O ano em que um cineasta negro ergueu pela primeira vez o Oscar de melhor filme – Steve McQueen, por 12 Anos de Escravidão – marca o centenário da primeira produção de Hollywood com um ator negro como protagonista. Foi no dia 10 de agosto de 1914 que estreou A Cabana do Pai Tomás com Sam Lucas, que não era um branco pintado de preto, a blackface, famigerada herança dos minstrel shows, populares espetáculos de teatro, dança e música do século 19.
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Hoje, os negros ocupam altas esferas nos EUA, tanto na política (Barack Obama está em seu segundo mandato de presidente) quanto no showbiz. A última lista da revista Forbes com as cem celebridades mais poderosas traz no top 10 Beyoncé (1º lugar), o jogador de basquete LeBron James (2º), o rapper e produtor Dr. Dre (3º), Oprah Winfrey (4º), Jay-Z (6º), o boxeador Floyd Mayweather Jr. (7º) e Rihanna (8º). Mas o mesmo ranking reflete o acanhamento das conquistas em Hollywood: só quatro negros estão entre os 37 nomes ligados a cinema e seriados.
Entende-se. Se é verdade que os negros se libertaram dos estereótipos de outrora – há heróis de ação, como Will Smith, e filmes e séries anteciparam a chegada de Obama à Casa Branca -, é mentira dizer que as portas foram escancaradas.
– Hollywood é mais racista do que a América – disse em 2013 o comediante Steve Harvey. – Kerry Washington não deveria ser a primeira negra a protagonizar um seriado dramático (Scandal) em 40 anos. Em 40 anos!
O Oscar é o melhor termômetro. Dos 5.765 votantes da Academia, 94% são brancos. Em 86 anos de premiação, mais de 300 brancos ganharam troféus de melhor ator, atriz e coadjuvantes – negros, foram apenas 15. O primeiro Oscar de atriz para uma negra só foi sair na 74ª edição, em 2002 – e parou por aí. Apenas três negros já concorreram como diretor.
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Nesse contexto, deve-se celebrar o triunfo de 12 Anos de Escravidão, história real de um negro livre sequestrado e transformado em escravo no século 19. Convém refletir sobre o que disse Samuel L. Jackson ao jornal britânico The Times. Para o ator, o filme de McQueen limita o racismo americano no passado e concede ao público permissão para não lidar com as práticas discriminatórias do dia a dia:
– Os EUA estão muito mais dispostos a reconhecer o que houve no passado. Nós libertamos os escravos! Que bom! Mas quanto a “ainda estarmos matando negros desnecessariamente”, vamos ter de conversar sobre isso.
Blackface: a imposição do estereótipo
Nos primórdios, até atores negros pintavam o rosto de preto, acentuavam o vermelho dos lábios e contornavam os olhos com branco. A blackface não foi longe no cinema, mas seus estereótipos, sim. Os Toms remetiam ao servil Pai Tomás (“Sim, sinhô!”, diziam). Coons eram os bobões de olhos esbugalhados, ignorantes e preguiçosos (Stepin Fetchit interpretou vários). Mammies, as criadas das famílias sulistas, como a oscarizada personagem de …E o Vento Levou. Bucks, os brutais e hipersexualizados negros vividos por brancos no filme de 1915 O Nascimento de uma Nação – que pôs a racista Ku Klux Klan como salvadora da pátria.
Blaxploitation: a reinvenção do estereótipo
O movimento nasceu da luta pelos direitos civis com a fome por novos mercados. Os filmes eram dirigidos e estrelados por negros, com tramas calcadas em violência e sexo, nessa ordem – davam vez ao gueto, mas reforçavam estereótipos (“brutais, vulgares, hipersexualizados”). Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971) abriu alas ao gênero, que teve como estrelas Pam Grier (a sexy vingadora de Coffy e Foxy Brown) e Richard Roundtree (o policial Shaft rendeu três filmes e um seriado). O sucesso gerou subgêneros (vide Blácula) e atraiu grandes estúdios – a Paramount lançou em 1975 o controverso Mandingo, inspiração para o Django Livre de Tarantino, que celebrara a Blaxploitation em Jackie Brown.
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“Vovó…Zona”
Foto: Fox, divulgação
Black FAT woman: a mercantilização do estereótipo
Comediantes americanos negros decidiram ganhar dinheiro explorando o preconceito. Desde os anos 1990, se travestem de obesas para destilar piadas fisiológicas. Eddie Murphy deu a largada, com O Professor Aloprado 1 e 2, ambos com bilheteria superior a US$ 120 milhões nos EUA. Martin Lawrence tentou copiar com a franquia Vovó…Zona. O diretor, roteirista e ator Tyler Perry virou fenômeno com a série Madea, que nasceu no mercado de DVDs e depois pulou para a tela grande. Já os irmãos Marlon e Shawn Wayans reverteram o blackface: em As Branquelas, interpretam dois policiais negros que se disfarçam de loiras – fúteis e burras, como manda o estereótipo.