Fazia pouco mais de um mês que a jovem de Itajaí havia casado quando a notícia começou a viralizar. Amigos marcavam seu nome nas redes sociais, ligavam para perguntar o que estava acontecendo, confirmavam que tinham ido ao casamento. Mas de nada adiantaram os desmentidos. Em ritmo exponencial, a história foi sendo compartilhada, eventualmente seguida de uma risadinha ou comentário jocoso. Desde então, volta e meia a moça precisa explicar que não, ela não é a “noiva abandonada no altar após usar camiseta engraçadinha”.
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Na foto, ela aparece feliz da vida, rodeada por cinco amigas. Na cabeça, usa um véu. No peito, uma malha branca com a inscrição que, em português para menores, poderia ser traduzida como “quem teve o privilégio de experimentar seus encantos, que lembre de cada momento; quem não teve, jamais será premiado pelo destino com outra oportunidade”.
No texto, a moça que aqui terá o anonimato preservado é uma moradora de Brasília de 24 anos chamada Thais dos Santos. Faltando minutos para o casório, seu noivo, Juan Castilhos, recebeu a tal imagem via WhatsApp, não gostou do que leu e a deixou plantada na igreja. Segundo o redator, elas alugaram uma limusine e desfilaram pela cidade tomando espumante para comemorar a despedida de solteira. Depois, caíram na gandaia e deu no que deu. A própria noiva se desculpava, dizendo que estava “cazamiga”, bebeu um pouco a mais e foi obrigada a vestir a camiseta, mas que ama o noivo.
Só a foto é verdadeira. O primeiro registro do uso da imagem identificando-a como a desventurada brasiliense foi encontrado em um site genérico de fofocas. Um portal mineiro achou interessante e reproduziu. O poder multiplicador da internet se encarregou do resto. A partir da segunda quinzena de novembro do ano passado, o que era para ser uma saudosa recordação publicada em um perfil pessoal virou uma dor de cabeça para a moça de Itajaí:
– Já falei o suficiente, não quero mais falar sobre isso.
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Antes de adotar o silêncio, ela disse que o noivo sabia da despedida de solteira e da existência da camiseta marota. Que o boato tomou uma proporção que não imaginava. Que foi muito ofendida apenas por uma brincadeira sem maldade nenhuma. Que não fez nada de errado. E que casou – como mostram fotos dela no dia das núpcias com as mesmas amigas na mesma rede social – e continua casada, sim, senhor.
A moça de Itajaí foi vítima de uma fake news. Apesar de ter se popularizado recentemente, a expressão (notícia falsa, em inglês) nasceu no final do século 19. De acordo com o dicionário Merriam-Webster, em 1891 o jornal The Buffalo Commercial (de Buffalo, Nova York) já garantia que “o gosto público não aprecia as notícias falsas (…), como as que lhe foram servidas por um serviço noticioso local há um ou dois anos”. Naquela época, podia até ser. Hoje, o público não só as aprecia como contribui de forma ativa para sua disseminação.
Conforme o Google Trends, que mede os termos mais procurados na web, as buscas por fake news se intensificaram no último novembro. A torrente de desinformação já havia sido creditada como uma das responsáveis pelo Brexit, a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, decidida em referendo em julho. O ápice, porém, ocorreu durante a eleição presidencial nos Estados Unidos. Enquanto a “noiva abandonada” ainda estava prestes a bombar na internet brasileira, mentiras apresentadas como reportagens inundavam o cenário virtual americano, explorando tendências, estimulando preconceitos e manipulando estatísticas.
A vitória de Donald Trump, surpreendente por contrariar todas as pesquisas de intenção de voto, acendeu o alerta. Uma coisa é alguém ser prejudicado por alguma inverdade veiculada a seu respeito. Outra, com consequências muitíssimo maiores, é quando os dois países sinônimos da civilização ocidental têm seus destinos influenciados pela produção e distribuição sistemática de notícias falsas. O fenômeno preocupa empresas de tecnologia e de comunicação, impõe mais rigor na checagem dos fatos e reforça a importância do jornalismo como aliado indispensável à democracia.
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Balela, boato, caô, cascata, conto da carochinha, embromação, embuste, falcatrua, farsa, fraude, godô, golpe, intrujice, logro, lorota, migué, patacoada, patranha, potoca, tapeação. Na virada de 2016 para 2017, a interminável lista de vocábulos relacionados à mentira ganhou um integrante ilustre: pós-verdade. O neologismo foi escolhido como a palavra do ano passado pelo respeitável dicionário britânico Oxford. Significa “fazer referência ou denotar circunstâncias em que fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que apelos à emoção e a convicções pessoais”.
