Domingo é o Dia Mundial do Coração, o músculo mais importante do nosso corpo. Um símbolo, não por acaso associado à emoções e, sobretudo, à vida. Nesta entrevista ao Vida e Saúde, o médico Sérgio Lima de Almeida, cirurgião cardiovascular há 27 anos, fala sobre os cuidados com o coração, a importância do tratamento mais humanizado nos hospitais e traz informações que buscam desmistificar procedimentos como a cirurgia de coronária, que só em Florianópolis chega a um número de aproximadamente 60 por mês.
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Diário Catarinense – O que é a doença coronariana?
Sérgio Lima de Almeida – É a doença que afeta as artérias coronárias. São obstruções causadas por uma doença chamada arteriosclerose. As placas obstruem as artérias coronárias, que irrigam o coração. A principal consequência é o infarto agudo do miocárdio. Um dos grandes riscos e o de morte súbita. Um coração pode se manter praticamente normal, mesmo infartado, desde que este seja de pequena gravidade. Mas quando se perde uma grande área do músculo do coração, acontece o que se chama de insuficiência cardíaca, que é o enfraquecimento da contratilidade (capacidade de contração do coração), levando a um distúrbio de vários órgãos do corpo. É uma doença crônica e de mortalidade elevada.
DC- Quando se deve iniciar a prevenção?
Almeida – Existe um ditado na medicina que diz: não existe ataque cardíaco súbito. Ele vem sendo preparado há anos. Boa parte das pessoas não apresentam sintoma algum, mas vem desenvolvendo essas placas. Em 30% dos casos o primeiro sintoma é o infarto. Ou seja, a pessoa já toma conhecimento da doença com uma complicação. Por isso a importância do controle dos fatores de risco. Os mais comuns são o fumo, a hipertensão, o diabetes, níveis elevados de colesterol, o sedentarismo e o estresse, que é muito subjetivo, pois não se consegue mensurar. Existe um outro, que chamamos de rótulo de fábrica, que é o histórico familiar, ou seja, a genética pré-condicionando o risco da doença. Este ainda não temos como alterar. Assim, precisamos identificar claramente quais os pacientes que possuem este fator de risco e, nestes, intensificar o cuidado.
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DC- Por que se tem tanto medo de operar o coração?
Almeida – Não é por ser no coração que o risco de uma cirurgia se torna maior. Mas a cirurgia cardíaca mexe com o órgão do sentimento das pessoas. Existe um lado psicológico, que precisa ser trabalhado e desmistificado. A reação das pessoas, quando sabe que vai ser operada, vai do receio ao pavor, porque a pessoa se depara com um risco com hora marcada. Porém, deve se salientar que o risco da doença é todo dia e o maior critério de comparação com o risco cirúrgico deve ser o risco da doença. Hoje a mortalidade em cirurgia de revascularização do miocárdio é muito baixa.
DC- Como então trabalhar com as dúvidas dos pacientes e dos familiares?
Almeida – Se diz que na medicina, como no amor, nem nunca, nem sempre. A medicina não é uma ciência exata, por isso, nem sempre se pode dar determinadas respostas com a precisão que alguns desejam. Contudo, a literatura demonstra através de inúmeros trabalhos científicos a clara evidência do baixo risco e da excelente recuperação com o tratamento cirúrgico. O que podemos e devemos é comparar e perguntar: o que é melhor? O risco crônico da doença ou o tratamento? O que vai ser mais eficaz? Hoje conseguimos operar pessoas que antes eram consideradas inoperáveis devido à gravidade da doença. A mortalidade é decrescente, apesar de estarmos operando pacientes mais graves e mais idosos. Por exemplo, muitas vezes se indica a cirurgia para um paciente de 80 anos. E muitos questionam: pra que mexer? Qual é o risco? Mas as pessoas hoje vivem mais tempo e chegam a essa idade às vezes só com um problema no coração, retratando uma força acima da média, ou seja um ser biologicamente mais forte. Justamente com esses pacientes temos um resultado melhor, inclusive na cirurgia. Lógico que o critério de seleção com os idosos é mais rígido. Mas se tem um resultado com a cirurgia tão bom em pacientes octogenários, quanto com aqueles na faixa de 50 ou 60 anos de idade.
DC- Quais os índices de mortalidade com este procedimento?
Almeida – O risco de morte em uma cirurgia de coronária, globalmente, está entre 1,5 a 1,8%. No SOS Cárdio conseguimos um índice abaixo de 1%. Isso se deve principalmente a uma integração entre o serviço de cirurgia, de clínica, de UTI e de hemodinâmica. Com essa forma de trabalho, se tem uma melhor indicação para o tipo de tratamento mais adequado. O tratamento multidisciplinar também influencia no resultado da cirurgia. Ter uma equipe de enfermagem, fisioterapia, psicologia, enfim, uma equipe toda integrada e voltada para a humanização do atendimento influencia diretamente no resultado cirúrgico final. Tudo isso, sempre tendo como princípio de que não se opera um coração. Se opera uma pessoa que tem um coração, que precisa ser vista como um todo. E o lado psicológico dá o ânimo necessário para o paciente melhor se recuperar. Isso diminui a dor, diminui o risco de infecção e torna menor o tempo de internação.
