Com a devida licença a David Bowie, Ney Matogrosso também tem suas virtudes camaleônicas reconhecidas. Tanto que Camaleão foi o título da caixa com os primeiros 35 anos de carreira do cantor, editada em 2008 pelo jornalista e crítico musical Rodrigo Faour. Mas, para contar além da carreira musical (de quase meio século), em lugar de um réptil poderia-se comparar Ney a uma mariposa.

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Nesta reportagem, apresentamos a infância e a adolescência de Ney Matogrosso, a fase pré-Secos & Molhados, o sucesso em conjunto e na carreira-solo, além dos destaques dos anos 1970, 1980, 1990 e dos últimos 19 anos

Em 77 anos, de períodos tão distintos e de uma essência que perdura, a metamorfose de Ney continua. Contar essas transições permanentes é tarefa impossível. Quem já tentou ou está no processo assume.

São quase oito décadas, aqui divididas em seis fases, com imagens de momentos no palco, a intimidade e capas de discos marcantes.

A recomendação é que a playlist abaixo acompanhe a leitura:

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Essa vida engraçada ("não me considero louco, mas minha vida é… engraçada", disse em 2013 à Rolling Stone) vem sendo contada. O primeiro livro sobre sua vida é de 1992, foi escrito por Denise Pires e não agradou ao biografado.

Em novembro de 2018 foi lançada Vira-Lata de Raça, autobiografia organizada pelo jornalista e poeta Ramon Nunes Mello.

A biografia "não autorizada" deve sair em 2020. O jornalista e escritor Julio Maria, autor de Elis Regina – Nada Será Como Antes (Editora Master Books), está preparando o livro. Ney deu anuência e colabora com a pesquisa, mas concordou em não ler a obra antes da publicação.

Para 2020 também é esperada uma cinebiografia. O cantor assinou contrato com a Paris Filmes para a realização de um filme e uma série de televisão em dezembro de 2018.

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Nos dias 9 e 10 de fevereiro, o show Bloco na Rua chega a Florianópolis. A Capital catarinense é a segunda cidade a receber o espetáculo, que foi lançado no Rio de Janeiro em cinco apresentações. A escolha do repertório foi "afetiva", segundo o próprio Ney.

— São canções já bem conhecidas e cantadas por muita gente: as que eu já cantei, eu cantei há muito tempo atrás. Só tem uma música inédita, Inominável, uma faixa que eu conheço há algum tempo e de que eu gosto — contou à rádio Itapema FM – No Atento aos Sinais foi o contrário, eu tive a preocupação de colocar bastante coisa inédita.

Menino do Mato Grosso

Em primeiro de agosto de 1941 nasceu Ney de Souza Pereira, em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai. Filho de Antônio Matogrosso Pereira e Beíta de Souza Pereira, morou com a família em Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Campo Grande por conta das transferências do pai militar.

Desde pequeno tinha interesse em se expressar artisticamente. Gostava de cantar, dançar, pintar, e já na infância foi reprimido por causa disso.

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Pelo pai, sobretudo, com quem teve uma relação delicada até muito depois de alcançar o sucesso com sua arte.

Para sair de casa, conseguiu o pretexto do serviço militar: aos 17 anos foi ao Rio de Janeiro servir a Aeronáutica.

Aeronáutica, arte, artesanato

Os primeiros anos da vida adulta foram de descobertas. Continuou no Rio após o quartel, local em que viu, pela primeira vez, dois homens se beijando. Viveu da venda de artesanatos em couro. Foi uma época de experimentações artísticas, sexuais e alucinógenas.

Por intermédio de um familiar, desembarcou em Brasília para trabalhar no Hospital de Base do Distrito Federal com crianças em estado terminal.

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— Este foi um período que forjou o ser humano altruísta que Ney é. Um cara que está ali lidando com a morte no hospital e mais adiante vai lidar com a epidemia de Aids. E também alguém que olha para causas sociais como a da hanseníase no Brasil — comenta o organizador da autobiografia de Ney, Ramon Nunes Mello.

Nos anos em que viveu na capital federal, não deixou de ser artista. Participou de festival universitário, atuou em programa de televisão.

Decidido a ser ator, voltou para o Rio. Arranjou trabalho como iluminador na Sala Cecília Meirelles. Iluminou até show de Caetano Veloso.

