Neste dia 24 de abril de 2017, Palhoça completa 123 anos de emancipação política. Em comemoração à data, a Hora conta um pouco das ricas histórias que se escondem por trás das nuvens do maior morro do litoral catarinense: o Cambirela. Tu sabias que ele inclusive já foi um vulcão ativo? E que lá repousa um gigante e mora uma cobra de fogo? Na década de 1940, o Cambirela foi palco de um trágico acidente aéreo, quando 28 pessoas morreram. Até hoje esse caso guarda um tabu. Tudo isso é narrado pelos moradores que vivem aos pés do morro.

Continua depois da publicidade

“Sou um simples caipira

Moro no interior

Minha casinha modesta

Continua depois da publicidade

Fica lá ao pé da serra

Quando chega o fim do dia

Sento na minha janela

Admirando a linda serra

que se chama Cambirela

Ai Cambirela

Ai Cambirela

Outra serra não existe

tão bonita igual a ela”

É com muita emoção que seu Arnoldo toca e, junto da esposa, dona Ivanilde, canta a música caipira que eles compuseram para homenagear o vizinho de mil metros de altura. A canção está no CD comemorativo das bodas de cobre do casal, 61 anos, quase todos eles vividos numa chácara no bairro Furadinho, em Palhoça. Literalmente aos pés do Cambirela.

Nesse tempo todo, o casal semeou na propriedade incontáveis árvores frutíferas: figo, graviola, laranja, goiaba. Uma retribuição pela água cristalina que desce do morro e abastece as casas da família. Dona Ivanilde garante que no verão ela é fria como se tirasse da geladeira e, no inverno, desce tão quente que chega a sair vapor da poça ao redor da fonte. Ali eles criaram dez filhos, que lhes deram 18 netos e cinco bisnetos.

Arnoldo Leonel, 87 anos, e Ivanilde Botelho, 82, possuem uma história muito mais profunda com o Cambirela. Eles lembram do trágico acidente de 1949 com um avião do Correio Aéreo Nacional da Força Aérea Brasileira, que matou 28 pessoas. Seu Arnoldo ajudou na retirada dos destroços do avião. Ele conta que naquele dia havia uma chuva miúda, muita cerração, e ninguém enxergava nada quando ouviram o estrondo do avião batendo na encosta.

Continua depois da publicidade

— Veio gente aqui pensando que ele tinha caído no nosso pátio. No outro dia de manhã, aquilo lá estava tudo estendido feito varal de roupa, e a gente viu que era um avião. Veio Marinha e aquela turma toda. Meus irmãos foram convocados para ajudar e eu fui de metido — lembra, com detalhes.

— E disseram: quem quiser alguma roupa pode pegar. Teve gente que pegou daqui, pegou dali. Eu não peguei nada. Depois disseram: agora é hora de pegar os defuntos. Aí eu me mandei! Quando chegou cá embaixo, eles estavam prendendo quem trazia roupa. Dizem que uns cortaram dedos dos passageiros para tirar os anéis. Quem comprasse relógio naquela época, com certeza era do avião — revela seu Arnoldo, que chegou a ter um pedaço da cauda da aeronave em casa, mas diz que a peça estava atrapalhando e por isso jogou fora.

O avião militar Douglas DC-3 havia partido do Rio de Janeiro. A última escala fora em Florianópolis. Ele iria do Aeroporto Hercílio Luz até o Salgado Filho, em Porto Alegre. A bordo estavam 20 militares (destes, seis tripulantes), seis civis e duas crianças. Todos morreram. Era até aquele momento o pior acidente da história da aviação brasileira. O resgate levou 27 horas para encontrar o local. E aí diz a lenda que saqueadores chegaram antes do socorro.

Continua depois da publicidade

— O fato é que quando alguém aparecia com uma joia ou um relógio novo naquela região, diziam que era do resgate, que foi saqueado. Criou-se um folclore, um tabu, e muitas famílias que têm peças da época evitam falar sobre isso — conta o professor e museólogo Gelci José Coelho, o Peninha. 

