Adherbal Ferreira é empresário, tem 49 anos, e enfrenta aquela que, consenso entre pais e mães, é a pior das dores: a morte de um filho. Depois de quatro meses de luto e de luta, ele enfrenta uma nova fase: a soltura dos quatro réus que estavam presos pelo incêndio na Kiss – Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, donos da boate, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira -, as críticas pelos posicionamentos adotados por ele e pela associação e a rejeição de parte da cidade, que dá demonstrações de ter cansado de conviver com o luto.
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Jennefer, a caçula de Adherbal, perdeu a vida aos 22 anos, dentro da boate Kiss. O pai foi quem deixou a filha e as amigas na porta da casa noturna naquela noite. Foi a última vez que se abraçaram. Motivado pelo amor que sente por sua menina, ele encabeçou a criação – e assumiu a presidência – da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
No final da tarde da última quinta-feira, Adherbal recebeu o Diário na loja que mantém no centro de Santa Maria. Em uma conversa de uma hora e meia, ele chorou ao lembrar da cumplicidade e da parceria que mantinha com a filha, explicou como a associação surgiu e a intenção de abri-la para a comunidade. Falou ainda da dor e do cansaço. E desabafou. Adherbal está magoado com a postura que classifica de desrespeitosa que muitos teriam adotado com relação ao luto de quem perdeu alguém no incêndio. E defendeu a associação das críticas que vem recebendo.
– Naquela noite, antes de levar a minha filha para a boate, eu estava assistindo com ela um filme que se chama O Grande Desafio. Ela não chegou a ver até o fim. Agora, quem está vivendo um grande desafio sou eu – contou.
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O pai de Jennefer também comentou assuntos como política, sua rotina, sua família e a esperança de que justiça seja feita. Ao fim, o empresário titubeou quando questionado se seria capaz de perdoar os responsáveis pela tragédia que tirou a vida de 242 pessoas. Confira, a seguir como foi a conversa.
Diário de Santa Maria – Como surgiu a associação?
Adherbal Ferreira – Na missa de sétimo, eu tive coragem, levantei e falei para o povo que estava lá na igreja que, dali um tempo, as pessoas não iam mais querer nos ouvir. Em uma associação, a gente poderia compartilhar a dor. Dias depois, o Léo Becker (vice-presidente da associação) me procurou, interessado na ideia. Fomos na defensoria pública, procuramos advogados, e eles nos deram apoio. No dia 28 de fevereiro, éramos uma associação de fato. No dia 1º de março, começamos a trabalhar. Em seguida, a UFSM nos cedeu um espaço físico, por meio da encubadora social, e, em 14 de março, dia do meu aniversário e quando o Papa foi escolhido, a associação foi fundada juridicamente.
Diário – Como o senhor se tornou o presidente?
Adherbal – Ninguém se apresentou com uma chapa, a única era a minha. Então, fui eleito por unanimidade. Mas não queria. Nunca tive o desejo e nem sabia ser presidente. Sofri muito. Acho que virei presidente porque não havia outra pessoa. Enquanto eu choro, tenho de atender o telefone e acalmar os pais que estão desesperados. Preciso ampará-los e fazê-los entender que seus filhos estão vivos na glória de Deus.
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Diário – O senhor é religioso?
Adherbal – Eu sou. Hoje, te diria que sou ecumênico. Sou católico, mas minha religião é Deus. Já participei de muitos cultos, já recebi apoio espiritual de diversas religiões. Todas remetem a Deus, e isso mudou a minha fé. Minha fé é Deus e Jesus. Não me importa qual é a religião de quem se aproxima de mim. O que importa é a gente respeitar o ser humano e espalhar o amor.
Diário – O senhor pensou em desistir em algum momento e deixar a presidência?
Adherbal – Várias vezes, porque muitas pessoas confundiam, achavam que eu estava me promovendo ou querendo cargo político, e isso me entristeceu muito. Eu jamais queria estar nesse cargo. Não queria ter perdido a minha filha. Daria qualquer coisa para ela voltar.
Diário – O senhor falou em cargo político… tem muita gente dizendo que o senhor vai se candidatar a vereador…
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Adherbal – Que ótimo! Que bom se eu pudesse ser vereador, prefeito, governador ou presidente para fazer alguma coisa pelo país. Mas, infelizmente, eu não sei ser político, não tenho a menor intenção de ser político, eu não gosto de política. E eu não estou fazendo nada disso por política ou para conquistar alguma coisa. O que eu tinha de melhor, que era a minha filha, eu não vou ter mais aqui.
Diário – São quantos associados hoje?
