*Por Eshe Nelson
Há quase dois anos, o governo britânico parecia estar prestes a fazer algo realmente inédito a respeito da desigualdade étnica e racial. Theresa May, primeira-ministra na época, adotou um plano para eliminar uma das principais causas da diferença de renda, com o objetivo de, segundo ela, “criar uma força de trabalho mais justa e diversificada”.
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Era outubro de 2018, durante o Mês da História Negra do Reino Unido, May sugeriu que o governo exigisse que as empresas e outros empregadores de grande porte divulgassem as disparidades salariais entre seus funcionários com base na origem étnica, como havia exigido recentemente em relação ao gênero dos trabalhadores. A primeira-ministra anunciou um período de três meses para a realização de debates públicos sobre o tema, antes de colocar em prática a nova regra. “Muitos trabalhadores que pertencem a minorias étnicas sentem que não têm oportunidades de progredir na carreira”, disse May.
Coletar e analisar esses dados, que nenhum outro país parece exigir, permitiria que as empresas percebessem as disparidades salariais e identificassem as razões para a falta de gerentes negros, por exemplo, com o objetivo de fazer algo a respeito.
Mas, depois que o período de debate foi concluído, em 2019, pouco se ouviu sobre a regra.
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Pelo menos até que o início das manifestações antirracismo, realizadas este ano depois do assassinato de George Floyd, dessem vida nova à ideia. Em junho, uma petição para tornar obrigatória a declaração de diferenças salariais entre grupos étnicos dentro de uma mesma empresa reuniu mais de cem mil assinaturas. Em resposta, o governo afirmou que publicaria uma atualização até o fim do ano, depois de receber mais de 300 comentários de empresas e outras organizações.
A falta de progresso durante um ano e meio não passou despercebida para David Isaac, que está deixando seu cargo na Comissão de Igualdade e Direitos Humanos do governo. Em julho, ele afirmou que estabelecer a nova regra seria uma vitória rápida para o governo, que, segundo ele, estava “enrolando” em vez de agir em favor da igualdade étnica e racial.
Desde que Isaac assumiu o cargo há quatro anos, três primeiros-ministros do mesmo partido assumiram o poder, duas eleições gerais foram realizadas, houve o Brexit e, depois, a pandemia. Além disso, quatro análises foram patrocinadas pelo governo para avaliar questões de desigualdade étnica, que resultaram em quase cem recomendações.
Isaac contou que, quando assumiu a comissão de direitos humanos, acreditava que poderia fazer muito, e disse que desde então ajudou mais pessoas a enfrentar batalhas legais pela igualdade de direitos. Porém, ao deixar o cargo, ele ainda questionou por que o governo não aproveita o desejo das empresas de fazer mais para diminuir as desigualdades, e comentou que é preciso agir mais do que fazer novas análises. “O tempo das recomendações acabou. Já sabemos o que precisa ser feito. É melhor começar logo”, declarou à BBC.
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Kemi Badenoch, ministra da igualdade no governo do primeiro-ministro Boris Johnson, comentou que “simplesmente não é verdade” que o governo tenha interrompido os avanços. Segundo ela, o legislativo está trabalhando para adotar a maior parte das recomendações de uma análise realizada em 2017 sobre como “negros, asiáticos e membros de outras minorias étnicas” são tratados pelo sistema jurídico. Entre as propostas, está a coleta de mais dados sobre etnia em todo o sistema penal e o recrutamento de equipes mais diversificadas para trabalhar nas prisões.
Em resposta aos protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), Johnson também criou uma nova comissão focada nas disparidades étnicas e raciais, com o objetivo de redigir novas recomendações de ação para o governo até o fim do ano. Badenoch disse à BBC que esse novo painel representa um recomeço: “Para a comissão, escolhemos integrantes que nunca fizeram esse tipo de análise antes, para que não trouxessem recomendações preconcebidas. Não podemos fazer as coisas com pressa.”
Badenoch também acrescentou que a comissão avaliaria por que o público tem a impressão de que o governo não faz o bastante para diminuir as desigualdades.
