncia – que é formalizada por meio do Boletim de Ocorrência –, mas a vítima opta em não prosseguir as investigações. O processo de relembrar é traumático e algumas mulheres optam por esquecer a história. Nestes casos, o processo é arquivado. Quando o inquérito policial já está instaurado, ele é encaminhado ao Judiciário sugerindo o arquivamento.
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Este procedimento é realizado porque a mulher vítima de violência sexual precisa manifestar a vontade de apurar os fatos. Diferentemente dos casos de abuso sexual em vulneráveis, para mulheres maiores de 18 anos o processo só continua se ela escolher representar o caso. Dentro de seis meses após o acontecido, a vítima pode representar criminalmente a violência sofrida.
Após o registro do BO, a polícia inicia a investigação para apurar os fatos e instaura o inquérito policial. Depois, o documento é encaminhado ao Ministério Público para dar seguimento ao processo. Todo o trâmite pode levar algum tempo, fator que também serve como justificativa para as vítimas desacreditarem ou desistirem da denúncia.
— O processo é longo, porque é bem investigado. Digamos que não é resolvido em dois meses — defende a delegada da Dpcami.
Violação dentro de casa
A visibilidade feminina por meio do empoderamento apresentou uma nova – e real – percepção do papel da mulher na sociedade. Este novo momento fez com que muitas se percebessem vítimas de violência sexual dentro da própria casa. O crime de estupro não acontece somente nas ruas ou envolvendo desconhecidos. O índice das situações dentro do contexto familiar também é significativo.
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— Agora, as mulheres têm conhecimento de que isso é violência psicológica (da mulher ser obrigada pelo parceiro a manter relação sexual), e também configura um crime. Ainda existe uma cultura de que a mulher é obrigada e isso tem que ser desmistificado — ressalta a delegada Georgia Bastos.
A psicóloga Márcia dos Santos explica que o fato de a mulher ter um relacionamento íntimo com o homem não significa que ela esteja disponível para manter relações sexuais na hora que o parceiro quiser. Muitas vezes, nestes casos, ainda persiste um conceito errado de que fazer sexo é mais uma das ¿tarefas¿ da mulher. Entretanto, independentemente do contexto, a especialista reforça que qualquer ato sexual sem o consentimento da vítima é crime.
— O corpo é propriedade da mulher, sendo ela casada ou não. Quem deve decidir se quer ou não é ela. Temos que desvincular essa ideia errada de antigamente que a mulher tinha essa obrigação. Se ela disser não e a outra pessoa obrigar, é violência sexual — ressalta a psicóloga.
Nas situações onde há envolvimento emocional entre o estuprador e a vítima, a denunciante pode se sentir insegura ou, por falta de apoio, não procurar a polícia para denunciar. Márcia ressalta que os chamados laços tóxicos e as relações abusivas também unem, deixando a vítima a mercê do agressor.
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— O que não se pode fazer é julgar essa mulher. Tem inúmeros fatores que envolvem a situação e, se o único caminho que ela enxerga é continuar junto, é essencial que respeitemos o tempo dela, de registrar a denúncia. E nunca, em hipótese alguma, devemos culpar a vítima.