Nessa época – entre Rio, São Paulo e Brasília – estava dentro do mundo artístico, inclusive passou um tempo na casa da amiga Luhli, da dupla Luli e Lucina. Foi ela que enxergou em Ney um cantor, e o apresentou a João Ricardo, que buscava um homem com voz aguda para formar um grupo musical.

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Artista que pinta o rosto e canta

Em junho de 1971, Ney virou o cantor do Secos & Molhados, formado em São Paulo com João Ricardo e Gérson Conrad. Mudou-se para a capital paulista onde o trio construiu o álbum de estreia, que saiu em agosto de 73.

Com faixas como Sangue Latino, Rosa de Hiroshima e O Vira, o sucesso foi imediato. A tiragem inicial, de 1.500 cópias, vendeu em uma semana. Em menos de um ano, a marca de milhão de discos vendidos.

O segundo disco veio em agosto de 1974, em uma capa com os três rostos pintados e nada escrito. Só na pré-venda, 300 mil cópias. Flores Astrais foi a única faixa a se tornar emblemática e o álbum não alcançou o status do anterior porque, dentre outros motivos, logo depois do lançamento a banda se desfez.

Ramon Nunes Mello é da opinião de que os Secos & Molhados acabaram por causa de ego e dinheiro. Até hoje, os três ex-integrantes têm suas rusgas.

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Possibilidade de se reunirem? Para Ney, inimaginável. "Aquilo é do meu passado", já disse. João Ricardo é detentor da marca do grupo e tentou por diversas vezes reviver o grupo.

Ney alçou voo para a carreira-solo. Sua voz rasgou-se em meio a sons da natureza e, com América do Sul, inovou com o que é considerado o primeiro videoclipe da música brasileira.

Água do Céu – Pássaro saiu em 1975 e ficou conhecido pelo nome da primeira faixa, Homem de Neanderthal, escrita por Sá e Guarabyra. Traz letras de João Bosco e Aldir Blanc (Corsário) e de Ruy Guerra e Milton Nascimento (Bodas).

Bandido (1976) é o segundo disco solo de Ney, e abre com música de Rita Lee, Bandido Corazón. É mais pop que o Neanderthal, e a veia latina corre forte – canções em espanhol como Pa-Ran-Pan-Pan e Airecillos. Tem também Chico Buarque (Mulheres de Atenas) e Gilberto Gil (A Gaivota).

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Por inúmeros motivos, Ney atraía olhares nem sempre bons no Brasil dos anos 1970. As pinturas dos Secos & Molhados, com inspiração no teatro Kabuki japonês. Os ossos e penas do clipe de América do Sul. A sensualidade da voz e do corpo, às vezes quase nu. Ao representar liberdade e libertação, ele era o oposto do que desejavam os militares que mandavam no país.

No auge, não era raro que os shows dos Secos & Molhados fossem frequentados por soldados da ditadura – e não era porque queriam ouvir O Vira. Em entrevista ao Diário Catarinense, o cantor diz que na primeira apresentação que fez em Florianópolis, as luzes do local se apagavam sempre que tentava cantar América do Sul.

Um pescador de pérolas

Em 1981 lançou disco com o seu nome, que contém um de seus maiores sucessos: Homem com H. O visual de Ney, desde Secos & Molhados, era considerado andrógino e aquilo chamava atenção do grande público.

Aquela figura, que não se sabia o gênero, cantando "menina eu sou é homem" que caiu no gosto de adultos e crianças. A história registra que Ney não queria gravar o forró de Antonio Barros por causa do estilo musical, mas foi convencido por Gonzaguinha.

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Fez o show que abriu a primeira edição do festival de música mais icônico do país. Em 11 de janeiro 1985, entrou no palco do Rock in Rio no fim da tarde em uma minúscula tanga.

Recebeu ovos arremessados por metaleiros, mas retribuiu chutando-os de volta. O repertório teve América do Sul, Rosa de Hiroshima e, já noite, fechou com Pro dia nascer feliz – de Frejat e Cazuza.

Cazuza e Ney haviam se conhecido em 1979. Namoraram por pouco tempo, mas a proximidade se manteve até a morte de Cazuza, em 1990. "Foi um dos três amores da minha vida", já disse Ney, que fez a iluminação do show Ideologia (1988) e gravou canções escritas por Caju.

Viveu de perto a chegada aterrorizante da Aids no Brasil. Em uma semana, velou três conhecidos levados pela doença.

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O primeiro ao vivo foi Pescador de Pérolas (1988), gravação da apresentação A luz do solo. Representou uma nova roupagem, literalmente, na carreira: vestiu terno e cantou de Cartola (O Mundo é um moinho) a Ary Barroso (Aquarela do Brasil).

