Um taxista do Rio dirige rumo à Barra da Tijuca, encontra dificuldades para se situar na região, percebe que, por alguns instantes, está perdido e, ao deparar com um novo viaduto, ainda em trabalhos de arremate, exclama:

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— Caraca, tá mudado pra caramba.

A superfície selvagem do Rio, em que edifícios costeiam gigantescos morros de pedra, se tornou um enorme e caótico canteiro de obras. Maquinário pesado, picaretas, serras, áreas isoladas, trânsito lento, ruído, ruído e ruído.

Aproveitando a iluminação perfeita da praia do Leblon, duas jovens se alongavam na areia antes de uma corrida noturna no último dia 11 de julho em movimentos delicados. A cena graciosa foi interrompida pelo ronco furioso de uma escavadeira que rasgava a orla, entre dois canteiros de construção de novos e ampliados quiosques.

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Essa é a parcela mais visível das transformações do Rio, mas a obra especialmente celebrada está debaixo da terra, a Linha 4 do metrô, ligando Ipanema e Barra da Tijuca em 13 minutos. Hoje, para fazer o trajeto de carro, pode ser necessário uma hora e meia. Deverá atender 300 mil pessoas por dia, retirando 2 mil veículos das ruas, estima o governo estadual.

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Mas, restando poucos dias para a Olimpíada, ao se aproximar do portão de acesso da estação Jardim Oceânico, na Barra da Tijuca, o carioca dá de cara com um cartaz de alerta: “Área isolada. Não ultrapasse, apenas pessoal autorizado”. O metrô ficará pronto somente em 1º de agosto e para uso exclusivo para a Olimpíada. No caminho, devido aos problemas financeiros do Estado, ocorreram atrasos. E a população terá de esperar mais para aproveitar o novo equipamento — 19 de setembro, ainda em horários restritos.

Do lado de dentro da Jardim Oceânico, próxima ao Parque Olímpico, a obra está concluída. O cheirinho de novo está no ar, paredes estão ornamentadas por painéis azulejados que retratam a fauna brasileira. O ambiente é aconchegante. As instalações são modernas e foram pensadas soluções como o céu estrelado: o teto tem aberturas circulares em vidro para aproveitar a luz do sol e reduzir o consumo de energia. Quando estiver funcionando, mudará a vida de parte da população.

Entre promessas cumpridas e descumpridas, a Linha 4 é apontada como o grande legado olímpico. A iniciativa não escapa das críticas, associadas a um suposto projeto de elitização da Barra da Tijuca. O escritor e jornalista João Paulo Cuenca recentemente lançou o filme A Morte de J.P. Cuenca, em que discute a identidade da cidade e aborda as mazelas urbanísticas do Rio.

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— A grande promessa era melhorar a mobilidade, mas ela não se concretizou. O metrô é uma linha reta, existem milhões de críticas sobre o traçado. Meteram para a Barra da Tijuca, onde tem um investimento gigantesco das empresas de construção — afirma Cuenca, que, irritado com o cotidiano local, se mudou para São Paulo.

Para Orlando Santos Junior, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, o metrô não prioriza conexão entre linhas:

— Vão esticando cada vez mais, em vez de construir uma integração da cidade. A Linha 4 não atende às carências sociais. Os investimentos são concentrados e reforçam as centralidades de três áreas: zona sul, zona portuária e Barra.

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O secretário estadual dos Transportes, Rodrigo Vieira, é taxativo ao discordar. Explica que os usuários poderão se conectar com as linhas 1 e 2, garantindo viagens às regiões periféricas. Outro argumento é de que o Rio “é uma cidade espremida entre montanhas, o que levou a população a se fixar na faixa litorânea”.

— Essa crítica não condiz com a realidade, o metrô busca atender ao maior volume de pessoas possível — diz Vieira.

As polêmicas 22 mil remoções

Vinte famílias vivem entre escombros na zona oeste do Rio. Sete delas em casas decrépitas e outras 13 em contêineres improvisados como residências. Há esgoto a céu aberto, entulhos, vergalhões expostos, poeira e barro. Um poste de energia elétrica está escorado nas ruínas daquilo que já foi uma moradia. O cenário fica ainda mais árido porque há obras em andamento na região, com máquinas, terra revirada e barulho constante.

