De volta à pauta com a ótima série de TV The Americans, a Guerra Fria é o pano de fundo da quarta parceria do diretor Steven Spielberg com o ator Tom Hanks. Ponte dos Espiões, que estreia nesta quinta-feira no circuito de cinemas, reconstitui o contexto de polarização das décadas posteriores à II Guerra Mundial a partir da história de um pacato advogado cooptado pelo governo norte-americano para intermediar uma troca de prisioneiros. Esse olhar “de fora” dos conflitos facilita a vida do espectador, que vai adentrando aos poucos naquele ambiente de maniqueísmos e belicismo nem sempre dissimulado. E, ao final, sai recompensado: trata-se de um thriller envolvente, capaz de fazer a alegria dos cinéfilos saudosos de clássicos como Sob o Domínio do Mal (1962) e O Espião que Veio do Frio (1965).

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Ponte dos Espiões tem roteiro que os irmãos Ethan e Joel Coen e o novato Matt Charman elaboraram a partir da trajetória real de James B. Donovan (papel de Hanks). Começa em uma ponte de Manhattan, onde, em 1957, os Estados Unidos prenderam o espião soviético Rudolf Abel (Mark Rylance, em grande atuação). E só termina em 1960, sobre uma ponte de Berlim, local do desfecho de um dos episódios mais tensos daqueles anos – a troca de Abel por Francis Gary Powers (Austin Stowell), piloto do caça U2 que caiu na URSS ao realizar um voo para fotografar o território do adversário.

Donovan entrou na história como a escolha “neutra” do presidente Dwight Eisenhower para defender Abel em seu julgamento – era importante para os EUA, mesmo em guerra, manter a imagem de país justo com seus prisioneiros. O advogado quase se tornou um inimigo público dos americanos, mas conseguiu convencer o juiz do caso (Dakin Matthews) a não condenar o espião à morte. Argumentou que ele poderia servir de moeda de troca caso alguém com informações confidenciais fosse capturado pelos russos – exatamente o que ocorreria ali adiante.

Donovan virou o típico herói de causas quase impossíveis, que Hollywood adora exaltar, ao aproveitar a ocasião para lutar também pela libertação de um estudante (Will Rogers) que a Alemanha Oriental mantinha sob custódia alegando espionagem. Trazer o jovem para o primeiro plano foi uma aposta de Spielberg nesta sua versão do rumoroso caso, que fora contado, antes, no livro Operation Overflight (de Powers) e em um telefilme de 1976 intitulado U2 – Voo Clandestino. Também chama a atenção o quão nuançada é a imagem do espião soviético pintada pelo diretor e seus roteiristas: o filme apresenta Abel como um sujeito frio e misterioso, porém, dotado de um humanismo que em outras ocasiões acabou sucumbindo ao ranço patriótico por vezes recorrente no gênero.

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O desfecho de Porto dos Espiões contém algum exagero nesse olhar generoso de Spielberg sobre (quase) todos os personagens em cena. “Precisava disso?”, você talvez pergunte após constatar o didatismo – que se confunde com pieguice – das sequências finais. O retrato das relações estabelecidas, de todo modo, sobretudo entre Donovan e Abel, é dos mais interessantes.

Da mesma forma, é estimulante ver a reconstituição de uma Berlim cindida, fria e muito distante de se recuperar do trauma da II Guerra. Se a primeira metade de Ponte dos Espiões tem lugar em gabinetes e tribunais de Nova York – fazendo lembrar o gosto de Spielberg pelos bastidores do poder, vide Lincoln (2012) -, o segundo ato é primoroso em sua representação da capital alemã à época. Como em alguns dos outros longas de guerra do cineasta, a exemplo de O Resgate do Soldado Ryan (1998), a capacidade de envolvimento do espectador deve muito à construção visual e à ambientação como um todo.

Aqui de maneira particular: emulando os melhores títulos de Guerra Fria de outrora, Ponte dos Espiões é um suspense que não confunde alta voltagem com histeria – e se constrói mergulhando lentamente na personalidade dos envolvidos e nos conflitos que os circundam.

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Ponte dos Espiões

(Bridge of Spies)

De Steven Spielberg

Suspense, EUA, 2015, 141min, 12 anos.

Cotação: muito bom.