Antes do fim da década gravou mais um de seus shows, lançando com o nome Ao vivo. No repertório, trouxe músicas de grupos da época, como Comida (Os Titãs) e O Beco (Os Paralamas do Sucesso).

Intérprete dos grandes da música

A partir dos anos 90, dedicou-se a homenagear artistas brasileiros com a sua voz. Já havia gravado Chico Buarque, mas em 1996 dedicou a ele todo um álbum, Um brasileiro.

Dois anos antes, Ney dirigiu a iluminação do show Paratodos, de Chico. No mesmo ano, gravou músicas de Ângela Maria em Estava Escrito, de 1994.

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Seu último lançamento do milênio, Olhos de Farol (1999), comemorou 25 anos de carreira-solo. Trouxe letristas conhecidos na voz de Ney (Itamar Assumpção, Rita Lee) e também novatos (Pedro Luís, Lenine). O disco se tornou o DVD Vivo.

Em 2001, fez Batuque, com músicas das décadas de 20, 30 e 40, incluindo letras famosas na voz de Carmen Miranda.

Logo depois lançou Ney interpreta Cartola (2002), que no ano seguinte rendeu um DVD, gravado no Centro Integrado de Cultura, em Florianópolis. Canções do sambista carioca já tinham feito parte do repertório de Ney desde Pescador de Pérolas (que abre com O mundo é um moinho).

A álbum foi concebido para acompanhar o livro Ousar Ser, organizado pelo artista Bené Fonteles com retratos da carreira de Ney feitos por Luiz Fernando Borges da Fonseca.

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Nas telas e palcos, para olhos atentos

Com Pedro Luís e a Parede, fez o projeto Vagabundo, entre 2004 e 2005, que rendeu álbum e espetáculo aclamados por público e crítica. O lançamento seguinte, Inclassificáveis (2007), também lhe valeu elogios.

De volta à face artística de ator, protagoniza em 2009 o filme Luz Nas Trevas, de Helena Ignez – continuação de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla.

Atuou em outro filme de Ignez, Ralé (2015), e fez participações em outras produções, como o curta Fca Carla – baseado na história de Francisca Carla, uma vítima da hanseníase que viveu isolada no interior do Ceará. Ney é engajado na causa pela erradicação da hanseníase no país.

Joel Pizzini fez o documentário Olho Nu (2014), com registros da carreira e conversas com o artista. "Não é um filme sobre, mas com ou através de Ney Matogrosso", disse o diretor.

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A obra acompanha três anos da turnê Inclassificáveis, resgata imagens do arquivo pessoal de Ney. Mescla, sem linearidade, os então mais de 40 anos de vida artística.

O espetáculo Atento aos Sinais se torna sua turnê mais longa, de 2013 a 2018. Traz canções inéditas, além de trabalhos de artistas atuais (como Criolo) e também de consagrados como Paulinho da Viola, Caetano Veloso e Victor Ramil. A fotografia que abre este texto é da apresentação de Atento aos sinais no festival Psicodália, em 2017.

Neste mesmo ano, Ney foi o homenageado do Prêmio da Música Brasileira. Na ocasião, convidados – muitos deles parceiros de outrora – interpretaram músicas famosas na voz de Ney.

Em 2018, ele se tornou membro do conselho do prêmio, e também lançou sua autobiografia:Vira-lata de Raça. O título é referência a uma composição de Rita e Beto Lee, que está em Olhos de farol.

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No longo e virtuoso ciclo de Atento aos sinais, o roteiro de um novo show foi sendo pensado. Bloco na rua estreou no Rio de Janeiro em 11 de janeiro de 2019.

Ney abre com Eu quero é botar meu bloco na rua, de Sérgio Sampaio. O nome do show é por conta da ideia de movimento, não pelo tom político da canção, segundo o próprio Ney.

Várias das músicas já foram gravadas por ele, como O beco, dos Paralamas do Sucesso (que está no álbum Ao vivo, de 1989), e Pavão Mysteriozo, de Ednardo (Ney interpreta no álbum As Aparências Enganam, de 1993). No setlist, aparecem duas de Chico Buarque e duas de Itamar Assumpção.

O espetáculo tem a mesma banda de Atento: Sacha Amback (direção musical e teclado), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), Mauricio Negão (guitarra), Aquiles Moraes(trompete) e Everson Moraes (trombone).

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