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Meses atrás, houve conflitos e tensão em processo de remoções. Parte da comunidade resistiu. Nas casas remanescentes, bandeiras do Brasil estão hasteadas. Nas paredes, palavras de ordem. “Apartheid”, diz a inscrição ao lado da residência de Bruno Manso de Oliveira, um dos moradores que restaram na Vila Autódromo, na Barra da Tijuca, ao lado do Parque Olímpico.

Somente 20 famílias restaram na Vila Autódromo, na Barra da Tijuca, ao lado do Parque Olímpico Foto: Carlos Rollsing / Agencia RBS

Para permitir a abertura de vias de acesso ao local das competições, 275 habitações da comunidade, que convivia com situações de insalubridade, precisariam ser removidas. Na prática, não sobrou quase ninguém. Das 824 famílias que residiam lá em 2009, restaram apenas 20. Para esses remanescentes, a prefeitura está construindo novas casas de alvenaria, com promessa de urbanização. Para as oito centenas que saíram, foram oferecidas duas opções: apartamentos no condomínio Parque Carioca, em Jacarepaguá, perto da Barra da Tijuca, ou indenização. As negociações com a prefeitura, relatam moradores, foram carregadas de nervosismo.

— As pessoas foram obrigadas a sair. Primeiro tiraram o comércio para dificultar o acesso aos bens — descreve Bruno.

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A família de Márcio Henrique de Jesus Moza resistiu até março de 2016. Antes disso, guardas municipais e escavadeiras cercaram a casa por duas vezes, mas ele conseguiu permanecer com liminares judiciais por ter uma filha recém-nascida. Com o passar do tempo, vizinhos debandaram e a moradia foi ficando isolada. O trânsito de máquinas causou ameaçadoras rachaduras nas paredes. Até o dia em que a subprefeitura da Barra da Tijuca informou que, caso ele não saísse, a Defesa Civil seria chamada para interditar a casa. Também seria aplicada multa por supostamente estar levando risco à vida do bebê. Encurralado, aceitou um acordo e se mudou com a mulher e os quatro filhos para o condomínio Parque Carioca. O conjunto de prédios oferece estacionamento, salão de festa, área de lazer, calçamento. Mas os removidos reclamam da falta de posse dos apartamentos.

— Sonho em me reconstituir onde tenho a minha raiz. Meu filho de sete anos e minha menina de cinco meses nasceram lá. É o carinho pelo lugar, pela terra. Tenho uma história dentro da Vila Autódromo — diz Márcio.

Estudiosos da área urbanística vão além das questões afetivas. Criticam o afastamento das comunidades pobres de regiões que estão sendo dotadas de bens públicos, como metrô.

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— Se você visitar a Barra da Tijuca, vai presenciar enormes vazios, mas não há um plano de habitação social. Por que uma comunidade ali instalada não pode permanecer? Precisamos democratizar a infraestrutura — defende Orlando Santos Junior, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A gestão municipal confirma que, entre 2009 e 2015, 22.059 famílias foram removidas, todas já reassentadas. Do total, quase 16 mil tiveram de mudar de endereço por estarem submetidas a riscos, diz o governo de Eduardo Paes.

— Esse foi um dos maiores ciclos de remoção da história do Rio. A prefeitura extrapolou na argumentação da questão do risco. Fizemos laudos que comprovaram que não havia necessidade de remover favelas inteiras. No caso da Vila Autódromo, nunca ficou claro o objetivo. Uma parte do Parque Olímpico vai se tornar um condomínio de luxo. Fica evidente que a remoção está mais ligada à limpeza da área — diz Alexandre Mendes, professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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Para uma parcela das famílias da Autódromo, concorda Mendes, a mudança de endereço rendeu vida melhor, mas argumenta que urbanizar a comunidade seria mais barato do que erguer o condomínio Parque Carioca. E deixaria as famílias mais próximas do metrô recém construído na região.

O governo municipal informou que, no caso da Vila Autódromo, a maioria das famílias optou por deixar as casas “dada a mudança no padrão de vida dos moradores que já haviam se mudado para o Parque Carioca”. Também afirmou, em nota, que esse foi o único processo de reassentamento que teve relação direta com a realização dos Jogos. 

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