Foi com o título de uma música de Raul Seixas, que o psicólogo Rossandro Klinjey procurou resumir o momento que estamos vivendo: “O dia em que a Terra parou”. Para ele, será dessa forma que vamos recordar da pandemia do coronavírus, daqui a algumas décadas:

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– A gente vai lembrar que pela primeira vez na história humana a ciência pautou as condutas.

O paraibano é palestrante e escritor. Atuou por duas décadas em consultório e foi professor universitário por 12 anos. Na internet, acumula marcas milionárias nos vídeos publicados, tem presença constante no programa Encontro com Fátima Bernardes, na TV Globo, além de ser colunista da Rádio CBN.

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Na última semana, ele atendeu à reportagem por telefone para falar sobre esse momento de crise humanitária que estamos enfrentando, em especial sob o aspecto da saúde mental, diante das inúmeras mudanças e dificuldades impostas pelo coronavírus. O especialista é cirúrgico na lição para manter a sanidade:

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– Ninguém deve se cobrar de estar bem em um momento como esse. Diria que é muito normal estar em alguns momentos “anormal” em tempos de anormalidade.

Klinjey também mandou um recado recheado de carinho e esperança:

– Cuidem de si e dos outros. Isso é essencial. Vamos vencer tudo isso. Ao longo da história humana vencemos todas as grandes dificuldades que nós perpassamos.

Confira mais detalhes a seguir:

São dois meses que convivemos com o distanciamento social, diversas restrições, inúmeras mudanças na nossa rotina e nos nossos comportamentos. Ao mesmo tempo, vemos diariamente aumentar os números de pessoas infectadas e outras que perderam a batalha contra a Covid-19. Do ponto de vista psicológico, que avalição o senhor faz? De uma maneira geral, como está a nossa saúde mental?

Já tem quem comece a aventar, a dizer, que vamos passar por uma quarta onda. A primeira e a segunda seriam do vírus, ondas epidemiológicas. A China, por exemplo, já está se preparando para uma segunda onda da Covid-19. A terceira onda seria econômica, a crise que a gente vai sentir quando voltar a sair. E a quarta onda seria a da saúde mental, uma degradação psicológica profunda, que já está em curso, e que também a gente vai visualizar muito mais fortemente depois. Porque a gente já tendo muitas pessoas se separando, pessoas aprofundando processo depressivo, muitas pessoas com conversas suicidas porque como nós somos gregários, nós vivemos em comunidade, formados e constituídos prelo contato com o outro, sair desse contato temos um prejuízo emocional muito grande. Mas hoje, não existe outra alternativa que não seja essa, para evitar que a gente tenha uma curva exponencial do vírus e colocar em xeque qualquer sociedade.

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A gente tá (sic) tendo que se adaptar profissionalmente, lidar com o medo de perder o emprego, relações que estão ficando infelizes porque temos um convívio muito intenso, lidar com o medo da morte, lidar com o luto de coisas… Por exemplo, luto do comércio que fechou, dos amigos que não posso visitar, da balada que não posso mais ir, do show que não tô (sic) mais assistindo, do cinema que não fui mais, da livraria que não posso mais frequentar. É o luto de coisas. Aí vem uma discussão bem narrativa de direita e de esquerda, parece que tudo vira política no Brasil.

Finalmente você tem o luto de pessoas. Nessa hora não tem discussão mais, é dor. Dor intensa de perder alguém que ama, todo mundo de modo geral já passou por essa experiência e sabe o quanto ela é dolorosa. E ainda tem o medo de sermos ou a vítima da Covid-19, ou ser alguém que trás a Covid-19 para alguém que ama. Por exemplo, muitos jovens ficam impacientes, acabam saindo e ao voltar para casa pode contaminar o pai, a mãe, o avô e eles morrerem. E o filho vai ficar com uma culpa profunda.

São tantas exigências ao mesmo tempo que a gente está vivendo hoje, que certamente está afetando profundamente a nossa saúde mental.

O que é possível fazer para manter a saúde mental neste momento?

