Homem passa 13 meses navegando ao léu por 12,5 mil quilômetros na imensidão do Pacífico, sob o sol do verão tropical, quase em linha reta. Contorna o Havaí vendo à distância escassas embarcações, come peixes apanhados com as mãos e bebe sangue de tartaruga, água da chuva ou a própria urina. Mais impressionante: esse homem, que deixou o Estado mexicano de Chiapas no fim de 2012 e chegou com longos cabelos ruivos desgrenhados e barba espessa a um atol das Ilhas Marshall. Embora debilitado e desidratado, estava em condições razoáveis de saúde.
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O episódio ocorreu no último dia 30 e despertou desconfiança, até porque as primeiras informações de José Salvador Alvarenga, 37 anos, eram desencontradas. As principais dúvidas se deviam à alimentação. Médicos e nutricionistas dizem: para passar um ano à deriva, deve-se consumir proteínas, carboidratos e gorduras.
– Ele consumiu proteínas e gordura do peixe. E os carboidratos? – questiona a coordenadora do Programa de Transplante Hepático Infantil do Hospital de Clínicas, Sandra Vieira.
A história de Alvarenga é repleta de especificidades. As tartarugas que consumiu, por exemplo, fornecem gordura, minerais, vitaminas e proteínas. Os peixes têm proteína de alta qualidade e gordura. O fígado das aves contém a vitamina C que combate o escorbuto (doença que causa hemorragia nas gengivas). O sol era evitado num compartimento onde ele se recolhia. As chuvas abundantes forneciam água.
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– A história é incrível, mas faz sentido. Havia proteína e energia. Dentro da pequena embarcação (de 7,3 metros) onde estava confinado, ele gastava pouca energia. A reserva de energia se mantinha, e isso evitou que emagrecesse em demasia – diz a nutricionista Carmen Franco, ponderando que a dieta do pescador estava longe de ser equilibrada.
A incrível epopeia de Alvarenga surpreendeu a família. O pai, a mãe e a filha do pescador vivem grande expectativa desde que o viram pela TV, sentados na sala da casinha verde onde moram e mantêm um armazém em meio a palafitas e coqueiros na cidade salvadorenha de Garita Palmera, distante 118 quilômetros da capital San Salvador. Quando atendeu ao telefonema de Zero Hora, María Julia Alvarenga contou que já davam o filho como morto, mas que ela tinha um sentimento de esperança no coração materno, de que ainda o veria vivo.
– O que aconteceu foi um milagre. Foi Jesus quem o salvou. Estou muito feliz. Estamos nos preparando para recebê-lo. Passei mal depois que falei com ele (eles conversaram na madrugada e na tarde de terça-feira) – disse María Julia, que, além de ajudar o marido no armazém, trabalha em uma igreja evangélica.
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Já o pai, José Ricardo Alvarenga, dá uma pista sobre o episódio envolvendo o filho:
– Ele ama o mar. Quando era criança, eu dizia para ter cuidado. Nunca teve medo do mar. O importante agora é que está bem. Sempre o amamos, estamos esperando por ele.
A filha de Alvarenga, Fátima, 14 anos, mal lembra do pai. Faz 15 anos que Alvarenga deixou Garita Palmera (antes de Fátima nascer), e fazia oito anos que a família não tinha notícias dele.
– O mais importante é saber que ele está vivo. Quero abraçá-lo. Estou feliz – disse Fátima.
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As nebulosidades de um caso factível
A família está em contato com o Ministério das Relações Exteriores salvadorenho. Quer a volta do pescador para a casa que deixou com o objetivo de trabalhar em Chiapas, no México. O retorno teria se iniciado na sexta-feira, mas Alvarenga, em recuperação nas Ilhas Marshall, ainda estava muito desidratado para enfrentar a viagem. De acordo com a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores das Ilhas Marshall, Anjanette Kattil, o mais provável é que o pescador retorne a El Salvador e reveja os pais e a filha. Essa é a vontade do pescador, que, ao ser encontrado por ribeirinhos dormindo apenas de cueca no atol de corais, dizia não ter sucumbido aos eventuais desejos de morrer em alto-mar por pensar no pai, na mãe e em Fátima, com quem sonha partilhar uma tortilla.
No México, a “família” de Alvarenga são seus colegas de ofício, que o conheciam mais pelo apelido de “La Chancha” (“A Porca”, em espanhol). Pescadores de Pijijiapan, em Chiapas, contam que se lembram do seu sumiço e dos quatro dias em que permaneceram a sua procura, no final de 2012. Recordam que, no dia em que desapareceu, pescava tubarões no povoado mexicano de Costa Azul, com provisões para um dia. Repentinamente, abateu-se uma tempestade que o deixou à deriva. Com Alvarenga, no barco Camaronera de la Costa, estava Ezequiel Barradas, que morreu no quarto mês do naufrágio porque não conseguiu recorrer aos mesmos recursos para saciar a fome e a sede. Quando conseguia, vomitava. Alvarenga contou que, num dos momentos mais difíceis de sua odisseia, teve de jogar o corpo do colega ao mar.
Restam dúvidas que vão além da alimentação. Uma delas está no princípio: enquanto o pescador diz que deixou o México em dezembro, a guarda costeira e colegas em Chiapas contam que isso ocorreu em novembro. O nome de Alvarenga foi divulgado de forma equivocada quando chegou ao atol. Há relatos divergentes sobre a idade de Barradas, que Alvarenga descreve como adolescente, mas que as autoridades dizem ter mais de 30 anos. Enfim, a aventura do pescador é factível, mas ainda, em alguns trechos, nebulosa como as tormentas tropicais.
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OUTROS SOBREVIVENTES
Lucio, Salvador e Jesus
– Em 2006, os mexicanos Lucio Rendon, Salvador Ordonez e Jesus Eduardo Vivand, pescadores de tubarões, ficaram perdidos no mar por nove meses antes de serem localizados por um barco tailandês a 300 quilômetros da costa norte da Austrália. Beberam água da chuva, caçaram tartarugas e pássaros e pescaram peixes.
Poon Lim
– Em 1942, a 750 milhas da costa brasileira, o chinês pulou do navio Benlomond, britânico, atingido em um bombardeio nazista. Sobreviveu 133 dias em um bote salva-vidas, até ser resgatado por um pequeno barco de pescadores brasileiros na boca do rio Amazonas.
Baleeiro Essex
– Os sobreviventes do naufrágio do baleeiro Essex inspiraram Moby Dick, de Herman Melville. Em 1820, o baleeiro foi derrubado – pasme – por uma baleia. Em vez de seguir até o destino mais próximo, as ilhas Marquesas, preferiram se dirigir à América do Sul, por medo de índios canibais. No entanto, prestes a morrer de inanição, sortearam um dos marinheiros para ser assassinado e comido. Foram encontrados 93 dias depois.
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