Achou eufemismo demais para definir o velho hábito de ludibriar o próximo? Experimente este, mais simples, mas igualmente revelador das intenções de quem o adota: fatos alternativos. Na novilíngua (obrigado, George Orwell!) praticada pelo estafe de Trump, trata-se de “uma afirmação que contraria evidências, não se pode provar e continua sendo repetida oficialmente”. Qualquer semelhança com a máxima do ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels – “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade” –, deve ser paranoia de algum eleitor de Hillary Clinton que não se conformou com a derrota.
O malabarismo semântico surgiu logo na posse do republicano, em 20 de janeiro. Era uma resposta àqueles que ousaram duvidar de que o público concentrado em Washington para vê-lo se tornar o homem mais poderoso do mundo havia sido o maior da história, como proclamou o porta-voz da Casa Branca. Afinal, tanto fotos quanto o volume de passageiros no metrô sugeriam que a assunção do antecessor, Barack Obama, atraíra mais gente. Coube ao âncora de um dos principais programas televisivos de debates políticos dos Estados Unidos, Chuck Todd, da BC encerrar o debate. “Fatos alternativos não são fatos”, decretou.
– A pós-verdade funciona como um sistema paralelo de crenças, que abandona o racional e lida mais com o intuitivo – conceitua o professor de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador de mídia Rogério Christofoletti.
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Daí a ampla receptividade a promessas de soluções simplórias para problemas complexos. Tanto faz se são inexequíveis, inviáveis ou puramente fantasiosas. O que importa é acenar com alguma esperança, oferecer consolo, vislumbrar alguma luz no fim do túnel. Junte isso com a) uma população que cada vez mais se informa por meio de redes sociais sem contato com as fontes originais; b) a acirrada polarização política; c) a rapidez da propagação; e d) o interesse ideológico e, sobretudo, econômico em maximizar a distribuição e pronto, estão fornecidas as condições para engrossar o caldo da desinformação.
Christofoletti cita o levantamento do site BuzzFeed que aponta que, entre agosto e novembro do ano passado, as fake news tiveram 8,7 milhões de compartilhamentos no Facebook – singelezas como “Papa declara apoio a Trump” ou “agente do FBI que expôs e-mails de Hillary é encontrado morto”. No mesmo período, as notícias convencionais – isto é, verdadeiras – foram compartilhadas 7,8 milhões de vezes.
– Não à toa, Facebook e outras partes interessadas criaram um fundo de US$ 14 milhões para ajudar as pessoas a distinguir informações falsas. O sistema corre perigo – alardeia o professor, referindo-se ao programa que se propõe a melhorar a confiança no jornalismo.
Além da rede de Mark Zuckerberg, empresas como Google, Twitter, Washington Post, Le Monde e G1 já testam projetos de verificação e identificação da veracidade do conteúdo que veiculam. Como se o público fosse composto somente por inocentes que, inadvertidamente, passaram para frente a mentira que receberam.
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Mal caiu o avião com o relator dos processos da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Teori Zavascki, você deve ter clicado no vídeo com a revelação bombástica. Em roupas de ginástica, uma mulher loira revelava que uma fonte anônima da Aeronáutica tinha descoberto que o responsável por autorizar o voo, a despeito das condições climáticas adversas, fora um militar filiado a um partido político interessado no arquivamento das investigações. Toda serelepe, ela encerrava com um padrão clássico de fake news: o pedido para que a “informação” fosse compartilhada com o máximo de contatos.
O impressionante nesse caso não é uma “parajornalista” (categoria que está para o jornalista como um paramédico está para um médico) ter furado as dezenas de profissionais envolvidos na cobertura da queda da aeronave. O que mais espanta é alguém acreditar nisso, ainda que o cheiro de fraude exalasse por todos os bytes. Pois muitos acreditaram ou, mesmo sabendo que era mentira, repassaram – talvez a segunda opção seja menos pior, por pelo menos insinuar algum propósito por trás.
Até porque as pessoas são inclinadas a aceitar aquilo que reafirma o que elas acham. Reportagem da revista New Yorker de fevereiro mostra o quão difícil é mudar opiniões já cristalizadas. Os diversos experimentos mencionados convergem para a constatação de que, uma vez formadas, as impressões são notavelmente perseverantes, por mais que os fatos insistam em ir na direção contrária. Isso explicaria também porque sites, blogs e redes sociais, embora apresentem os menores percentuais de confiança entre os brasileiros ouvidos pelo Ibope na Pesquisa Brasileira de Mídia, tem seus conteúdos tão compartilhados.
