Combater a Covid-19 exige atenção e resiliência. O médico infectologista sabe muito bem disso. Aos 68 anos, ele integra o grupo que coordena as ações do estado de São Paulo no embate à pandemia. O maior estado do país é também o epicentro da doença no Brasil, com números superlativos.
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Em março, quando a pandemia começava a fazer vítimas em todo o país, Uip entrou para o time dos infectados pelo novo vírus. Após fazer exames, foi orientado pelos médicos a se isolar e cumprir o tratamento em casa. E assim o fez:
– Passei os 14 dias em repouso em casa, mas traz angústia, traz incerteza, dá medo. Eu sabia que poderia complicar em certo momento, e complicou. Mas felizmente consegui ficar em casa e me recuperei – relembra.
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Cumprida a quarentena, Uip voltou para a linha de frente, na clínica onde atua e com o time formado pelo governador João Doria (PSDB) para montar a estratégias e executar os planos para combater a Covid-19 em território paulista. A intensidade do trabalho levou o médico a um novo baque e no mês passado, ele foi orientado pelo médico a se afastar das atividades.
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– Voltei ao trabalho no dia seguinte ao final da minha quarentena. Então, precisei cuidar um pouco de mim. Eu me afastei da coordenação, mas continuo trabalhando com o grupo – conta Uip, que segue a trocar informações com as autoridades paulistas.
O infectologista parabeniza a todos os profissionais que atuam na manutenção de serviços essenciais e reforça a necessidade de seguir as orientações das autoridades, enquanto ainda não se tem um remédio ou uma vacina com eficácia comprovada. Ele comemora o fato de São Paulo integrar um estudo de uma vacina contra a Covid019, mas alerta:
– É uma ótima notícia, do ponto de vista de pesquisa. Agora, precisamos aguardar os resultados.
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Uip traz ainda relato de um amigo que duvidava do potencial destrutivo da doença, acabou infectado pelo vírus, e agora dá testemunhos da importância dos cuidados que devemos ter para evitar o contágio.
– Não subestime esse vírus – pontua.
Confira mais detalhes do que Uip disse na entrevista a seguir:
O senhor foi diagnosticado com Covid-19 em março. O que o senhor pode falar do período de isolamento e do tratamento? O que o senhor sentiu?
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Dia 23 de março (uma segunda-feira). Tem datas que são inesquecíveis pra gente. Foi difícil, porque eu trabalhei no domingo inteiro e no final do domingo o governador (João Doria) me chamou para fazer uma visita aos leitos de UTI, no Hospital das Clínicas, e em seguida para o Palácio (dos Bandeirantes). Quando eu cheguei ao palácio, eu não conseguia mais andar. Fui piorando, piorando no final da tarde, e à noite, uma dor insuportável. Fui para casa. À noite passei mal, com febre, tosse, uma dor insuportável. De manhã fui fazer o PCR (exame para detecção do vírus causador da Covid-19) e uma tomografia. O PCR deu positivo, confirmou aquilo que eu imaginava e tomografia normal. Fiquei os 14 dias seguintes em casa, isolado. E assim, muito difícil. As dores musculares insuportáveis, perdi olfato, perdi o tato e também uma dor na orofaringe insuportável. Então, fiquei quieto. Na segunda-feira seguinte (30 de março) repeti a tomografia, então uma semana depois apareceu uma pneumonia. As médicas que cuidaram de mim, trabalham comigo aqui na clínica, entenderam que dava para continuar em casa e eu passei os 14 dias em repouso em casa, mas traz angústia, traz incerteza, dá medo. Eu sabia que poderia complicar em certo momento, e complicou. Mas felizmente consegui ficar em casa e me recuperei.
Vemos em muitos lugares do país, governantes com dificuldades para conseguir conscientizar a população sobre a necessidade do isolamento social. Mesmo com medidas severas de restrição de circulação, ainda vemos muitas pessoas nas ruas, no Norte ao Sul do país. Na opinião do senhor, por que o brasileiro age assim?
É difícil, não é simples, não. Pelo contrário, acho que a população ela tem que ser elogiada. Ela suportou. Aqui em São Paulo nós ficamos boa parte do tempo com isolamento em torno de 50%. Não é simples. Se você descontar as pessoas que estão em serviços essenciais, isso inclui transporte e outras coisas, você tem um isolamento de 56%, 60%. Não é pouco. Mas chega uma hora que tem outros fatores. As populações mais de periferia têm dificuldades no dia a dia, elas trabalham de manhã para se alimentar à noite. Têm pessoas sem condições de isolamento, moram cinco, seis, 10 pessoas em um quarto. Então, o Brasil precisa ser entendido como Brasil, não vale comparar o Brasil com a Nova Zelândia.
