Alguém que arriscasse rotular Melancolia (2011) poderia enquadrar o filme em um gênero singularíssimo: drama psicológico catástrofe. Um dos mais inventivos cineastas contemporâneos, Lars von Trier rodou um conflito familiar e existencial de proporções apocalípticas. Exibido no Festival de Cannes – evento que acabou banindo o diretor dinamarquês. O longa entra em cartaz nesta sexta-feira.
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Melancolia chega ao cinema precedido do perfume de escândalo – mas que tem a ver com seu realizador, não com o filme em si: na coletiva de imprensa posterior à projeção em Cannes, Lars von Trier declarou “compreender Adolf Hitler”, entre outros comentários no mínimo desastrosos, que levaram a direção do festival francês a expulsá-lo do evento por antissemitismo. Seu longa, porém, continuou na competição – e acabou levando o prêmio de melhor atriz, ganho por Kirsten Dunst. Melancolia sucede na filmografia do diretor a Anticristo (2009) – este sim um título polêmico, de viés misógino e sádico, com direito à cena chocante de automutilação genital. Anunciado a princípio como uma versão para o cinema da peça As Criadas, de Jean Genet, Melancolia acabou mantendo da obra do escritor e dramaturgo francês apenas a estrutura calcada na relação de duas irmãs, o nome de uma das personagens (Claire) e o clima de tragédia iminente.
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Da mesma forma que em seu longa anterior, Von Trier inicia Melancolia com uma espécie de clipe musical arrebatador, com cenas filmadas em câmera lentíssima, de estética visual requintada de videoarte e trilha sonora feita de excertos do prelúdio da ópera Tristão e Isolda. Depois de mostrar a colisão de um planeta gigantesco contra a Terra, ao som da música ultrarromântica de Wagner, o filme muda bruscamente de ritmo: uma instável câmera no ombro registra o luxuoso casamento de Justine (Kirsten) e Michael (Alexander Skarsgård, da série True Blood) na bucólica e rica mansão no campo onde vivem a irmã da noiva, Claire (Charlotte Gainsbourg, protagonista de Anticristo), com o marido John (Kiefer Sutherland). Como no dinamarquês Festa de Família (1998), dirigido por Thomas Vinterberg (parceiro de Von Trier no manifesto Dogma 95), a cerimônia de Melancolia aos poucos vai revelando as tensões e os fantasmas que cercam a família da noiva – e expondo principalmente o comportamento ciclotímico de Justine.
O segundo “capítulo” desenrola-se depois do casamento fracassado e concentra-se na relação de Claire com a irmã, o marido e o filho – tendo como pano de fundo a aproximação de Melancolia, astro que vem em direção à Terra, mas que John garante não estar em rota de colisão com nosso mundo. Claire, no entanto, não está tão segura disso, e se angustia cada vez mais com o possível desastre – desesperando-se com o eventual fim de sua confortável existência burguesa. Justine, ao contrário, vai saindo aos poucos da depressão profunda à medida que Melancolia está mais próximo.
Von Trier disse em entrevista que as irmãs Justine e Claire podem ser vistas como dois lados de uma mesma pessoa – o diretor inclusive brinca com essa ambiguidade na fotografia do filme: na primeira parte, dedicada à catatônica Justine, o tom da imagem é um amarelo quente; já na segunda metade, chamada Claire, a autoconfiante irmã mais velha desestabiliza-se emocionalmente sob o azul frio da luz de Melancolia – blue, em inglês, significa tanto azul quanto triste. Prostrado por uma depressão que em 2007 levou-o a internar-se em um hospital em Copenhague e a colocar em dúvida o futuro de sua carreira, Von Trier confessou que Melancolia é uma obra muito pessoal (“Quando escrevo, só consigo escrever sobre mim mesmo”, afirmou o diretor e roteirista). A abrangência de seu réquiem cinematográfico, entretanto, vai além do relato íntimo: Melancolia é uma bela e pesarosa alegoria da inconformidade do homem com seu inescapável fim.
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