DC- Está correto afirmar que a cirurgia coronariana é a mais estudada na história da medicina?
Almeida – Sim. A cirurgia coronária foi criada nos Estados Unidos, em 1967, pelo médico argentino René Favaloro. Foi um marco da cirurgia cardíaca e se espalhou pelo mundo. De lá para cá houve um grande avanço tecnológico na medicina, inclusive na área da anestesia, que envolveu este tipo de cirurgia. Esse procedimento passou por diversos desafios, por ser pioneiro nos procedimentos que mexem com o coração. Foram milhares de trabalhos e estudos realizados com pacientes. Então, a cirurgia de coronária é de fato a mais estudada e veio para ficar. Tem excelente resultado a curto, médio e longo prazo, e principalmente é muito mais eficaz, quanto mais grave é a doença.
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DC- Por quê?
Almeida – Além da obstrução das artérias, ao logo do tempo a doença leva a infartos ou à degeneração do músculo do coração, sem infarto, mas com sério comprometimento da contratilidade do mesmo. Pacientes com um coração que contrai mal e que precisa ser revascularizado, são os de maior risco para o tratamento da doença. Nesses pacientes, a cirurgia do coronária tem o seu maior benefício e é a mais indicada. São os pacientes que melhor se recuperam e que ganham mais em longevidade e melhor qualidade de vida.
DC- Uma indicação cirúrgica significa que o caso é tão grave que só sobrou esta alternativa?
Almeida – Não. Significa que a cirurgia é o tratamento de menor risco e maior eficácia a longo prazo para aquele determinado paciente.
DC- Como são definidos os tratamentos mais adequados?
Almeida – Se a gente fizer uma comparação simples, mas elucidativa, da irrigação do coração com a irrigação de uma plantação de couve, por exemplo, onde o músculo do coração são os pés de couve e os canos da irrigação são as coronárias, quanto mais canos comprometidos, mais áreas da nossa lavoura estão em risco e os pés de couve daquela região vão morrer, caso os canos se obstruam. É exatamente o que se chama de infarto do miocárdio. Uma coronária obstrui e o músculo daquela região morre. Nos pacientes que têm lesão em três ou mais vasos e/ ou já tenham comprometimento da contraticudade do coração por perda de músculo, o melhor resultado é obtido com o tratamento cirúrgico. Quando são um ou dois vasos, dependendo da localização da lesão, o tratamento da angioplastia (dilatação dos vasos, com a colocação de um pequeno suporte de metal, chamado stent) se equivale ao da cirurgia e é muito utilizado por ser menos invasivo. Em outros casos, os medicamentos têm resultados ótimos também. Por isso é importante o acompanhamento periódico da doença, com os cardiologistas clínicos. Esses três tipos de tratamento atuando em sinergia, trazem uma longevidade e uma qualidade de vida fantástica.
DC- Por que esta cirurgia é conhecida como Ponte de Safena? E o que é Ponte de Mamária?
Almeida – Uma artéria coronária tem uma obstrução. As coronárias tem origem na aorta, que é a artéria principal na saída do coração para levar sangue ao corpo. Então, se retira um segmento de uma veia da perna, chamada safena, que é ligado (suturado) na aorta e levado adiante da obstrução na artéria coronária, onde também é suturado . Ou seja, se faz uma ponte. O sangue continua pelo caminho antigo e ganha um caminho novo, criado pela cirurgia. A Ponte de Mamária é feita com uma artéria que se tem dentro do tórax, que é retiradas de seu sítio e colocada diretamente como ponte, no coração. Para uma determinada artéria do coração, chamada descentente anterior, a artéria mamária é o melhor enxerto em longevidade. Às vezes, quem fez cirurgia de varizes fica na dúvida sobre que tipo de enxerto vai poder utilizar, porém, existem várias alternativas, além da safena.
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DC- Ponte de safena tem durabilidade ou tempo de validade?
Almeida – Há um tempo havia uma durabilidade das pontes que era de sete a dez anos. Mas isso mudou muito. Hoje o tratamento clínico da doença coronariana melhorou consideravelmente. E isso faz com que a longevidade das pontes seja muito grande. Se o paciente se cuida e segue as recomendações médicas, não se pode estimar o tempo de durabilidade das pontes.
DC- Quanto maior o número de pontes na cirurgia maior o risco? Maior a gravidade do caso? Qual o maior fator determinante de risco na cirurgia de coronária?