Adherbal – Em torno de 700, o que envolve um grupo de cerca de 2 mil pessoas, contando com os familiares. Hoje, o grupo já está mais homogêneo e conseguimos crescer. Estamos mostrando o nosso trabalho pelo país e pelo mundo.
Diário – Mas teve muito pai que não quis participar, né?
Adherbal – Abrimos para todos os pais que quisessem, mas não há obrigação de que participem. É uma escolha pessoal. Mas a gente acredita que, em um momento oportuno, eles virão. Os sobreviventes também são importantes para nós. Eles estavam lá, eles se machucaram muito, sofrem com queimaduras horríveis. Por isso, queremos que eles estejam com a gente. Além disso, estamos querendo abrir a associação para a comunidade em geral. A gente acredita que, se as pessoas fizerem parte da associação, elas podem se sentir mais motivadas e confortáveis para nos ajudar.
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Diário – Como o senhor acha que a associação vai estar daqui a 5 ou 10 anos?
Adherbal – Eu gostaria muito que a associação não terminasse. Depois do processo judicial, eu espero que a gente siga ajudando os sobreviventes, os queimados, que precisarão de cuidados a longo prazo. A associação deve e precisa se manter para que isso nunca caia no esquecimento.
Diário – O senhor não teme que o grupo se desmobilize com o tempo, que as pessoas desistam, cansem?
Adherbal – Temo. É por isso que eu gostaria que o próximo presidente fosse firme para dar sequência ao trabalho. Eu ficaria muito triste de ver tudo o que fizemos ser jogado no lixo.
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Diário – E o senhor acha que os demais associados também querem que a associação continue?
Adherbal – Eu não sei te dizer. A minha vontade é essa. Se eu me mantiver presidente (o primeiro mandato é de seis meses, conforme o estatuto), se ficar por mais dois anos, vou fazer um programa para fortalecer mais. Mas, a verdade é que eu estou cansado.
Diário – Como é a sua rotina? No que se transformou a sua vida?
Adherbal – Eu não sou mais a mesma pessoa desde que a minha filha morreu. Eu não trabalho mais, não vendo mais. Meu filho cuida da loja para mim. Eu não consigo me concentrar no trabalho. Vivo para a associação e só durmo porque tomo remédio.
Diário – Mas o senhor acorda cedo, vem para a loja…?
Adherbal – Acordo cedo, venho e trago a associação comigo. Vou sempre na vigília e na sede da associação. Eu não tenho mais rotina. Não vivo mais. Nem sábado nem domingo. Meu filho reclama de mim, o pessoal da loja reclama de mim… chegou um ponto que eu não tenho mais tempo para nada.
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Diário – O senhor disse que seu filho reclama… Qual é o envolvimento da sua família com a associação?
Adherbal – Minha mulher não participa ativamente porque cuida dos bichinhos que minha filha deixou. A Jennefer tirava os animais da rua, castrava e doava. Minha mulher segue com o trabalho. E o meu filho cuida da loja. Se ele não ficasse aqui, eu não teria como ser presidente. A cobrança deles é porque eu não consigo dar atenção para ninguém. E dou atenção para todos ao mesmo tempo.
Diário – O senhor acha que Santa Maria está respeitando a dor de vocês?
Adherbal – Acho que 50% de Santa Maria respeita a nossa dor e nos apoia, mas, 50%, infelizmente, não. Percebo que muitas pessoas estão contra nós porque acham que a nossa dor já passou e que a gente está fazendo fiasco. Eu digo para essas pessoas: antes de pensar em falar qualquer coisa, coloque-se na frente de um espelho e pense que poderia ser um filho seu. Pense antes de falar. Eu tenho pena dessas pessoas que falam mal de uma situação legítima. Os pais estão sofrendo uma dor que é da alma, que não tem tempo, que não passa. O nosso luto dura para sempre. Ninguém mais quer nos ouvir, e só faz quatro meses. E se não for a associação, onde as pessoas vão se amparar?
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Diário – Como o senhor acha que é possível resolver essa divergência entre a necessidade de mostrar que o clamor ainda existe e não afrontar essas pessoas que já estão se sentindo desconfortáveis com o luto de vocês?
Adherbal – Isso vamos ter de estudar. É tudo novo. A gente nunca pensou que um incêndio desses poderia acontecer. Nenhum de nós nunca imaginou que ia perder o filho, menos ainda desse jeito. Nenhum de nós nunca pensou em ter de fazer um protesto na vida. Não sabemos como fazer. Só sabemos que precisamos mostrar que existe comoção e que sempre existiu. Mas estamos sofrendo com essa deficiência de apoio da comunidade. Algumas pessoas olham só para os seus umbigos.
Diário – Qual é o limite?