Em São Paulo, só pra se ter uma ideia, têm 1.712 ruas na região metropolitana que dão acesso ao município de São Paulo. São Paulo tem 300 favelas. Então, isso é reflexo de um estado que tem suporte, que tem estrutura, mas reflete um pouco do que é o Brasil. É difícil o isolamento, embora absolutamente necessário, porque não tem Plano B. Ou é distanciamento social, lavagem de mãos, uso de máscaras, ou senão as coisas complicam mais do que já estão.
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O estado de São Paulo anunciou nos últimos dias que vai produzir e testar uma vacina contra a Covid-19, em parceria com um laboratório chinês. O senhor tem acompanhado esse processo de perto? O que você pode dizer?
Quando o governador (João Doria) foi eleito, até brinquei com ele: “O (Instituto) Butantan é um dos diamantes da coroa”. O estado de São Paulo tem institutos de altíssima competência e o Butantan é um deles. Estamos executando a fase final da vacina da dengue. O Butantan é uma grande instituição, tem Bio-Manguinhos, tem outras instituições. É uma boa notícia (vacina contra a Covid-19), mas precisa ser entendida. Isto passou pelas fases um e dois, e agora vai para a fase três. E torcemos todos nós brasileiros para que esta vacina seja bem-sucedida. Mas isso leva tempo.
Voluntários, precisa ver o acompanhamento, então estamos discutindo aí a duração dos anticorpos. Já passou por fase de segurança, doses, quais são as doses mais adequadas, populações diferentes, crianças, adultos, pessoas mais idosas, então está entrando na fase três. Acho que é uma ótima notícia, do ponto de vista de pesquisa. Agora, nós precisamos aguardar os resultados.
Neste momento, sem um remédio ou uma vacina chancelada pelas autoridades sanitárias, é possível vencermos a pandemia sem as armas que temos no momento: conscientização das pessoas sobre o distanciamento social e os cuidados básicos de prevenção, como lavar as mãos, usar álcool em gel e máscaras de proteção?
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Vou pedir licença para te dar um exemplo muito interessante. O primeiro caso de um brasileiro que pegou Aids no Brasil foi nesta clínica aqui, que naquele momento era liderada pelo professor Vicente Amato Neto. Estou falando de1982. Nós estamos em 2020 e não temos vacina para a Aids. Hoje as pessoas (com HIV positivo) vivem mais e melhor. Nós conseguimos diminuir muito a transmissibilidade, inclusive de mãe para filhos, com retrovirais. Conseguimos ter controle em cima de medicamentos. Então, tenho a expectativa que nós vamos ter medicamentos que tratem e ajudem a diminuir a transmissibilidade (da Covid-19), que tem as duas vertentes que são muito importantes. Acho também que não vai ser um medicamento só, vai ser um coquetel, a semelhança do que se faz com a Aids.
Agora, a melhor forma de prevenção é vacina. Então, o mundo inteiro pesquisa vacina. O mundo inteiro pesquisa medicamentos. E tudo que envolve hábitos, costumes, cultura, não é simples. Então, se eu te responder objetivamente, como é que você controla: no primeiro momento, talvez, com medicamentos, e o que vai ser mais eficiente a vacina.
O número de profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à Covid-19 e que se infectaram com o vírus é crescente. Isso reduz equipes de trabalho e sobrecarrega aqueles que seguem no combate à pandemia. O que é possível fazer para reverter isso?
Primeiro, os profissionais todos envolvidos, e não só os da saúde, na minha leitura são verdadeiros heróis. É difícil você zerar risco de quem está na linha de frente, agora tem que ter todos os cuidados, tem que estar bem treinado, tem que ter todo o material de proteção, aí você diminui risco.
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Qual o recado que o senhor deixa para esses profissionais, que seguem na luta para salvar vidas?
Primeiro um elogio e afeto. Sempre costumo dizer uma coisa que acho importante. A história vai contar, a história sempre conta, e todos esses profissionais vão ter um embate duro, convívio difícil, não é fácil ter equilíbrio com medo o tempo inteiro, você lidar com perdas. A morte de um paciente dói, independente da função que ocupe no atendimento. Então, primeiro uma palavra de incentivo: “Nós vamos lutar na linha de frente”. Então, a nossa persistência, a nossa tenacidade fazem total diferença nesse momento.