Como psicólogo percebi que todo dia dentro de casa geraria prejuízo em muitas pessoas, então criei um curso gratuito on-line chamado “Quarentena sem pirar” para dar conteúdo e lives diárias para as pessoas desabafarem, fazerem perguntas sobre temas como angústia, depressão, medo, ansiedade, tolerância, educação de filhos, relacionamento afetivo, vários temas que estão entrando em crise neste momento. O que digo muito em todas essas lives e dicas que são fundamentais, não é nem para evitar que afete algum nível nossa saudade mental, mas para minimizar, mitigar os efeitos.

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A primeira coisa que tenho que dizer é que ninguém deve se cobrar de estar bem em um momento como esse. Seria até um sintoma de frieza. Porque até quem está bem, está desconfortável em estar confortável porque a maior parte das pessoas está perdendo muita coisa: emprego, saúde, enfim. Diria que é muito normal estar em alguns momentos “anormal” em tempos de anormalidade. A primeira coisa que a gente tem que fazer é aceitar que um dia a vai estar mal, no outro bem, a alternância de humor está muito alta nas pessoas. Até pessoas bem-humoradas têm momento do dia que se pegam num momento de tristeza, uma angústia profunda. É muita coisa em jogo.

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Não quer dizer que aceitar que você está ansioso, com medo, irritadiço, que você vai estacionar nesse sentimento. Você tem que acolher esses sentimentos, senão você fica jogando para os outros e se torna aquela figura tóxica. Outra coisa fundamental é criar uma rotina dentro de casa: acordar em uma determinada hora, fazer coisas com certo rito. O desnorteamento só piora o quadro. Rotina é essencial para manter a saúde psíquica das pessoas. A gente precisa ter um nível mínimo de rotina para se organizar. E propósito, ou seja, preciso fazer algo que dê sentido neste momento. Desde ajudar pessoas com cestas básicas, ajudar instituições ou mesmo ser alguém que pede essa ajuda, mas independente disso, tenha um propósito, se mover por algo maior.

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E um elemento fundamental, muitos estudos já vinham se debruçando sobre isso em revistas acadêmicas na medicina, na psiquiatria, na neurociência e na psicologia, há muito tempo, sobre o impacto da fé neste momento. Esse momento é caracterizado pela instabilidade. O nível de vulnerabilidade e incerteza é a tônica do momento na sociedade e isso gera angústia. Diante de um mundo de tantas incertezas você perde todas as noções de estabilidade, de buscar, de encontrar lugar, situações, instituições ou pessoas que lhe deem uma sensação mínima de estabilidade. E aí, no universo todo o único ente estável para muitas pessoas será deus. Não importa se seja evangélico, católico, mórmon, espírita, muçulmano… Nesse momento você se debruça sobre uma instância de perenidade, de imutabilidade. Dentro de um mundo muito mutável, que você não controla, projetar suas esperanças em deus também é uma perspectiva significativa de controle emocional.

O que a pandemia tem a nos ensinar?

A gente vai passar muitos anos desenvolvendo teses em tudo que é curso, de História, Filosofia, Psicologia e a Psiquiatria, sobre tudo que a gente está aprendendo e vai aprender nisso. Para hoje, digo que a gente tem muito mais perguntas do que certezas, mas certamente ela está nos obrigado a ressignificar ou dar novos significados a muitas coisas. Por exemplo, ao consumismo, as relações pessoas. De algum modo, essa pandemia tá mostrando de forma dolorosa e poética, às vezes, tudo de bom e de ruim que a gente tem que melhorar na nossa própria existência. As pessoas têm que ressignificar o casamento, todas as questões da ordem do dia que elas estava adiando. Muita gente que estava postergando uma análise pessoas de si mesmo ou que não estavam pensando sobre si, agora se veem obrigadas a isso de uma hora para outra. Isso é uma coisa que tem causado muito dor nas pessoas.