Matéria do jornal Correio da Manhã noticiando a queda do avião no morro do Cambirela

O gigante adormecido

Segundo o dicionário tupi guarani, o nome Cambirela vem de “kambi” (seios de leite) + “reya” (muitos), talvez alusão ao grande número de picos da Serra do Tabuleiro. O leite pode ser as nuvens ou as cachoeiras que embelezam o morro. No entanto, outra forma chama atenção: a de um gigante deitado. O museólogo Peninha conta a lenda que explica por que a figura mitológica está lá em sono eterno.

Continua depois da publicidade

— As bruxas só gostam de lugares formosos e escolheram fazer um baile de gala, como se fazia na alta sociedade, mas sem convidar o diabo, porque ele fede muito a enxofre. Vendo essa festa acontecendo, uma das bruxas vai ao encontro do diabo e conta tudo pra ele. O diabo ficou furioso e apareceu no meio da festa. Ele, de castigo, petrifica todas elas, que são aquelas pedras que flutuam no mar de Itaguaçu. O gigante, que acompanhava tudo de longe, viu aquilo e ficou muito triste. Chorou tanto que criou esse grande mar e se deitou para nunca mais levantar.

Tão tranquilo quanto o repouso eterno do gigante é a vida na praia do Pontal, no sul de Palhoça. É um dos lugares onde é possível encontrar o museólogo e talvez uma das melhores vistas do Cambirela, já que mar e montanha estão tão próximos. Dá pra ver certinho cabeça, nariz, pescoço, tronco, pernas e pés. O pico do Cambirela é um travesseiro. E Gigante é como os moradores dali carinhosamente chamam o morro.

— É muito bom morar aqui, mas no inverno não tem quem pare perto do Gigante de tão frio. Até as gaivotas desaparecem _ conta o funcionário da prefeitura de Palhoça Sérgio Luis Thol, de 51 anos, que acredita que ainda verá de novo o pico do Cambirela branco pela neve, como em 2013, fenômeno que o ficou marcado como “Alpes catarinenses”.

Continua depois da publicidade

— Todo mês a gente vê um helicóptero pousando ali indo resgatar algum aventureiro inconsequente que foi fazer a trilha sem guia — conta o nativo apontando para cima do morro. 

Neve na Serra do Cambirela em julho de 2013, evento que ficou conhecido como Alpes Catarinenses Foto: Alvarélio Kurossu / Agencia RBS

Só que a temporada de escalada do Cambirela ainda não começou. Os trilheiros esperam o calor baixar pra encarar os 980 metros de altura e obstáculos. Morador do Furadinho, o pedreiro José Henrique da Rosa, 43 anos, conhece o alto do morro desde criança. Lembra que naquela época era bem mais difícil de subir, já que hoje a trilha tem mais estrutura. Ele e a família inclusive ajudam aventureiros inexperientes de forma voluntária. O palhocence garante que a missão não é tão difícil como dizem ser:

_ Subo com mulheres e crianças. Dá em torno de três horas. O único problema é se a pessoa tem medo de altura. Mas no caminho a gente encontra muitos pássaros, macacos, tem uma cachoeira pequena na metade do morro para pegar água.

Continua depois da publicidade

Do pico, é possível ver a Serra do Tabuleiro, toda a Ilha de Santa Catarina e o maior aglomerado urbano do Estado: Florianópolis, São José e Palhoça. O único problema que o seu José Henrique diz encontrar lá em cima é a sujeira deixada por alguns irresponsáveis. Já o museólogo Peninha relata de uma forma mais poética a experiência que passou no topo do gigante.

_ Uma das maiores maravilhas que eu já fiz na minha vida foi ter subido o Cambirela. Na primeira noite, a Via Láctea gritava de tão bela sobre mim. Mas na segunda noite uma grande nuvem obrigou a gente a descer. Parecia que estávamos andando dentro d’água. Quem não foi, por favor, não morra antes de ir _ recomenda.

Só que para subir, é crucial seguir os conselhos dos bombeiros: jamais fazer a trilha sem um guia, levar roupas leves e um agasalho, pois geralmente faz frio no cume, tênis com solado ou bota, cantil para água e uma mochila com lanches.