– Mas é um erro achar que estejam só “pregando para convertidos”, ou seja, para quem já está predisposto a acreditar naquilo por concordar com o enunciado. Em paralelo, há um imenso contingente que está boiando e pode vir a aderir – pondera Christofoletti.
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A professora da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUC do Rio Grande do Sul Fernanda Cristina Vasconcellos, amplia a discussão. Para ela, outro problema é que há uma indústria de fake news a serviço desta ou daquela causa, valendo-se do formato noticioso para disseminar suas visões de mundo. Ou, simplesmente, ganhar dinheiro.
– Cedo ou tarde, isso teria que ser estudado, mas o resultado da eleição nos Estados Unidos e do referendo na Inglaterra apressaram o processo – diz ela, que desde 2008 trabalha com jornalismo digital.
No exterior, o BuzzFeed denunciou que um dos polos difusores de fake news situa-se em Veles, uma cidade com menos de 50 mil habitantes na Macedônia. Lá, dezenas de sites produziam conteúdo repleto de click baits (iscas para serem clicados, como palavras que chamem a atenção). Neste modelo de negócio, notícias a favor de Trump ou contra Hillary visavam mais à monetização via ferramenta Adsense de anúncios do Google do que a convencer os internautas de que o republicano seria melhor presidente do que a democrata.
No Brasil, a Folha de S. Paulo apurou a existência de uma fábrica de fake news no interior de Minas Gerais, sede de sites como Pensa Brasil, Brasil Verde Amarelo, Diário do Brasil, Folha Digital, Juntos pelo Brasil, Jornal do País, Saúde, Vida e Família, Você Precisa Saber, Em Nome do Brasil, Folha de Minas, The News Brazil e Na Mira da Notícia. Todos faturam com conteúdos apelativos que impulsionam a audiência. Em dezembro, somente o Pensa Brasil, por exemplo, teve 701 mil visitantes únicos, com média de três páginas vistas por dia (dados da empresa comScore).
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Na ponta oposta, fake news, “fatos alternativos” e toda a sorte de mentiras rotuladas como pós-verdade fazem crescer o nicho de fact-checking. A origem da empresas especializadas em checagem de fatos remonta a 1991, quando o canal de TV por assinatura americano CNN incumbiu um de seus jornalistas de conferir se as declarações dos potenciais candidatos à presidência do país diziam a verdade. Em 2003, nasceu o primeiro site independente dedicado exclusivamente à atividade, o FactCheck.org, em funcionamento até hoje.
Entre seus similares nacionais estão a Lupa e o Aos Fatos, ambas criadas em 2015. A primeira é uma agência com oito funcionários (seis jornalistas), custeada pela revista Piauí e parceira da Folha de São Paulo e da rádio CBN. O outro é um site com três profissionais fixos e dois colaboradores (quatro jornalistas), que viabiliza sua operação mediante crowdfunding (financiamento coletivo) e apurações sob demanda. As duas se propõem a ensinar o público leigo a fazer suas próprias checagens.
– Nossa checagem só é publicada se houver fontes públicas. Se houver dados conflitantes, damos todas as versões – diz a subeditora da Lupa, Juliana Dal Piva.
Na avaliação de Tai Nalon, cofundadora do Aos Fatos, ainda existe uma dependência muito grande de informações oficiais porque a cultura da transparência é muito recente no Brasil. Ela cita como exemplo a terceirização, assunto em que os dados públicos sobre o número de trabalhadores nesse regime são vagos e imprecisos.
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– Aí recorremos a estudos independentes. Mas, como eles também podem ter seus interesses, informamos ao leitor: olha, tal fonte apoia tal entidade.
A ascensão desse tipo de segmento leva à outra questão: se empresas de fact-checking vieram para ficar, não significa que os veículos jornalísticos estão falhando em um de seus princípios básicos, a checagem? Juliana e Tai garantem que não. Por ser mais aprofundado, o serviço prestado por suas empresas requer mais tempo, mercadoria que quase nunca os jornais têm. Lupa e Aos Fatos são complementares, não concorrentes da mídia tradicional. Para o professor Christofoletti, todos esses movimentos, com seus percalços, guinadas, recuos e avanços, irão contribuir para a qualidade do produto oferecido ao público.
– É uma oportunidade incrível para o jornalismo recuperar terreno e os jornais se posicionarem, respeitando suas características e convencendo os leitores de que a informação pode chegar depois, mas chegará melhor.
