É natural que quem acumule 89 anos de vida, como Gabriela Schwartz Heilbraun, tenha histórias para contar. Mas Gitta, como a senhora judia de origem romena é conhecida, supera qualquer expectativa de quem tem a honra de ouvi-la. Ela é sobrevivente do maior campo de concentração de judeus da Alemanha nazista: Auschwitz-Birkenau, que permanece aberto à visitação na Polônia em forma de museu. Neste fim de semana, completam-se 73 anos da chegada das tropas soviéticas ao local e da consequente libertação dos prisioneiros que vivenciaram o Holocausto do início ao fim.
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Levada de Satu Mare, na fronteira entre a Hungria e a Romênia, junto à família ao final da 2ª Guerra Mundial, em 1944, Gitta não carrega na pele uma tatuagem com a própria numeração. Em compensação, o horror segue vivo na memória e em documentos que comprovam a forma com que essa população era comercializada e dizimada em prol da raça ariana preconizada por Adolf Hitler. E assim permanecerá até que seus olhos se fechem pela última vez e carreguem consigo todas as lembranças, como ela mesmo diz em tom de alívio no livro A Tenda Branca, de Salus Loch, lançado no final do ano passado. Contada em sua própria casa, em São José, na Grande Florianópolis, de forma surpreendentemente lúcida e em quase todos os momentos bem-humorada, conheça a história desta sobrevivente:
Como era a sua vida e de sua família em Satu Mare?
Tínhamos uma vida muito boa e éramos religiosos. Meu pai tinha três fábricas: de velas, telhas e aquecedores, que eram os itens mais importantes da época. Minha mãe era dona de casa. Eu estudava, meu irmão também, ainda que não quisesse (risos). Não era preciso trabalhar para ajudar em casa, porque havia empregada. Tínhamos uma casa bonita, com um jardim enorme cheio de flores e plantas que minha mãe adorava cuidar. Não éramos ricos, mas também não éramos pobres. Viajávamos, como quando fomos ver o Mar Negro na Romênia. Mas depois o céu se escureceu. Ficou todo escuro. Veio a guerra. Eu tinha 15 anos quando me levaram. Bom, os húngaros nunca gostaram dos judeus e creio que ninguém gosta. Acredito que eles pensam que os judeus mataram Cristo e, por isso, nos odeiam. Os sacerdotes também falavam isso no rádio e nas igrejas contra os judeus. Não sei, mas deve haver uma razão para odiar os judeus.
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A senhora e a sua família já viviam em guetos antes de serem levados até Auschwitz-Birkenau?
Antes de irmos para os guetos, um soldado húngaro foi enviado até a nossa casa. Eles ocuparam todas as casas, estavam se preparando para a guerra. Dormiam e comiam ali. Havia um que era mais que soldado e estava em nossa casa e nos disse: “senhor Schwartz, leve sua família e vá a Grécia ou por aí. Vá embora!” Quem podia imaginar o que ia vir depois? Como a guerra já estava acontecendo há três, quatro anos, não esperávamos que seríamos levados mais. Esperávamos que tudo acabaria. Ficamos ali por um ano.
O momento já dava pistas do que estava por vir?
Com [Adolf, líder do Partido Nazista na Alemanha] Hitler, sim. Porque ele já estava no poder. E se escutava muitas coisas, mas nós pensávamos que os húngaros não iriam fazer nada conosco, até porque meu pai foi soldado na 1ª Guerra Mundial e pensou que isso valia algo.
Vocês viam outras famílias de judeus também com medo ou fugindo? Foi rápido até irem aos campos de concentração?
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Todo mundo estava preocupado. Como se viesse um céu escuro e todo mundo pensasse que iria chover. Estava escurecendo a situação. De repente tivemos que ir aos guetos. Juntaram todos os judeus de Satu Mare e arredores. E minha tia morava nesse lugar antes de se tornar gueto.Fomos nós e outras famílias também para lá.
Chegavam informações no gueto sobre, por exemplo, outras famílias judias que estavam em campos de concentração?