O Cambirela já foi um vulcão

Continua depois da publicidade

Há 590 milhões de anos, Cambirela era um vulcão ativo Foto: Charles Guerra / Agencia RBS

O formato pontudo e as águas termais já fizeram muitos nativos acreditarem que o morro um dia foi um vulcão. Agora essa lenda tem respaldo científico. O professor Breno Leitão Waichel, coordenador do Laboratório de Laminação do curso de Geogologia da UFSC, explica que há 590 milhões de anos realmente aquilo lá era um vulcão – ativo.

— Toda aquela região, mais a da Armação, no sul da Ilha, são compostas por rochas vulcânicas com essa idade. Elas foram formadas após o vulcão explodir. As cinzas se depositaram formando rochas e também tiveram derrames de lavas.
Conforme o professor Breno, com o tempo a atividade vulcânica dessa região foi cessando. As fontes termais são resquícios daquele sistema vulcânico. Com o passar dos anos – aos milhões, é claro – essas águas vão ficar frias.

Só que mesmo passando tantas eras e períodos geológicos, essa história de vulcão ainda desperta medo em alguns moradores. A dona Ivanilde, autora da música do Cambirela do começo desta reportagem, é uma delas. O temor é com as empresas extrativistas que existem no entorno.

Continua depois da publicidade

— Todo mundo tem medo. Quando essa pedreira começou a aprofundar muito, as casas balançavam, algumas racharam as paredes. Esses dias deu uns estrondos aqui e a gente pensava que era trovoada. Porque está muito fundo (a mineração), e a gente tem medo de o Cambirela explodir, porque se for lá nas profundezas…

Dona Ivanilde se agarra numa história de buracos de fogo para alimentar o seu medo. Quando era professora, foi com algumas colegas até a ponte da Guarda do Cubatão, que ainda estava em obras, e lá garante que presenciou o fenômeno.

— Tinham uns homens trabalhando (na ponte). E a gente viu aqueles buracos como os de caranguejos. Perguntamos para um dos homens se era verdade que daqueles buracos saiam fogo. Ele pegou um fósforo, riscou e soltou. Saiu um fogo alto e azul. Fez isso com mais dois. Logo depois ele pegava uma moita e abafava. E isso eu vi — assegura.

Continua depois da publicidade

Agora, pelo menos para o Governo do Estado de Santa Catarina, não há risco nenhum na atividade industrial no Cambirela, que faz parte do parque estadual da Serra do Tabuleiro. A Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fatma) explica que há um conjunto de empresas de lavra e mineração que foram fiscalizadas pelo órgão ainda no ano passado e todas estão dentro da legislação. A entidade lembra que denúncias podem ser feitas pelo site www.ouvidoria.sc.gov.br, no 0800-644-8500 ou diretamente na Coordenadoria de Desenvolvimento Ambiental da Fatma, que fica na Rua Jornalista Juvenal Melchíades de Souza, 101, no Estreito – Florianópolis.

Boitatá, a Cobra de fogo

Peninha é conhecedor das lendas que cercam o Cambirela Foto: Marco Favero / Agencia RBS

Uma das histórias contadas pela cultura oral é de uma misteriosa luz que aparecia no topo do Cambirela em noites de grande breu, numa época anterior à luz elétrica. O professor e museólogo Gelci José Coelho conta que os antigos viam uma luz como se fosse uma esfera luminosa, e quando faziam algum tipo de barulho, ela crescia.

_ De repente, ela escorregava pelo morro e ficava passeando por cima das águas. Os índios diziam que isso era um m’boitata. M’boi: cobra, tatá, fogo. Porque esse rastro de luz dava a ideia de que fosse uma cobra.

Continua depois da publicidade

 Informações técnicas

Altura: o pico possui 1043 metros, mas o ponto mais alto acessível de trilha mede 980 m
Extensão: o Cambirela pertence à Serra do Tabuleiro, que possui 900 Km²
Vegetação: Mata Atlântica, orquídeas e bromélias na encosta e predomínio de gramíneas no topo.
Como chegar: Existem dois acessos, ambos partem da BR-101. O primeiro é logo após a ponte sobre o rio Cubatão, na rua Jacob Vilain Filho. O segundo acesso fica na margem da rodovia, no Km 222.
Bairros de Palhoça que ficam na encosta: Aririu da Formiga, Enseada do Brito, Furadinho, Guarda do Cubatão, Morro dos Cavalos, Praia de Cima e Praia do Pontal