Quinta-feira, Ticen, 15h
Em situação nada tranquila e nem um pouco favorável diante das denúncias contra o governo federal, a Frente Popular – formada por PT e PCdoB, entre outros partidos e movimentos sociais de esquerda — ocupa o canteiro em frente ao maior terminal de ônibus de Florianópolis para convocar a população a participar da manifestação pró-Dilma Rousseff marcada para sexta-feira, 18 de março. Mas parece que há mais gente de vermelho distribuindo os 5 mil panfletos do que pessoas dispostas a recebê-lo. A maioria desvia das mãos com o pedaço de papel estendido em sua direção.
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— Mesmo quem simpatiza com nossa causa tem medo de represálias – diagnostica Jacir Zimmer, da coordenação do movimento. – Vamos superar esse momento fortalecendo a cultura de paz e solidariedade contra o ódio.
Não vai ser fácil. Enquanto espera para atravessar a rua, uma mulher pergunta se “vai ter boneco também”, talvez com os pixulecos infláveis em mente. O aposentado Álvaro Francisco, 70 anos, mostra-se mais interessado em pelo menos conversar sobre o “ato em defesa da democracia, dos direitos sociais e contra o golpe”.
– O PT começou muito bem, a favor do povo. Sou pobre, não posso defender os ricos. Mas o partido acabou se corrompendo para se perpetuar no poder. Por outro lado, a elite não se conformou com a derrota nas eleições – diz, complementando que ainda não pretende se envolver porque não quer ser injusto.
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O estudante Odu Keomy Gomes Pinedo, 16 anos, tem uma visão mais simples do processo. Filho de professora de educação física, já trabalhou como estagiário e está à procura de um emprego para se manter até realizar o sonho de ser jogador profissional de futebol americano – treina no time do São José Istepôs.
– Eles (a oposição a Dilma) nunca ajudaram a gente.
Da caixa de som, saem os versos de Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, um clássico das manifestações de esquerda desde a Ditadura Militar. O vendedor de chips para celulares Adrian Smith dos Santos, 31 anos, nem presta atenção nos versos que dizem “caminhando e cantando e seguindo a canção”. Segundo ele, a panfletagem prejudica o negócio.
– Em um dia normal, vendo uns 60 chips. Hoje, não passei de 30 – reclama.
Beira-mar Norte, 18h
Não para mais de chegar gente no trapiche da praça Portugal, o ponto de encontro do protesto contra a presidente Dilma Roussef, Lula, o PT, a corrupção e “tudo o que está aí”. Há pessoas com roupa de academia prontas para conciliar o exercício de cidadania com o jogging diário, casais empurrando carrinhos de bebê, uma juventude bonita e senhoras levando seus pets – que, como se sabe, também são gente e abominam a roubalheira, mas não largam o osso. Todos (à exceção dos cães) trajam preto, verde e/ou amarelo.
Enfileirados no bolsão de estacionamento, quatro caminhões de som convertidos em palanque recepcionam os manifestantes. O do Movimento Brasil Livre (MBL), maior, mais potente e com os animadores mais, digamos, intensos, puxa o bloco. Na carroceria, um cartaz traz o nome do movimento sem espaço entre as palavras, fazendo com que a junção de Brasil e Livre resulte em dois “Ls” consecutivos, como em Collor e Lulla.
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No segundo caminhão, está escrito “basta” e “acorda Brasil”, com a mancha da palma da mão esquerda do líder petista – reconhecida pela falta do dedo mínimo, esmagado na prensa de uma metalúrgica em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, em 1963. A impressão palmar é idêntica à da célebre foto de 2006, na qual o ex-presidente posou com ela suja de petróleo para marcar o início da produção da plataforma P-50, na Bacia de Campos (RJ), repetindo gesto de Getúlio Vargas em 1952. Sem dúvida, é muita história acontecendo.