Sim, mas não se podia mais escutar rádio, era muito perigoso, porque podiam nos pegar e nos levar. Mas sempre se escutavam coisas. Depois dos boatos, logo começaram a levar os judeus, de fato. Tinha que levar um pouco de roupa e joias. Eles queriam porque depois pegariam. Mas nós não tínhamos mais, porque nessa época já havíamos escondido em nossa casa.
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Como foi o primeiro dia no campo de concentração?
Puseram todos na rua, explicando que levássemos para lá qualquer coisa. E depois nos levaram até uma estação de trem, que ficava a umas oito quadras do gueto. Fomos levados em trens de animais, não tinha assentos, nem janela, de jeito nenhum. Não tinha lugar para fazer xixi, nem cocô. Era muita gente e demorou muito até a Polônia.
Em Auschwitz-Birkenau, estão os dizeres “O trabalho liberta”. Vocês sabiam que o motivo da ida dos judeus para lá não era necessariamente para trabalhar?
Não sabíamos. Ali, eu perdi toda a minha família. Meu pai, minha mãe, meu irmão e minha irmãzinha, de somente cinco anos. E eu sobrevivi. Não sei por quê. Não fiz nenhum milagre. (Pausa) Por fim, chegamos em Auschwitz em uma noite. E houve o dr. Mengele [Josef Mengele, médico-chefe de Auschwitz, que apesar de ser conhecido por realizar experimentos cruéis e pela alcunha “Anjo da Morte”, nunca foi julgado], que me tirou da fila da morte para ir trabalhar. As pessoas iam para um lado ou para o outro, em filas, e ele me disse para ir para um e me separar da minha família. Eu queria ir com a minha mãe, mas ela me disse: “não, tu fica onde estás”. Ela queria ir comigo, mas também queria ficar com a minha irmã. Muitas outras mulheres também morreram por esse mesmo motivo: não quiseram se separar de seus filhos pequenos.
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Então é correto pensar que a senhora se salvou por ser uma mulher jovem e, portanto, ter condições para trabalhar?
Houve muitos jovens que também morreram ali. Eu não sei por que eu vivi. Talvez pelo trabalho. Todo o tempo havia trabalho.
Qual é a última lembrança que a senhora tem de seus familiares?
Eu não havia entendido que aquilo era a morte. Pensei que haviam nos separado para trabalhar. Eu estava desesperada porque haviam nos separado, mas minha mãe me disse para ficar onde haviam me colocado. E eu fiquei. E eles se foram. Eu também me fui, porque primeiro tivemos que ficar ali parados, horas inteiras, para fazer a contagem. Depois, nos colocaram em um lugar construído com camas em prateleiras. Cada quadrado com umas seis, oito pessoas dormindo. Não podia se esticar, era preciso dar lugar ao outro. No outro dia, nos acordaram e nos levaram para o banho. Entramos, nos despimos e nos colocaram a cortar o cabelo. Eu era muito orgulhosa do meu cabelo, que era um louro escuro. Comecei a chorar, pedindo que não me cortassem. Aí a minha tia, que estava comigo, pediu que deixassem um pouco pelo menos na frente. E me deixaram com um pouquinho na frente e o resto todo cortado. Cortaram o cabelo de todos. Essa foi a primeira desgraça que eu senti. Seguramente os alemães usaram nossos cabelos. E depois a comida neste quadrado… Vinha uma panela enorme para todas as pessoas que estavam ali. Não havia talheres. Tinha que agarrar a panela e todos contamos: um, dois, três, quatro, cinco goles. Aí passava para o próximo e tudo de novo. Até que acabasse a sopa, ou o que quer que fosse aquilo, uma m*. Tínhamos muita fome. E aí bem de madrugada, depois do banho, nos deram um vestido listrado e nos levaram para um galpão onde havia milhares de pessoas de todas as nacionalidades. Quase todos judeus. Era uma barbaridade de gente. Todos tivemos que esperar por horas a contagem com o estômago completamente vazia. Se não estava exato, ou pensavam que alguém havia escapado, havia que contar tudo de novo. Era assim diariamente. Depois, com um tempo, nos colocavam em círculo e vinham pessoas de fábricas de trabalhadores para escolher entre nós. Para nos levar outra vez. Queriam saber quais pessoas valiam e quais pessoas não valiam. Como se fôssemos cavalos. Viam dentes, língua, olhos. Eu tinha um corpo lindo (risos). Agora consigo rir, mas era para chorar.