Em meio à crescente indignação com as desigualdades, a divulgação da diferença salarial é algo que pode ser feito rapidamente, comentou Isaac durante uma entrevista ao “The New York Times” no início de agosto, em parte porque o governo May já coletou dados sobre disparidades étnicas na sociedade do Reino Unido.
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Isaac é advogado e já foi diretor do Stonewall, grupo filantrópico LGBT. A Comissão de Igualdade e Direitos Humanos que ele comandou é responsável por colocar em prática a lei de 2017 que obriga as empresas e as organizações filantrópicas e do setor público com mais de 250 funcionários a divulgar a média salarial de homens e mulheres que estão em sua folha de pagamento. (As empresas não precisaram fazer a divulgação este ano, pois o prazo chegou ao fim justamente durante as primeiras semanas do bloqueio para conter a pandemia.)
Desde que Johnson se tornou primeiro-ministro, seis meses depois do fim da consulta sobre a divulgação de diferenças salariais por origem étnica, a ideia perdeu urgência, possivelmente porque a saída da União Europeia e o combate ao coronavírus tenham consumido mais energia do governo, segundo Isaac. Ele acrescentou, contudo, que “essa é uma questão de liderança e uma oportunidade real de avançar rapidamente, caso o governo realmente queira fazer isso”.
Dito isso, em comparação com a divulgação de dados de gênero, ainda existem desafios para a divulgação dos dados étnicos. A questão mais complicada é a da privacidade. Os empregadores precisam fazer com que os funcionários revelem voluntariamente sua origem étnica. Algumas empresas não terão diversidade suficiente para publicar dados precisos, ou mesmo para publicar quaisquer dados, sem colocar em risco a privacidade dos funcionários. (O governo oferece 18 classificações diferentes para grupos étnicos nos dados do censo da Inglaterra e do País de Gales.)
Além disso, a gravidade da desigualdade e da falta de representatividade pode variar drasticamente de uma região para outra. Minorias étnicas representam apenas 14 por cento da população total do Reino Unido, mas, em Londres, 40 por cento das pessoas afirmam ter origem asiática, negra, árabe ou de diferentes grupos étnicos.
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Em resposta à petição on-line sobre a divulgação de dados salariais por grupo étnico, o governo disse que, em 2019, testou a metodologia de modo voluntário com uma série de empresas, o que destacou “as verdadeiras dificuldades” da criação de uma política que colete dados precisos e, ao mesmo tempo, proteja a privacidade.
A Business in the Community, uma fundação filantrópica focada em práticas comerciais responsáveis, tem pressionado o governo a exigir relatórios sobre as diferenças étnicas na folha de pagamento desde 2018, quando um estudo feito pela organização revelou que apenas 11 por cento dos britânicos afirmaram que as empresas em que trabalhavam coletavam dados salariais de cada grupo étnico, e que apenas metade delas publicava esses dados.
“A divulgação desses dados não é suficiente para resolver todos os problemas, mas garante que esse debate permaneça em destaque e que ações sejam tomadas. Porque, olhando para os dados, não dá apenas para pensar que isso é muito ruim. É preciso agir e dizer o que será feito”, comentou Sandra Kerr, a diretora de igualdade racial da organização.
Em julho, o governo disse que anunciaria até o fim do ano como planeja prosseguir. Nem todos estão dispostos a esperar: mais de 150 empresas assinaram a Carta da Raça no Trabalho, escrita pela Business in the Community, de acordo com Kerr. A carta encoraja, mas não exige que as empresas registrem dados sobre etnia como um passo para publicar informações sobre as diferenças salariais.
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Mas Isaac deixa claro que a divulgação deve ser obrigatória: “Se for opcional, as empresas que dão um bom exemplo farão isso, como já estão fazendo.”
Outras, no entanto, não seguirão esse caminho, devido a todas as pressões criadas pela pandemia, explicou ele.
“Atualmente, há um desejo que nunca existiu da mesma maneira. A Covid-19 e o assassinato de George Floyd criaram um ponto de inflexão em que todos estão chocados e dispostos a se aliar e colocar as coisas em prática. Portanto, por que não aproveitar esse momento?”, concluiu Isaac.
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