O terceiro carrega um grande boneco inflável de Lula vestido de presidiário com o número 13-171 e é assinado pelo Comitê Fora Dilma. O quarto está em branco, vazio e em silêncio. A orientação dos organizadores para que os manifestantes não ocupem a pista é ignorada, tamanha a multidão que vai se formando. A PM intervém e interrompe o trânsito da avenida no sentido bairro-centro. Os oradores se revezam. “Vocês que defendem o governo são tão canalhas, tão cínicos quanto aqueles que nos desgovernam”, esgoela-se uma moça. “Enquanto esse governo não cair, a gente não vai sair das ruas”, prossegue ela, para arrematar: “Quem não buzinar é do PT”.
Moro, guerreiro do povo brasileiro
O apelo para que os motoristas fizessem barulho é sucedido pela exaltação a Sergio Moro, alçado a herói “enquanto boa parte da Justiça ficou de joelhos, se acovardou ante o PT”. Dos alto-falantes, sai um samba cuja letra diz “e dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe Moro”.
O juiz da operação Lava-Jato só rivaliza com um nome no ranking de popularidade entre a massa tricolor. Ou melhor, um apelido: “Quem é amigo do japonês da Federal levanta a mão!”, em alusão a Newton Hidenori Ishii, celebridade instantânea por aparecer escoltando os presos da Lava-Jato. O agente responde a três processos, pelos quais já foi condenado por corrupção passiva e facilitação de contrabando. Ele está recorrendo das decisões.
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É para a sede da Polícia Federal, a quatro quilômetros dali, que o protesto começa a se mover lentamente às 19h, tomando a pista da Beira-Mar Norte bloqueada pela PM. O início do cortejo já está quase na esquina com a avenida Mauro Ramos e ainda há agrupamentos na praça do trapiche. Os caminhões perfilam-se a uma distância suficiente para que as pessoas não se dispersem, mas que não atrapalhe as palavras de ordem bradadas por cada um, pois agora os quatro incitam os presentes ao mesmo tempo.
Quem não pula é petista
A mobilização sai do chão em um sobe-e-desce descoordenado e, para observadores não envolvidos com a causa, digno de graça. Diante da adesão geral, o MBL conclui que “só tem gente boa, tudo catarinense! Por isso que PT não se cria aqui!” Slogans são disparados em profusão: “A nossa bandeira jamais será vermelha”, “Vocês são os novos caras-pintadas” (olha o Collor aí de novo) e o indefectível “eu… sou brasileirô, com muitorgu-lhô, com muitamôôô”.
Um dos poucos negros presentes – o único avistado pela reportagem –, Gabriel Luiz Alves engrossa o coro. De preto, com uma bandeira do Brasil sobre os ombros, ele tem 31 anos, é servidor público municipal e participa “desde a primeira vez que o povo passou a ir para a rua”. Admite que o sistema de cotas raciais no funcionalismo e na universidade pública adotado pelo governo federal lhe beneficia, apesar de esperar mais.
– Se eu pensasse só em mim, poderia dizer que a situação está boa. Mas estou aqui pelo povo. Nenhum presidente jamais representou o negro – justifica.
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Se um eventual novo mandatário acabasse com a medida, garante que iria para as ruas de novo. Só hesita quanto à companhia dos demais.
– Aí eu venho sozinho – ele dá de ombro, depois de olhar em volta.
A conversa é cortada pelo terceiro caminhão, cuja oradora pede aos inquilinos dos edifícios que assistem à movimentação de suas sacadas para que pisquem as luzes se são a favor da “derrubada dessa mulher”.
De imediato, moradores do metro quadrado mais valorizado da cidade junto com Jurerê Internacional – média de R$ 6 mil, ultrapassando os R$ 10 mil nos prédios mais luxuosos – endossam a proposta.
Não vai ter golpe!
