Um homem que já viveu a maior parte de sua vida, mas ainda tem uma incansável curiosidade. Parado em frente à escola onde estudou, não hesita: quer entrar, dar uma espiada. Salim Miguel caminha porta adentro da Escola de Educação Básica José Brasilício, o educandário onde foi alfabetizado em Biguaçu.

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Salim não está aqui por acaso. Seu mais novo romance, Reinvenção da Infância, é um retorno aos tempos de infância. É bom lembrar que ele nasceu no Líbano, mas em 1931 mudou-se com a família para Biguaçu. Foi onde passou maior parte da infância e a adolescência. Era – e ainda considera-se – um libanês-biguaçuense.

A escola José Brasilício está muito diferente da sua época de aluno. Primeiro, está fechada por conta da greve do magistério estadual. Segundo, é outra escola – do prédio acanhado onde aprendeu a juntar letras e palavras, pouca coisa ficou para a posteridade. Hoje, é uma instituição muito maior.

– Não tem nada a ver com o meu tempo – observa.

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Aos poucos, corre entre funcionárias da escola que Salim Miguel está dando uma voltinha pelos corredores. Conversador, o escritor conversa com algumas delas. Fica faceiro quando descobre que o avô de Mauriceia Faria era um dos personagens de sua infância e de seu novo livro: o comerciante Salim Antonio Kaiter, ou o Salim Gordo, que era o apelido pelo qual o conhecia na infância. Um xará. Pede até para tirar uma foto com Mauriceia.

Um dos momentos que definiu a vida do menino ocorreu naquele grupo escolar, em 1932. Era o final do ano letivo. A professora bateu palmas, pedindo a atenção de seus alunos. E falou sobre um aluno que havia chegado há poucos meses ali, um menino que mal sabia falar português – sabia falar árabe e um pouco de alemão. “Agora, no fim do ano, já escreve, lê e fala melhor o português do que vocês todos – e é turco”. Era, claro, não apenas uma homenagem a Salim como uma reprimenda nos demais. A professora deu um tinteiro – a caneta daqueles tempos, que hoje praticamente não se usa mais – como presente ao “turco”.

– Aí eu chorei, não sei se emocionado pela homenagem da professora, ou furioso por ser chamado de “turco”. Todo libanês odiava ser chamado de “turco”. Mas foi um momento importante pra mim. Até hoje eu guardo o tinteiro que ganhei aquele dia – recorda.

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Cidade está “na cabeça”

A passagem está relatada, claro, em Reinvenção da Infância – que será lançado nesta quinta-feira, às 19h, no Espaço Cultural Governador Celso Ramos do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) da Capital.

Um livro curto, com capítulos breves, mas de uma vivacidade desconcertante. O escritor ainda vive as memórias de sua infância. Quando questionado se volta com frequência à cidade onde foi criado, ele diz que não.

– Não preciso voltar à Biguaçu, porque eu tenho toda ela na minha cabeça – explica.

Casarão Born está na memória

O Casarão Born é outro local cuja memória está firme na mente de Salim. Datado de 1891, a construção fica no coração de Biguaçu e foi a moradia de João Nicolau Born, o primeiro prefeito de Biguaçu. Muito da vida social e política da cidade está ligada ao local.

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Voltou por vezes a ser uma residência, mas também já foi o fórum municipal, sede da Sociedade Recreativa 17 de maio, até mesmo a prefeitura e um centro comercial.

O escritor foi um dos nomes que se insurgiram contra a possibilidade de demolição do casarão. Hoje, o prédio de 400 metros quadrados é um centro cultural mantido pela prefeitura.

Salim faz uma visita não anunciada ao local. Lembra com detalhes como era o casarão durante sua infância. Ali existia um bar e um bilhar. O salão da parte superior recebia os melhores bailes da cidade, e as sessões de cinema _ um dos capítulos de Reinvenção da Infância, Na Sala Escura, conta como foi a primeira fita assistida, um western com Buck Jones que teve uma projeção para lá de acidentada.

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Narra, pessoalmente e no livro, outra passagem deliciosa presenciada ali, no imóvel dos Born. Carlos Galhardo, um dos cantores mais populares do Brasil nas décadas de 1930 e 1940, ia se apresentar em Florianópolis e no Rio Grande do Sul. Mas teve que parar em Biguaçu por conta de uma enchente.

– A cidade vivia enchendo de água. A gente sabia até um versinho para a ocasião: “choveu, choveu / Biguaçu encheu / em Florianópolis mal começa a garoar / em Biguaçu já se pode navegar” – recita.

Cantando com o “inimigo”

Galhardo permanecia no casarão, abrigado, enquanto as águas não baixavam. Aflito, já deixava para trás a apresentação na Capital. Estava preocupado com a temporada em Porto Alegre e nas outras cidades gaúchas. E Biguaçu inteira à espera um canja de Galhardo.

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– A gente queria que ele cantasse. Sugerimos ao cantor da cidade, o Roberto Galliani, para aparecer lá e cantar. Quem sabe o Galhardo não se entusiasmava e cantava também? Só que o Galliani pega o violão e começa a cantar uma do Francisco Alves, que era o grande rival de Carlos Galhardo na época – diverte-se Salim Miguel.

Agende-se

O quê: lançamento do livro Reinvenção da Infância, de Salim Miguel

Onde: Espaço Cultural Governador Celso Ramos _ BRDE (Av. Hercílio Luz, 617, Centro, Florianópolis)

Quando: nesta quinta-feira, a partir das 19h

Ingresso: gratuito