Barbara Ireland
À direita, um rio de águas rápidas, azul e branco, corria por uma garganta solitária, quebrando-se em corredeiras sobre pedras escuras e caindo através de uma ou outra cachoeira. À esquerda, uma longa fila de estátuas budistas gastas pelo tempo senta-se com as costas voltadas para uma margem íngreme coberta de mato, convidando os passantes a compartilhar de sua contemplação.
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Alguém estivera aqui. Várias estátuas estavam vestidas com chapéus vermelhos de tricô e babadores de tecido, e algumas contavam com pequenas pilhas de moedas de um iene, deixadas como oferta, no colo recoberto de limo; finalmente, um uso para esse pequeno trocado. Porém, o único som que se ouvia vinha do rio, e não havia ninguém à vista.
Este vale sereno, Kanmangafuchi, que pode ser traduzido pelo nome ameaçador de Abismo Kanman, fica em Nikko, cidade dos templos dos grandes xoguns. Excursões rodoviárias levam até os santuários deslumbrantes de Nikko – os mais luxuosos e elaborados do Japão – e pessoas reencenam as grandes procissões anuais nas avenidas de 400 anos. Entretanto, o Kanmangafuchi, atração secundária que não faz parte da programação da maioria das pessoas que faz um bate e volta no mesmo dia, é um segredo mágico fundamental para a compreensão de por que os xoguns construíram seus monumentos neste lugar e por que os monges budistas se instalaram aqui há centenas de anos.
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Aqui, à margem do Rio Daiya, é fácil sentir o magnetismo dos íngremes morros verdejantes, cachoeiras, fontes termais e montanhas vulcânicas. Acrescente a queda pelo místico e Nikko seria um lugar perfeito para buscar a iluminação – ou para consagrar-se como um deus.
As boas duas horas e meia de trem a norte de Tóquio, Nikko é uma pequena cidade na montanha na ponta de um patrimônio mundial da Unesco – o complexo de santuários Tokugawa de 50,9 hectares – e uma reserva natural de 1.147 quilômetros quadrados, o Parque Nacional de Nikko. A combinação atrai milhões de turistas japoneses. Contudo, relativamente poucos viajantes ocidentais parecem estar em meio à multidão, embora a lista dos que aqui vieram remeta a Ulysses S. Grant, presidente dos Estados Unidos, que a visitou em 1879. Quem vem para cá costuma optar por pacotes de um dia organizados por agências de turismo de Tóquio, com tempo suficiente para ver alguns dos pontos altos da intrincada arte e arquitetura sagradas e outras coisinhas.
Minha primeira viagem a Nikko, 20 anos atrás, foi no inverno, quando o ar claro da montanha se mostrava revigorante e neve nova cobria os ramos cor de esmeralda de cedros de 30 metros de altura. Contra esse pano de fundo, a fachada de laca vermelha brilhante do Rinnoji, principal templo budista, compunha uma imagem inesquecível – quase tão nítida na memória quanto o frio chocante de um piso de madeira sem aquecimento em pés cobertos por meias finas, pois, logicamente, deve-se tirar os sapatos antes de entrar para se curvar diante das estátuas douradas de nove metros de Buda e Kannon (representação da suprema compaixão de todos os budas).
Durante viagem durante o outono, subi o morro na direção dos santuários pisando antigos degraus de pedra, cheia de ansiedade, e fui atingida por um golpe de surpresa. No topo, eu me vi olhando não o templo Rinnoji de três andares, mas sua pintura em tamanho natural em um invólucro gigante de plástico branco. O templo estava dentro, passando por uma restauração iniciada em 2007 e que irá reparar estrutura por estrutura ao redor dos tesouros de Nikko até 2021.
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A restauração não vai fechar Nikko, logo fiquei sabendo, nem mesmo o templo em questão. As pessoas subiam os degraus da frente ainda expostos e desapareciam atrás do invólucro, e eu fiz o mesmo. Dentro, uma das três estátuas altas dos deuses não estava presente, mas o Senju-Kannon de mil braços e o Bato-Kannon de duas cabeças – existe uma cabeça de cavalo sobre a humana – estavam ali, inescrutáveis como sempre. Para sentir o efeito completo, é essencial caminhar o mais perto possível e olhar para cima. Os impressionantes olhos que parecem de verdade olharão diretamente para os seus, nem exatamente ameaçadores nem amigáveis de verdade, levando a pensamentos de quais seriam suas intenções para o seu futuro.
