João Goulart está prestes a conquistar o diploma de médico em Cuba. Não se trata, é claro, do João Goulart que foi deposto da Presidência da República pelo golpe militar de 1964 e morreu de infarto em 1976. Quem logo vai receber o canudo é João Marcelo Goulart, 24 anos, neto do líder trabalhista brasileiro que inicia sua vida profissional justamente em um dos símbolos da esquerda mundial: no país de Fidel Castro.
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As semelhanças entre avô e neto vão muito além de nome e sobrenome. Os dois não se conheceram, mas nasceram no mesmo dia: 1º de março. A queda de Jango marcou o início de um dos momentos mais conturbados do país, quando os brasileiros perderam o direito de escolher os governantes.
Num desses acasos que ninguém explica, João Marcelo nasceu no ano em que a população voltou a votar para presidente, em 1989. Jango era gaúcho de São Borja. João Marcelo é maranhense de São Luiz. Nasceu longe do Rio Grande do Sul porque os pais viajaram para o Maranhão para cuidar de uma das fazendas da família.
– Apesar de ser de São Luiz, me considero um autêntico gaúcho: minhas tradições e valores estão todos no Rio Grande do Sul – fala João Marcelo, que toma seu chimarrão todos os dias em Havana.
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Aos dez anos, João Marcelo se mudou com a família para o Rio de Janeiro, onde virou remador do Botafogo. Ainda na adolescência, passou a acompanhar o pai João Vicente (filho mais velho de Jango) nas reuniões do PDT, filiou-se à legenda e conseguiu dela a indicação para uma das vagas na Escola Latino Americana de Medicina de Havana (Elam). Passou pelas provas e entrevistas e embarcou em 28 de fevereiro de 2007. Completou 18 anos no avião. E lá se vão seis anos.
João Marcelo nega que ser neto de um ex-presidente brasileiro que tinha simpatia pelo governo cubano tenha lhe aberto portas. Vive sem grandes luxos, come o tradicional arroz e feijão. Para ir e voltar do hospital onde faz residência, pedala cerca de oito quilômetros por dia. Quando chove, usa o ônibus.
Nem pensar em táxi. Talvez a única regalia seja a casa onde vive. Para ter um pouco mais de conforto, trocou o alojamento da Elam pelo piso térreo da casa de um ex-militar em El Vedado, bairro de classe média-alta de Havana. Divide o espaço com a namorada equatoriana.
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A exemplo do avô, João Marcelo vê com bons olhos o regime socialista implantado em Cuba. Os irmãos Castro, do outro lado, sempre viram em Jango um dos líderes de esquerda na América Latina, apesar de no governo dele (de 1961 a 1964) não ter havido nenhum grande gesto pró-Cuba.
– A melhor parte do socialismo existe neste país, que é a socialização da educação, da saúde, acesso a cultura, trabalho, esporte – avalia João Marcelo.
Mesmo com o discurso politizado e de ainda ser filiado ao PDT, João Marcelo não tem pretensões políticas. Quer trabalhar com medicina humanitária, viajar pelo mundo levando assistência a carentes. Esta deveria ser a vontade do avô.
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– Jango sempre teve os objetivos muito claros, lutou pelo que acreditava, tanto que morreu. Eu sempre imaginei como seria conhecer meu avô. Aprender dele. Vejo meu vô como alguém muito sábio e coerente. Falta um pouco de Jango hoje em dia – afirma.
João Marcelo volta ao Brasil no final de julho. A formatura, que deve levar boa parte da família Goulart a Cuba, está marcada para 16 de julho.
Quem foi o avô
(Foto: Banco de dados)
Foto: Banco de dados
João Belchior Marques Goulart nasceu em São Borja (RS) em 1º de março de 1919. Depois de uma carreira parlamentar, foi nomeado, em 1953, ministro do Trabalho de Getúlio Vargas. Em 55, já considerado principal nome trabalhista do país depois do suicídio de Getúlio, foi eleito vice-presidente do Brasil. Em 1960, foi novamente eleito vice-presidente. Em 7 de setembro de 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, assumiu a Presidência. Em 1° de abril de 1964, foi deposto pelo Golpe Militar e deixou o país imediatamente. Exilou-se no Uruguai. Morreu em Mercedes, na Argentina, em 6 de dezembro de 1976. A causa da morte foi infarto.
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“Falta um pouco de Jango hoje”
João Marcelo (E) com o pai, João Vicente, a madrasta
e a namorada em Havana
Foto: Arquivo pessoal
Há seis anos no país de Fidel Castro, o estudante de Medicina João Marcelo Goulart se prepara para a formatura, marcada para o final de julho deste ano. Nesta entrevista, o neto do ex-presidente João Goulart – que morreu em 1976 – fala sobre a rotina em Havana, a visão sobre o país que o acolheu e a imagem que tem do avô célebre. Por telefone, ele também comentou o atraso tecnológico cubano e o embargo econômico dos Estados Unidos a Cuba.
Diário Catarinense– Desde quando vocês está morando em Cuba?
João Marcelo Goulart – Estou aqui desde 1º de março de 2007, meu aniversário. Vim com outros cem brasileiros.
DC – Estudar Medicina em Cuba sempre foi sua meta?
João Marcelo – Sempre fui muito bem nos estudos. E era remador. Meu clube, o Botafogo, ofereceu uma bolsa para estudar Medicina em uma faculdade particular no Rio. Recusei. Minha meta, objetivo de vida, era estudar em Cuba.
