Para além das tentativas de maquiar o tamanho do problema, evitar as críticas nos noticiários ou minimizar a pandemia, a polêmica sobre a falta de divulgação dos dados de mortes e casos acumulados de covid-19 no Brasil expôs um problema crônico. Comunicar com decência a população sobre a crise. E não apenas comunicar para dizer que o recado foi dado. É comunicar de forma didática, simples, de modo a fazer o brasileiro mais erudito e o mais singelo cidadão dos rincões entenderem a mensagem. Isso é transparência ativa, quando o governante não espera ser indagado para responder à população.

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Nada disso foi feito. Por pelo menos quatro vezes o portal que abriga o painel da covid-19 do Ministério da Saúde sofreu modificações e melhorias desde março deste ano. Houve dois dias em que o site chegou a ficar inativo, lá no começo da pandemia. Mas em entrevistas coletivas diárias o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e a equipe davam diariamente explicações para as panes, normalmente ocorridas na tentativa de ampliar as informações inseridas na página.

Agora não foi assim. Sem as coletivas diárias para dar satisfações aos questionamentos, no primeiro momento dados acumulados de casos e mortes foram suprimidos na sexta-feira (5), justamente na semana em que se tornou rotina acrescentar diariamente mais de 1 mil novos óbitos ao total acumulado. E, no sábado (6), tudo fica fora do ar, sem aviso, sem satisfação ao público, como se não fosse dever de quem governa, determinado pela Lei Federal de Acesso à Informação. 

Argumento é de que mais informações serão prestadas, após pressão da sociedade

Nesta segunda-feira (8), uma raridade nesses dias recentes, o Ministério da Saúde voltou a fazer uma coletiva de imprensa. Dessa vez para se justificar e alegar que o apagão do painel da covid-19 ocorreu porque novas implementações serão feitas (ainda não estão no ar como prometidas). Mais informações estarão disponíveis à população, como gênero, idade, ocupação de leitos de UTIs nos Estados etc. A curva das mortes não será mais contada pela data de divulgação dos Estados, mas sim pela data da ocorrência das mortes. Assim como serão os casos confirmados. 

Ministro interino da Saúde durante sabatina de comissão especial sobre o coronavírus na Câmara dos Deputados, na tarde desta terça-feira
Ministro interino da Saúde durante sabatina de comissão especial sobre o coronavírus na Câmara dos Deputados, na tarde desta terça-feira (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

Muita coisa do que se falou sobre a mudança na maneira de contar os dados, por data de ocorrência das mortes e data de aparecimento dos sintomas, não estão erradas. Aliás, deveria ter sido assim desde o começo do surto. É com base na data exata de quando as pessoas morreram e no dia em que se imagina ter se infectado que será possível traçar com mais exatidão o pico real da doença nas cidades e no Brasil. Mas a soma total dos casos, aquela que o governo tentou mascarar, não muda nem com um método nem com outro. E já se aproxima de 40 mil mortes.

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O problema é que a emenda do Ministério da Saúde (detentor do DataSUS, uma das bases de dados públicos mais amplas e abertas) foi pior que o soneto. Aí perdeu total credibilidade. Se fosse para aprimorar as bases, deveriam ter avisado antes a população de que essa mudança seria necessária para enxergar melhor o pico da doença. Mesmo que essa seja a verdade, é difícil crer que a mudança é puramente técnica, e não reação à pressão que a sociedade organizada fez para a volta dos dados. 

Nenhum país do mundo mexeu na metodologia de registro da pandemia quando ela ainda estava no auge. Por que o Brasil acha que sozinho e isolado está certo? Virou, de novo, vexame mundial. “Bolsonaro esconde número de mortes e total de casos por coronavírus no Brasil”, mancheteou o jornal britânico The Guardian, um dos mais respeitados do mundo.

O sábio aprende com os erros dos outros

Aliás, algo me intriga sobre a inteligência humana em não aprender com os erros do passado. Nesta recente República democrática brasileira, se há uma política de Estado que isentões, lulistas e bolsonaristas hão de concordar ter sido bem sucedida é o Plano Real. Quando completou 20 anos de vigência da nova moeda, que derrubou a hiperinflação e devolveu estabilidade econômica, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso defendeu em discurso ao Congresso Nacional que o didatismo e a antecipação do que seria feito fez com que a população entendesse cada passo da implantação do Real, e não fosse surpreendida, como aconteceu com todos os planos anteriores, que fracassaram. 

Tudo na gestão pública deveria ser assim. Explicar, avisar, ensinar. Prestar contas. Dar subsídios para a tomada de decisão. Isso é ser honesto. 

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Não é negando a pandemia que o problema será resolvido, que os leitos de UTIs serão esvaziados ou novos serão implementados, que as pessoas voltarão a consumir e a circular pelas cidades normalmente, que os idosos se blindarão misticamente contra esse vírus, que em SC mata um em cada quatro infectados com mais de 80 anos. É justamente informação e dados confiáveis e compreensíveis que ajudarão a sociedade, os empresários, os pesquisadores, os jornalistas e as autoridades a construírem em conjunto uma nova rotina segura. 

*Jornalista da NSC Comunicação, coordena o Painel do Coronavírus do NSC Total, que desde 23 de março monitora o avanço da covid-19 em SC. É integrante do programa de formação em Jornalismo de Dados da Deutsche Welle Akademie, da Alemanha.