Os santuários e templos de Nikko, como agora se apresentam, datam do século XVII, quando o xogum Ieyasu Tokugawa decidiu que a cidade era o lugar certo para seu mausoléu, significando sua ascensão após a morte ao status divino (como planejado, ele foi postumamente nomeado deidade budista). Por mais inflada que fosse sua autoestima, Ieyasu não era um senhor da guerra comum. Ao derrotar os rivais na batalha, unificou o Japão sob seu comando em 1600, e o país nunca mais se dividiu. Ele também transferiu a capital de Quioto, deixando o impotente imperador para trás, para a cidade costeira que chamou Edo e que agora é Tóquio, estabelecendo uma corte que rapidamente transformou a cidade de vilarejo minúsculo de pescadores em metrópole. Posteriormente no mesmo século, outro xogum Tokugawa, Iemitsu, neto de Ieyasu, reuniu os melhores artesões do país e os materiais mais refinados, exigiu uma injeção de dinheiro da nobreza intimidada e fez mais construções em Nikko.
Os dois Tokugawas deixaram para trás obras artísticas suficientes para ocupar um admirador durante dias, e eu encontrei a maior delas à vista com pouca intrusão da restauração.
Existe um grande santuário xintoísta ao deus da vizinha Montanha Nantai (por favor, tire os sapatos e entre). Vemos portões ornados e grandes estátuas assustadoras guardando lances de escadas até os mausoléus do avô e do neto, uma passagem flanqueada por cem grandes lanternas de pedra, um pagode de cinco andares e até mesmo um “estábulo sagrado”. Quem estiver procurando a conhecida estética frugal japonesa vai se desapontar. A decoração elaborada com influência chinesa está em toda parte: o dourado, trabalhos com metal e, principalmente, entalhes intricados na madeira. Era o estilo da época, uma espécie de barroco japonês e Nikko é sua maior expressão.
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Nikko é um ótimo lugar para o exercício. Nessa viagem eu caminhei o dia inteiro por dois dias, explorando museus, jardins e um centro da cidade com lojas de suvenir e um balneário público com fonte termal; existem ônibus para quem quiser caminhar menos. Como todo mundo, eu tirei fotos da Ponte Sagrada, em formato de crescente vermelho, sobre o Rio Daiya, que é a imagem mais conhecida de Nikko.
Eu vaguei pelo labirinto de tatames da espaçosa Vila Imperial com cem cômodos ao estilo japonês, agora um museu, onde Akihito, atual imperador do Japão, foi enviado por segurança pelo pai, Hirohito, durante a II Guerra Mundial. Pode-se ver a entrada do abrigo contra bombas no jardim maravilhoso. Construída no final do século XIX e começo do XX, a vila fica perto do Abismo Kanman.
A zona rural da cidade é outra experiência, também acessível de ônibus. Uma estrada serpenteante conduz ao alpino lago Chuzenji e à elevada cascata Kegon; ao longo do caminho, macacos habituados ao tráfego lento sentam nas árvores ou correm pela estrada, esperando ganhar alguma coisa. E também existem as fontes termais. No Japão, Nikko é quase tão famosa pelos balneários de água quente quanto pelo santuário.
Eu fiquei perto do santuário e me retirava à noite no Hotel Kanaya, lugar com estilo europeu antigo onde estrangeiros e diplomatas tiravam férias da calorenta Tóquio quando ainda não existia ar-condicionado. A lista de hóspedes inclui Eleanor Roosevelt, Indira Gandhi e Frank Lloyd Wright.
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Achei o Kanaya implacavelmente europeu, mas com um quê japonês. Os corredores com pé direito alto e meu quarto enorme, com uma mesa antiga e vista do jardim e do pico de uma montanha, me fez pensar nas velhas pousadas refinadas que ainda existem no nordeste dos EUA. Porém, aqui havia yukatas, quimonos de algodão para descanso que são comuns no Japão, estendidos para os hóspedes. O serviço foi delicado e perfeito, ao melhor estilo japonês.