Os amigos Róger Bitencourt e Jacinto Silveira passariam a noite deste Réveillon juntos. Eles combinavam como seria a festa de virada de ano em Jurerê, em Florianópolis, onde moram. Um acidente no último domingo, porém, dividiu as vidas dos dois. Róger morreu atropelado por um motorista que estaria embriagado, na SC-401. No mesmo acidente, Jacinto foi atingido pelo carro e teve ferimentos em todo o corpo.

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Três dias depois de perder o amigo, vizinho e colega de grupo de corrida, o empresário Jacinto conversou com o Diário Catarinense na casa dele, que fica quase em frente à do jornalista morto no domingo. Durante quase uma hora em seu quarto, deitado e com dores, falou sobre o acidente, a relação com Róger, se pensa em voltar a pedalar e sobre a estrutura para ciclistas.

Como foi o acidente?

A gente saiu para um pedal rotineiro, toda semana a gente pedala, normalmente terça, quinta, sábado e domingo. E era o pedal de domingo para fechar o ano. A gente ia fazer 60 quilômetros. Saímos daqui, fomos na Daniela, Shopping Floripa, Canasvieiras e na volta eu e o Róger tomamos a frente. A galera ficou mais para trás e quando pegamos o sentido Canasvieiras/Jurerê, perto da ponte da Vargem Grande, o Róger puxou a frente. Normalmente eu puxava, mas ele puxou e acelerou. Estávamos a 45 km/h cada um. Depois de ter andado 600 a 700 metros, não vi nada. O carro pegou a gente por trás. O meu sentimento era que eu tinha derrubado o Róger, e não que um carro tinha pegado a gente. O carro me pegou primeiro. Bati com a cabeça no para-brisa e provavelmente o carro avançou e pegou o Róger. Só pegou a roda da bicicleta dele. Ele caiu de cabeça. Não perdi a lucidez em nenhum momento, me levantei rápido e fui socorrer o Róger, mas quando cheguei ele já tinha passado, não respirava e muito sangue. Aí foi pânico, tentei parar a estrada, tentei juntar o que tinha pela frente. Entrei em desespero. Eu vi ele morrer. Eu dei tchau pra ele. Sempre chamei ele de “Negão”. Eu disse: “Calma, negão. Vai”. Mas o “vai” saiu involuntário, porque eu não queria que fosse. Eu tentava, pedi para os colegas ajudarem, mas não teve jeito. Ele não sofreu nada. Quando o Samu chegou e colocou o pano sobre o corpo do Róger é que eu vi o tamanho da desgraça.

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O que o contexto desse acidente pode gerar?

Todo mundo sabe que não é o primeiro. A causa é sempre a mesma, motorista imprudente, bêbado, a falta de fiscalização e policiamento. Não existe uma blitz no Norte da Ilha, moro em Jurerê e não vejo um policial na rua. Existe balada que usa rua como estacionamento. As pessoas bebem e dirigem sem controle algum. Faltavam cinco quilômetros para a gente chegar aqui na frente de casa e abrir um refrigerante como todas as outras vezes para dar risada. Pessoas que dormem e acordam cedo para levantar, pedalar e ficar bem. E tem gente inconsequente fazendo besteira. Que além de fazer besteira, e serem inconsequentes, não são controlados por outros inconsequentes que não tem responsabilidade nenhuma. E tá todo mundo aí sofrendo a perda de um cara sensacional, um amigo. Agora o momento é de virar, mudar e fazer algo diferente. Ao invés de arrumar desculpa, deve haver uma forte união para que se crie uma cultura diferente, para que se fiscalize. Quero que meus filhos andem de bicicleta, mas vão andar aonde? Dentro de um ginásio, dentro de uma igreja? O fato de ter ocorrido o acidente e essa repercussão, que sirvam e não seja em vão. Nós sozinhos não faremos nada. É preciso uma união de esforços.

Diante das circunstâncias ruins que os ciclistas têm, o que os motiva a seguir pedalando?

Motiva a busca de uma vida saudável. Completei 40 anos, quero estar junto com meus filhos com 80 anos. Acho muito mais interessante me preocupar em pedalar do que ficar em uma festa enchendo a cara até 5h da manhã. Foi feito um trabalho com os motoristas de ônibus há um ano e hoje eles nos respeitam, dão sinal, fazem barreira pra gente. Será que não dá para seguir isso? Será que não dá para entender que a bicicleta e o ciclistas são mais frágeis? Ninguém precisa passar do nosso lado tirando fininho, buzinando.

Como vai ser daqui pra frente, você pretende seguir pedalando?