Adherbal – O limite é quando o que a gente faz atrapalha o outro. Nós não queremos atrapalhar ninguém, mas a gente também precisa que as pessoas entendam a nossa dor. Talvez os nossos gritos incomodem, e a saída seja fazermos protestos silenciosos. Mas tu entendes que é difícil a gente se manter calado depois que a Justiça soltou os réus com a justificativa de que não havia clamor?
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Diário – Cerca de 200 pessoas foram à última passeata na BR… é menos gente do que o número de mortos. Bem menos do que o número de feridos. Como provar que há clamor com tão pouca participação?
Adherbal – Acho que há muita gente que nos apoia em redes sociais, mas não participa das nossas manifestações por medo de se expor ou de que a gente promova algum ato violento ou exagerado. Mas nunca houve desordem, e nunca vai haver. Nós somos pais, não somos marginais, baderneiros. Mas estamos procurando horários alternativos, lugares melhores, para ver se a adesão aumenta. Vamos traçar estratégias de luta, apesar de eu achar ridículo ter de brigar por justiça, que é uma coisa que deveria acontecer naturalmente.
Diário – Como o senhor vê os dois episódios de animosidade que marcaram os últimos dias, na Câmara de Vereadores, quando uma avó de vítima brigou com uma funcionária, e no Calçadão, quando houve um bate-boca entre pais e músicos que celebravam o aniversário da cidade?
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Adherbal – É uma grande lástima. Mas foram reações motivadas por palavras que machucam muito. Foram provocações. As pessoas devem ficar quietas. Se você não sabe o que dizer, não diga nada. Quando a gente passar, não nos olhem com desprezo. Não nos olhem. Se não conseguem nos olhar com respeito, baixem a cabeça e sigam em frente. Nós também seguiremos.
Diário – O senhor acha que errou nos rumos que a associação tomou?
Adherbal – Não. Eu não errei. Eu simplesmente fiz o que eu podia fazer e segui as recomendações da Polícia Civil e do Ministério Público. Se não houve quebra-quebra nem incêndio, foi porque nós, da associação, fomos cuidadosos. Quem critica são os que adoram dizer o que os outros têm de fazer, mas não fazem nada. E, se mudamos agora, se estamos mais contundentes, é porque fomos enganados pela Justiça. Mas vamos nos manter equilibrados. Muitas pessoas queriam que eu fosse mais impulsivo. E eu estava mais preocupado em cuidar da alma dos pais, ajudá-los a tentar viver melhor. Acho que isso, eu consegui fazer.
Diário – O senhor se sentiu culpado pela decisão do Tribunal de Justiça de soltar os réus com a argumentação de que não havia mais clamor?
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Adherbal – De certa forma, eu me senti responsabilizado. Eu tive de mudar a minha ideia e dar mais espaço a esse pais que estão mais revoltados. Conseguimos levantar o tom sem desordem, unindo os que estavam mais conformados com os que estão mais alterados.
Diário – Os pais cobraram muito do senhor a decisão da Justiça?
Adherbal – A cobrança veio de quem é de fora da associação.
Diário – O senhor já sentiu alguma mudança na cidade em termos de segurança?
Adherbal – Muito pouca. Existe alvoroço, grandes fiscalizações… mas ainda há gente abrindo comércio sem cumprir todas as exigências.
Diário – O senhor acha que vai ser feita justiça? Especialistas dizem que, se os réus forem condenados por homicídio culposo, pode ocorrer de a pena ser revertida para serviços comunitários…
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Adherbal – Se isso acontecer, será uma indecência. Eu fico muito preocupado. Não acredito que a minha filha e mais 241 filhos foram mortos por nada. Eu acredito que os réus voltarão para a cadeia. Talvez não agora, mas, futuramente, sim. Porque, se isso não acontecer, o Brasil estará fadado a se tornar o pior país de se viver. Tem de haver punição.
Diário – A associação já sabe quais são os próximos protestos?
Adherbal – Faremos uma grande passeata no dia 27. Vamos nos reorganizar e dar um tempo nos próximos dias porque não queremos enjoar a população.
Diário – Por que o senhor está buscando ainda mais força e fazendo tudo isso?
Adherbal – Pelo amor que eu tenho pela minha filha. Nos últimos quatro anos, estávamos muito próximos. Tomávamos café da manhã juntos, trabalhávamos juntos, conversávamos muito em casa, à noite.
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Diário – Era sua parceira…
Adherbal – Era. No dia do enterro da minha filha, eu não queria que ela fosse enterrada… eu queria ter ficado com o corpo dela, sabe? Eu tive ciúme de enterrar minha filha, porque eu não queria me separar dela. É uma dor muito forte. Tudo isso é por amor, sabe? Por ela e pelas outras pessoas.