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A gente está em um processo de como se estivéssemos indo para um Big Brother às avessas. A gente tem um processo de um modo muito intenso em que todas as nossas dores estão sendo expostas. A gente está refletindo sobre o casamento, a minha vida comigo mesmo, o meu trabalho, as escolhas que eu fiz. Então tem gente se culpando: “Olha, se eu tivesse pensado ou agido diferente”. Tem gente pensando: “Se eu não fosse tão gastador teria uma poupança mínima e não estava tão desesperado agora”. A gente está fazendo uma experiência de estudar o significado dos relacionamentos humanos, todos os tipos, de forma boa ou má, a gente está vendo o impacto.

A gente tem muito mais perguntas do que certezas, mas certamente ela (a pandemia) está nos obrigado a ressignificar ou dar novos significados a muitas coisas"

Há algum tempo fala-se muito sobre o isolamento digital das novas gerações. O fato de as pessoas estarem ligadas umas às outras on-line, mas distantes fisicamente. De que forma a pandemia pode ajudar a mudar isso?

Vamos criar de forma simbólica dois personagens: pessoas que já vinham trabalhando a sua consciência e agora apenas ampliam esse processo, e uma multidão de pessoas que estavam dormindo, que viviam apenas para comer, dormir, ter relações sexuais e ir para a balada. O que a gente chama de consciência de sono, um grupo grande, que inclui muitos desses jovens que estão em uma relação virtual. Tanto que, capturando o inconsciente coletivo desse movimento das pessoas, se criou uma indústria dos mortos-vivos, um conjunto de séries e filmes sobre zumbis e vampiros. Como se fosse o arquétipo do morto-vivo. Se você pegar um monte de gente com um celular, interagindo com pessoas distantes e ignorando os próximos, vai ver zumbis. É o comportamento típico de um zumbi.

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O que está acontecendo também é que muita gente que cansou de ver série ou de estar nas redes sociais, e percebeu que isso não é suficiente, não abastece. Não é uma questão de “vamos desconectar todo mundo das redes sociais”. O que a gente está vivendo é algo novo, que está desequilibrado, e que a gente vai equilibrar. As lives no começo bombavam e agora há uma perda de audiência significativa. Tem diversas variáveis. É muita gente fazendo ao mesmo tempo, então você começa a ser seletivo. Então, algumas pessoas vão despertar. A gente só não pode criar uma ilusão de que a gente vai terminar esse isolamento social com uma profunda transformação e todo mundo sair cantando “Imagine” de mãos dadas.

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(Foto: Divulgação)

O isolamento social vai servir para reaproximar as pessoas e fortalecer esses laços? Ou não, vai enfraquecer de vez, com cada vez mais gente ligada no mundo virtual?

Ele vai, mas não todos. Alguns vão despertar, outros vão permanecer dormindo. Essa é uma coisa muito particular. Então, aquele ideia que no começo estava todo mundo no mesmo barco… Vai todo mundo chegar a uma conclusão: “Não, a gente não está no mesmo barco, porque têm barcos diferentes”. Nós estamos na mesma tempestade. Mesmo assim, se eu tô em barcos diferentes, uma tempestade atinge cada um de forma diferente. Se eu tô num iate, a tempestade me atinge de um jeito, se eu tô num bote com 10 pessoas da família, a tempestade me atinge de outro jeito.

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Então, como vou aproveitar essas circunstâncias para me modificar, me transformar? Mas a gente está identificando, e é padrão, se você estudar a Gripe Espanhola, você estudar pandemias do passado, você verá que as pessoas entram num rito de solidariedade compulsória. Elas percebem que o que está ameaçado é o projeto humano, então, em algum momento, parte ou sensivelmente trabalham para um objetivo comum. Algumas pessoas, quando tudo termina, continuam, porque eles sentem o aprendizado, o ganho deste objetivo comum sempre como um dispositivo para elas, que elas entendem que é uma coisa que deve ficar com elas. Outros voltam à normalidade, assim que o shopping abrir vai lá comprar uma bolsa de R$ 10 mil e segue a vida que tinha antes.

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Você acredita que a nossa relação com o dinheiro e o consumo vai mudar a partir da pandemia?