Os manifestantes acusam Dilma e Lula de terem tomado o poder ao arrepio da lei. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, não é páreo para os depositários preferenciais da raiva coletiva. “O PSOL, o PCdoB, a Rede, parte do PTB… vamos pegar também esses caras da base aliada!” Faltou citar, entre a coalisão do governo, o partido da designer de interiores Adriana Chraim, 51, militante assumida do PP, que também faz parte da base de Dilma. Com a bandeira do Brasil amarrada ao corpo, ela conta que participou de “todas essas manifestações contra o governo federal por uma questão de cidadania”. Ela fala que sempre foi anti-PT:
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– Desde o começo, vi que eles manipulavam as pessoas por uma ideologia que não é a minha. Se melhorou alguma coisa, c** tudo agora.
Quase chegando à PF, a passeata faz uma parada estratégica em frente à Casa d’ Agronômica, residência oficial do governador catarinense. Há gritos de “acorda, Colombo” e vaias. “Raimundo Colombo foi citado na delação do Delcídio. Estamos de olho. Não esquecemos que você ainda apoia ela”, completa o representante do MBL. Neste momento, um homem de cabelos brancos em cima do caminhão pega o microfone e identifica-se como um vereador de uma cidade do Alto Vale do Itajaí, que veio à Capital e estava em um apartamento na Beira-Mar, mas resolveu descer para participar. Até aí, a multidão somente o encara, meio ressabiada.
Ele continua: “Meu partido não tem corru…” A palavra “partido” deflagra uma vaia monstruosa, a ponto de um dos organizadores do caminhao lhe tomar o microfone e pedir desculpa aos correligionários, dizendo que não sabia como o sujeito havia parado ali. “Não se preocupem, o MBL é apartidário!”
Opa, não é bem assim. Nas eleições municipais de outubro, o movimento vai lançar 123 candidatos em 23 estados por PSDB, DEM, PSD, PSC, PPS e Partido Novo. Segundo o líder Kim Kataquiri, a ideia é, assim como existem os evangélicos, formar uma bancada afinada com o receituário liberal (livre mercado, menos Estado). Para a bancária aposentada Margareth Specialski, 59, que segura uma faixa apontando a monarquia parlamentarista como solução para o país, tanto faz.
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– A prioridade é tirar esse governo correndo. Ela explica que, caso seu sistema fosse adotado, o rei seria Dom Luiz de Orleans e Bragança, tataraneto do imperador D. Pedro 20, bisneto da princesa Isabel e do conde d’Eu. Nascido em 1938 em Mandelieu, na França, o potencial detentor da coroa veio para o país após a II Guerra Mundial. Depois de estudar química na Alemanha, fixou-se em 1967 em São Paulo. É o atual chefe da Casa Imperial do Brasil.
– Estou na militância monarquista desde 2005. As pessoas veem o que está escrito e vêm conversar, várias apoiam. O presidencialismo republicano é a razão dessa crise – diz a aposentada.
Diante da sede da Polícia Federal, finalmente a hora mais esperada da noite. Em posição de sentido, alguns com a mão esquerda no peito, todos cantam o Hino Nacional, com sua letra centopeica a testar o civismo coletivo. A multidão se dispersa rapidamente, não sem antes ouvir para recolher todo o lixo, para mostrar “que até nisso nós somos melhores do que eles”.
Na versão do MBL, a ato atraiu 25 mil pessoas – mais tarde, a PM ajustaria a estimativa para 15 mil. De qualquer maneira, foi a maior manifestação de quinta-feira no Brasil inteiro, convocada de um dia para o outro após a posse (e posteriores liminares) de Lula como ministro-chefe da Casa Civil e os vazamentos de suas conversas com Dilma.
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Até o fechamento desta edição, Dilma Vana Rousseff, a primeira mulher na presidência do Brasil, reeleita em 2014 com 54 milhões de votos (mas derrotada em Santa Catarina) continuava no cargo. Seu adversário, o senador Aécio Neves (PSDB-MG), dono de 65% da preferência do eleitorado catarinense, delatado pelo ex-senador Delcídio Amaral (ex-PT-MS), não foi citado na manifestação.