Na vertente, sobretudo do sofrimento na perda, uma grande alegria em cada vida que a gente vê que conseguiu salvar, é uma alegria que deve ser comemorada por todos nós. Profissionais, a imprensa, os familiares. Temos perdas e nós temos grandes vitórias. Acho que isso é o motor propulsor para que nós consigamos ir pra frente seguramente fazer o bem.
O que o senhor pode comentar a respeito da tentativa de mudança do governo federal a respeito das estatísticas oficiais do combate à doença, em que houve uma alteração e, seguidamente, um recuo para o método que utilizado anteriormente?
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A única coisa que não falo é do governo federal.
Como vamos vencer essa pandemia?
Diante de luta. É um vírus complicado, que causa internação, é um vírus tombibolico, é um vírus inflamatório. O doente é um doente, e a gente tem sempre a expectativa de que lado ele vai. Do ponto de vista de pandemia, acho que o Brasil, por ser um país com dimensões continentais, tanto o que vejo hoje em estados e municípios, estamos em momentos diferentes. Tem estados que já estão na frente da pandemia, interiorizando os casos.
Aqui em São Paulo, a cidade de São Paulo, o sistema de saúde está menos pressionado neste momento, mas o vírus, como prevíamos, interiorizou de uma forma muito forte. Então, provavelmente a cidade de São Paulo saia dessa primeiro onda antes do interior. E os estados do Sul, acho que estão entrando nisso um pouco depois. Mas é importante, porque cada tempo que se ganha, você prepara melhor o seu sistema de saúde e torce para que venha uma descoberta que ajude no tratamento e na prevenção da doença.
Quanto tudo isso passar, qual será a primeira coisa que o senhor fará, que no momento não consegue ou não é possível fazer?
É engraçado, falei isso ontem (domingo, dia 14), num grupo de amigos. O que mais sinto falta é da minha rotina. Adoro a minha rotina. Trabalho muito, trabalho muito pesado, sou reitor de uma universidade, estou lidando com o governo do Estado, a minha parte profissional é muito ativa. Agora, a minha parte pessoal, sinto falta da rotina com os meus amigos. Encontrar os meus amigos no dia a dia, estar próximo deles e da minha família. Então, sinto falta.
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O senhor se afastou da coordenação do Centro de Contingência do coronavírus de São Paulo em maio por sentir um mal-estar. Como o senhor está se sentindo agora?
Tive um segundo problema. O meu médico disse: “Você voltou muito rápido”. Eu voltei ao trabalho no dia seguinte ao final da minha quarentena. Então, precisei cuidar um pouco de mim. Eu me afastei da coordenação, mas continuo trabalhando com o grupo. Falo com o governador algumas vezes por dia, com o vice-governador (Rodrigo Garcia), com o secretário da Saúde (José Henrique Germann Ferreira), estou menos na linha de frente de entrevistas, mas sigo tentando ajudar neste momento da forma que estou autorizado pelos médicos.
Por fim, qual recado o senhor deixa para as pessoas que ainda duvidam da Covid-19 e desobedecem às novas regras sociais impostas pela pandemia?
Vou te dar um número: neste momento (fim de tarde da última segunda-feira, dia 15), tenho 16 pacientes internados em UTI, fora os internados em enfermaria. Alguns médicos e alguns amigos muito próximos. Não subestime esse vírus, essa epidemia. Tenho amigos de idades diferentes, médicos de idades diferentes, e que é uma luta no dia a dia para que eles sobrevivam. É uma doença dura, quando fica grave é pra valer. Exige recursos, profissionais e técnicos. Não subestime, não ache que é pouco, porque não é. Até por uma coincidência, para dar um recado aos que não acreditam, hoje vi um grande amigo, já estabilizado, ele está na UTI. Mas no começo, ele me confrontou e disso: “Isso não é tudo o que estão falando, há um exagero, a imprensa fala mais”. Infelizmente, ele ficou muito doente e graças a Deus, vai sair vivo. Hoje ele acabou me confessando: “Isso tudo o que eu passei vai me ajudar a falar para as outras pessoas que eu mudei, e estou legal. Eu não acreditava muito, e agora eu sofri muito”.
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