Cheguei no hospital, mandei colocar tudo fora. A minha bicicleta, não queria ver. Acabei vendo pelas redes sociais. A vida tem que continuar. Se eu tivesse falecido e o Róger tivesse aqui (pausa)… Ele ia falar isso. tem que continuar, Vamos pedalar, a gente gosta de pedalar (começa a chorar). Não vai ser agora? Não vai. Eu não vou ter condições de sair pedalando. Será colocada uma ghost bike ali onde o Róger faleceu. Mas o mesmo lugar onde o Róger foi atropelado foi onde eu nasci. O que vai passar na minha cabeça toda vez que eu passar ali? (pausa) Não sei. Adoro esporte… (choro). Sempre fui esportista.

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Qual é o teu sentimento atualmente?

Em nenhum momento me passou revolta, em nenhum momento pensei em pegar esse motorista (que atropelou os ciclistas), acabar com ele. Não tem nada disso. Tenho pena desse cara, é um coitado. Acredito que era o momento do Róger, até pelo momento da pancada eu não estaria falando com vocês. Não era a minha vez. Tive uma chance absurda. Não vou me calar, isso você pode ter certeza. Nas oportunidades que eu tiver, vou falar. Até porque tenha certeza que se tivesse morrido o Róger ia virar isso de cabeça para baixo (volta a chorar). A gente vai se organizar e vamos cobrar pesado. Esse negócio de colocar bicicleta em árvore, chega. Não era pra ter mais nenhuma. Quero pedalar com a minha família e com meus amigos.

Como foram os últimos momentos com o Róger?

A gente estava batendo papo e rindo bastante. Toda vez que a gente pegava aquele trecho, era o momento de enfiar o pé (acelerar). Sempre quem ia na frente era eu. E quem puxou foi ele dessa vez. Pensei: “Vou deixar ele puxar pra ver onde ele vai”. Sempre mandei mais forte na bicicleta, e ele corria muito forte. E na bike ele treinava e não conseguia me passar (risos). Naquele dia eu estava no vácuo dele, por isso que achei que tinha derrubado ele. Sempre andei na frente dele. Foi triste demais.

Vocês eram amigos há muito tempo?

Há três anos e meio, quando vim morar em Jurerê. Era uma amizade muito intensa, um baita irmão, um baita parceiro. Com tudo, viagem, trabalho.

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Você tem pensado muito no fato de que você teve mais uma chance?

Sou muito intenso. O que digo não é o que eu acho, é o que penso. Tenho muita coisa para fazer. Por mais que tu planeje e organize, em qualquer piscar de olhos tudo pode mudar. Sou um cara organizado, tenho uma família que construí com a Greice. Mas será que vou ter tempo pra fazer? Não sei, eu vou fazer. Não vou ficar esperando. O que tenho pensado é o que farei.

O que você acha da estrutura da SC-401?

Ela não é segura nem para carro. Por exemplo: para que existe aquela praça de pedágio? Quantas pessoas já morreram grudadas lá? É uma estrada que não tem acostamento. O único trecho que tem é a partir da ponte da entrada de Jurerê até Canasvieiras que fizeram aquela ciclofaixa. A incompetência é tão grande que inauguraram o centro de convenções no Norte e nem acabaram o asfalto de acesso. A rodovia é ruim, tem um fluxo maior que a BR-101, não tem estrutura e o que fazem para tapar buraco só serve para ter mais buraco depois de seis meses. E ridículo o que eles expõe a população a usar uma rodovia como essa.

O motorista (Gustavo Raupp Schardosim) pediu perdão à família quando foi preso. Tem como perdoar?

Tem. Claro. O que tu quer que eu faça? Se eu não perdoar, vou fazer o que? Ficar com um rancor dentro de mim que não vai resolver nunca? Não vou perdoar ele porque vou perdoar ele. Vou perdoar para o meu bem. Não posso ficar com rancor de um cara que nem sei quem é, e nem quero saber. Se um dia ele bater na minha porta e dizer: eu sou quem te atropelou e que matou teu amigo. Vou dizer: “valeu, cara, muito obrigado”. A questão de perdoar não está relacionado a mim. O que vou fazer com ele? Eu tenho que estar bem comigo. Ele pediu perdão e como o choque é maior pelo Róger, talvez ele não vai ouvir falar de mim. Agora, que ele tem que pagar criminalmente, que bancar a inconsequência do que fez, não tenho dúvida nenhuma. O meu perdão não quer dizer que está imunizado do que ele fez. O que ele tinha para me tirar, já me tirou. Meu amigo, meu irmão já foi. Que as autoridades sejam competentes para punir o cara.

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