Almeida- O número de pontes traduz a extensão da doença, não influencia no risco. O risco de mortalidade está relacionada à contratilidade do coração. Ou seja, quanto mais músculo o coração perder, menos ele se contrai. Isso é o que traz mais risco na cirurgia.
DC- Quem teve um infarto, ainda pode ser operado?
Almeida – Sim. O infarto foi uma área da nossa lavoura que morreu. Mas a cirurgia está indicada para proteger o resto que sobrou.
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DC- A anestesia é outro fator que influencia no medo da cirurgia?
Almeida – A cirurgia cardíaca é feita com anestesia geral. Isso assusta principalmente as pessoas de mais idade, pelo fato de que houve épocas em que esse tipo de anestesia trazia mais riscos. Mas atualmente os avanços garantem uma maior monitorização dos pacientes e as drogas que existem hoje são muito mais eficazes. A anestesia é um fator de extrema segurança para a cirurgia. O desenvolvimento da anestesiologia nos últimos anos contribuiu para diminuir ainda mais o risco da cirurgia cardíaca. Felizmente trabalhamos hoje com uma equipe de anestesiologistas de excelente qualidade, que em muito contribuem para segurança de nossa cirurgia e para nossos resultados.
DC- O fato de o paciente precisar ir para a UTI após a cirurgia também assusta. Estar na UTI significa ser um paciente da alto risco?
Almeida – Não necessariamente. O que acontece é que a UTI, principalmente para os pacientes idosos, significa um isolamento da família, serem cuidados por pessoas que não conhecem, numa situação de pós operatório, que sempre é algo que assusta. Mas é importante vê-la de uma outra forma. A UTI é necessária para um acompanhamento nas primeiras horas após a cirurgia. Com os analgésicos, a dor já passou a ser bem menor. E o atendimento está muito humanizado. As equipes de pós operatório são treinadas para humanizar o tratamento e hoje se tem a UTI muito mais liberada à visita das famílias. Nesse momento de fragilidade, o conforto da presença dos familiares está diretamente relacionado a um estímulo psicológico positivo para o doente. E isso objetivamente auxilia na melhora das pessoas e na diminuição desse período de terapia intensiva.
DC- Por que os pacientes operados são considerados em fase de prevenção secundária da doença?
Almeida – A prevenção primária é para quem não tem diagnóstico de doença, justamente para que ela não apareça. Os que têm diagnóstico de doença coronariana, não só os operados ou os que sofreram infarto, estão em uma fase secundária da prevenção. Estão se cuidando para que a doença não evolua.
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DC- Quais são as restrições colocadas pela doença coronariana?
Almeida – O diabético tem uma restrição imposta pela doença, de não comer açúcar. O hipertenso, de não comer sal. Mas o paciente pode ser coronariano e não ser diabético, nem hipertenso. Então, qual a restrição imposta pela doença coronariana? Trata-se, na verdade, de uma recomendação de hábitos saudáveis de vida. São recomendações de saúde. E o que vale para ele, vale para sua família tanto em alimentação, prática de exercícios e outros hábitos saudáveis de vida. A família pode estar na prevenção primária e ele na secundária, mas a recomendação é a mesma. Fazer exercício, não fumar, faz bem pra ele, mas também para todo mundo. Assim, encaramos de forma positiva um problema chamado de doença.
DC- Como fica a vida após a cirurgia?
Almeida – Se o paciente não traz consigo uma limitação prévia, a cirurgia vai devolver a ele uma qualidade e uma quantidade de vida normais. Muitos acham que por operar o coração a vida acabou. Não!!! Vai poder viajar, dirigir, fazer caminhadas, jogar futebol, trabalhar, enfim, fazer tudo o que fazia antes, só que agora seguro, protegido. E vai precisar, é lógico, ter hábitos saudáveis de vida como meta. Mas isso todos nós devemos ter. O que acontece é que às vezes o susto de uma cirurgia desperta para um redirecionamento da vida, o que é muito positivo.
DC- Quais os grandes vilões do coração?
Almeida – Os dois maiores vilões do coração são o diabetes e o fumo. O diabetes pode ser controlado e o paciente terá uma menor incidência da presença das lesões. Com relação ao fumo, é uma obrigação do paciente, para com e ele e para com sua família, de ficar afastado radicalmente. Não há possibilidade de se negociar, de dizer que uma quantidade menor fará menos mal.
DC- E o vinho, faz bem?
Almeida – Existem diversos trabalhos que mostram que o uso rotineiro de pequenas doses de vinho faz com que haja uma proteção das placas e uma incidência menor de doença coronariana. Mas é preciso muito cuidado. Nós somos um todo. Temos pâncreas, temos fígado e sabemos que doses moderadas e mais altas de álcool lesam estes órgãos, inclusive o coração. O vinho pode ser tomado como hábito, não como vício, em doses pequenas e não cumulativas. Ou seja, deixar para tomar todas as doses em um único final de semana. Isso é lesivo para o organismo.
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