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DC– A família o apoiou quando decidiu fazer Medicina? Ninguém nunca aconselhou a seguir a carreira política?
João Marcelo – A maioria apoiou, principalmente mãe, pai e irmãos. Mas teve gente que disse que não aguentaria a pressão, não conseguiria viver num país como Cuba, com tanta miséria. Essa questão da miséria, aliás, merece até umas aspas. É normal as pessoas pensarem que Cuba é um país miserável porque é o que se mostra na mídia. Mas é informação distorcida.
DC – Mas também não se pode dizer que Cuba não tem problemas.
João Marcelo – O problema é que no Brasil a imagem que se tem de Cuba é de miséria, que as pessoas passam fome, não têm acesso à saúde, o salário é muito baixo. E não é bem assim. Há certas coisas que não dependem do governo cubano. Hoje, como ainda há o bloqueio (embargo dos EUA a Cuba), não se tem acesso ao desenvolvimento tecnológico dos países de primeiro mundo. Há estudos que mostram que Cuba está pelo menos 60 anos atrasada tecnologicamente.
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DC– Onde se vê atraso tecnológico?
João Marcelo – Vejo claramente na rua. Os carros são o grande exemplo. A maioria é das décadas de 1950, 60 e 70. Para consertar um desses carros, inventam peças. Cuba é uma ilha, tem solo pobre, não tem recursos naturais e ainda enfrenta o bloqueio. A internet ainda é discada.
DC– Como é o seu dia a dia? Mora em alojamento?
João Marcelo – Moro na casa de um ex-militar aposentado. Jesus Filles, que foi das tropas de Fidel Castro. Vim morar aqui entre o terceiro e quarto ano de faculdade. No início, passei dois anos morando em alojamento da própria Elam. São quartos simples, divididos por até dez pessoas.
DC– Você tem bolsa?
João Marcelo – Sim. Dão bolsa que inclui tudo, desde o estudo até o material e uniforme. Também tenho ajuda de custo que equivale, em média, a R$ 50 mensais. Ao contrário do Brasil, dá pra fazer bastante coisa com esse dinheiro.
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DC– Em que área pretende se especializar? Será feita no Brasil?
João Marcelo – É medicina interna. O médico estuda cardiologia, nefrologia, neurologia, de tudo para poder dar o diagnóstico quando ninguém pode. Associa todos os sintomas para dar o diagnóstico.
DC– E depois dessa especialização, fica no Brasil?
João Marcelo – Uma das coisas que me motivaram a buscar o curso foi a ideia de fazer a medicina humanitária, levar a medicina a lugares onde não se têm acesso a médicos e não fazer isso só no Brasil. Quero passar um bom tempo no Brasil, mas também ser do Médico sem Fronteiras.
DC – Que imagem tem do seu avô?
João Marcelo – Admiro muito a pessoa que foi o Jango. Seus ideais, atitudes. De tudo o que ouvi e li e aprendi, digo que admiro muito a pessoa dedicada e a pessoa centrada. Jango lutou pelos objetivos dele e sempre os teve muito claros. Lutou pelo que acreditava, tanto que morreu. Sempre imaginei como seria conhecer meu avô. Aprender ouvindo dele. Vejo meu avô como alguém muito sábio e coerente.
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DC – E o governo Jango?
João Marcelo – Buscou o lado social, a unidade do povo brasileiro e da América Latina. Vejo um presidente que, apesar de ter passado quase 50 anos, é um presidente que se encaixaria muito bem ainda. Faz falta um presidente e políticos com a atitude de Jango. Não só pelo fato de que hoje os políticos falam e não fazem. Falta alguém que lute pelo povo. Hoje, a dita esquerda e social, no final parece mais um governo populista. Não precisa nem falar em socialista para não agredir o outro lado da moeda. Falta atitude em nome e defesa do povo brasileiro. Falta um pouco de Jango hoje em dia.
DC– Qual a reação dos colegas quando sabem do parentesco?
João Marcelo – Já é comum. Passaram-se seis anos, todos sabem e não é segredo. Mas no início muita gente perguntava como é ser neto de Jango, como era o Jango, o que dizia, essas coisas. A maioria das pessoas aqui é bem politizada.
DC– Ser neto de um ex-presidente brasileiro que tinha simpatia pelo governo cubano abriu portas?
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João Marcelo – Não. Foi o que menos pesou. A seleção é muito rígida. Nunca comentei com ninguém que sou neto de ex-presidente. Acabaram descobrindo. Não tenho também motivos para esconder. Só não anuncio por aí. E é incrível ver que, em Cuba, as pessoas conhecem mais da história do Brasil do que os brasileiros.
A Saúde cubana
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera Cuba a nação mais bem organizada e preparada quando o assunto é medicina. Investe pelo menos 10% do orçamento em saúde, o que garante ao país resultados excepcionais. Graças à medicina preventiva, tem a taxa de mortalidade infantil mais baixa do terceiro mundo: 4,9 para cada mil crianças. A expectativa de vida dos cubanos (78,8 anos) é comparável a das nações mais desenvolvidas. A relação médico/habitante é uma das melhores do mundo: um para cada grupo de 148 habitantes. São 161 hospitais e 452 clínicas. Em 2012, Cuba formou 11 mil novos médicos, a metade de outros países. Em 50 anos, o país formou cerca de 109 mil médicos.