Sim, primeiro por uma questão de ordem financeira mesmo. Por exemplo, quando abrir tudo, imagina que você vai ao shopping e vai perceber que muitas lojas vão estar fechadas, porque muitas delas faliram. As pessoas vão repensar. Será que quando o comércio voltar a abrir, vou a um restaurante e pagar R$ 300 um jantar? Você vai pensar duas vezes. Será que você vai comprar uma camisa, se você tem um monte que não está nem usando? Muita gente vai fazer esse cálculo, ou por egoísmo, ou por medo, ou por solidariedade. Vai haver mudanças no comportamento do consumo. Não aprender com tudo que está acontecendo é de um desperdício tão grande. Passar por um momento desse e sair do mesmo jeito que entrou, é de uma pobreza mental tão grande.

Vai haver mudanças no comportamento do consumo. Não aprender com tudo que está acontecendo é de um desperdício tão grande. Passar por um momento desse e sair do mesmo jeito que entrou, é de uma pobreza mental tão grande.

No futuro, quando olharmos para o período que estamos vivendo, na opinião do senhor, o que será mais lembrado pelas pessoas?

Essa é uma pergunta bem difícil. Vou dizer o que eu lembraria. Primeiro, acho que o título que daria a uma disciplina ou texto histórico que fosse descrever esse momento seria mais ou menos com a música de Raul Seixas: “O dia em que a Terra parou”. A gente vai lembrar, por exemplo, que pela primeira vez na história humana a ciência pautou as condutas.

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O senhor acredita que as restrições que estamos vivendo serão o “novo normal” daqui pra frente?

Tão difícil um consenso sobre qual vai ser esse novo normal, mas há um consenso que não vai ser como era antes. Não voltaremos a ter o mundo de dois meses atrás. Como vai ser? Cada um de nós vai construir isso. Por exemplo, colocam que nos aviões o acento do meio fique livre: já se mostrou que é financeiramente inviável. As companhias vão quebrar, ou o preço das passagens vão ficar muito inviável. Em restaurantes, nas mesas com seis cadeiras que só se ocupe três: também vai se tornar inviável. Tem coisas que do ponto de vista epidemiológico é recomendado, mas que do ponto de vista econômico é inviável.

Como será o Carnaval de Salvador em 2021? Como vai ser o Réveillon de Copacabana? As escolas vão abrir, mas os pais vão mandar seus filhos? Tem muita coisa em jogo. Vai ser um aprendizado. A gente vai voltar muito ressabiado, voltar com medo dos outros. E no Brasil, isso é mais impactante, porque somos uma sociedade latina, a gente se toca muito. A gente vai ter que meio evitar, alguns vão achar que isso é indiferença, outros vão entender que é proteção. Isso vai ser construído dia a dia, a todo momento. Acho que só uma solução através de uma vacina é que vai nos acalmar, para a gente poder seguir a vida, um pouco normal.

Como um profissional da área da saúde mental, qual recado o senhor gostaria de deixar para as pessoas que vão ler essa entrevista?

Primeiro, que as pessoas cuidem de si e cuidem dos outros. Isso é essencial. Não vamos ignorar o impacto que o vírus está provocando em nós, mesmo que você não esteja sentindo, você está muito impactado por tudo isso. E, finalmente, nós vamos vencer tudo isso. Ao longo da história humana nós vencemos todas as grandes dificuldades que nós perpassamos. Ao final da Gripe Espanhola, cujo número de mortes varia entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas, segundo algumas pesquisas, nós vencemos e estamos aqui. E não tínhamos os recursos que temos hoje. Não vamos chegar nem perto do volume de mortes.

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Depois da Segunda Guerra Mundial, com 70 milhões mortes, não por um vírus, mas uns pelos outros, e o que aconteceu na Europa? Fundou-se a comunidade europeia, que depois se tornou a União Europeia, se fundou a ONU, a Unesco, a OMS. Foram criadas instituições multilaterais, ou seja, a tendência é que ao cabo de mais uma experiência de luto coletiva a gente enterre pessoas, lamente a ausência, aprenda novas formas, e vamos sair mais fortes. Sempre isso acontece.