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Que tipo de trabalho a senhora acabou fazendo?
Fui transportada para Gelsenkirchen, na Alemanha, para trabalhar em uma fábrica de petróleo que havia sido bombardeada. Fui vendida, assim como milhares de outros judeus. Tínhamos que reconstruir esse lugar. Carregávamos tijolos em fila indiana até as mãos sangrarem. As mulheres eram maioria. Quando já estava tudo pronto para os senhores alemães fazerem alguma coisa, vieram os russos com os Aliados e bombardearam tudo. E bombardearam a nós também. Seguramente sabiam que nós estávamos ali. E, assim, corremos para fora. Mas era tudo fechado. Os soldados também se assustaram e quebraram tudo para poder sair. As bombas caíram. Minha tia se jogou em cima de mim para me proteger. À noite, todos foram dormir e eu fiquei um pouco fora, porque era bonita a noite. Vi pessoas sentadas perto de umas mesas. Fui ali e disse: “por que ficas aí e não vem para dentro?” Mas eram mortos, e eu não sabia que estavam mortos. No outro dia, quando nos levantamos, me escolheram para ir lá recolher os mortos e enterrá-los. Sempre escolhiam a mim (risos). Sortuda, não é?
E depois?
Como estava tudo bombardeado, não havia por que ficar ali. Fomos com os soldados alemães para Sömmerda. Essa era uma fábrica de munição. E aí me escolheram para dar comida para as máquinas [encher os cartuchos de pólvora]. Eu tinha que levar em uma bandeja para a máquina, a máquina o enchia, depois, rapidamente levar outra bandeja para outra máquina. Eram duas ao mesmo tempo. Tudo isso tinha que ser muito rápido, porque era super perigoso e super difícil. Se caísse a pólvora, explodia tudo. Não sei por quanto tempo eu trabalhava assim. Porque sou uma pessoa que, quando quero uma coisa, eu faço. E estou certa de que é isso que tenho que fazer. Pelo menos eu era assim. Essa força me dava todo o caminho para fazer tudo o que tinha para ser feito. Enfim, eram todos os dias assim, de muito trabalho. Até que uma noite os Aliados vieram bombardear a cidade. E nós estávamos em uma fábrica de munições. Se caísse uma bomba, todos teriam sido mortos. Tínhamos muito medo. Mas não caiu nenhuma bomba onde estávamos. E os russos já estavam muito próximos.
Era possível saber que a guerra estava chegando ao fim? Houve uma esperança de libertação?
Sim, sempre se sabia de alguma coisa. Foi quando começamos a andar de um lugar a outro [no episódio conhecido por “Marcha da Morte”]. Sem trabalhar, só caminhando. Dormindo onde os animais dormiam, em celeiros. Aí se parecia que a guerra se desmoronava. Mas era uma incerteza. Eram mais ou menos 30 quilômetros de caminhada por dia, no frio, sem roupa, nem sapatos adequados. A comida, quando tinha, era batata cozida. Os soldados nos levavam e tínhamos que fazer tudo o que mandavam. Quem discordasse era morto, como foi uma menina que queria ir para outro lado. Um dia de manhã, estávamos dentro de um celeiro, e ninguém vinha nos despertar para continuar a caminhada. De repente escutamos barulhos, carros e movimento. Aí vimos os carros dos russos, com a bandeira e tudo. Estávamos na Tchecoslováquia e já havíamos cruzado a Alemanha a pé. A guerra havia acabado.
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Quando a senhora soube, então, que havia perdido a família?
Eu tive a certeza de que eles estavam mortos quando cheguei à minha casa e quem abriu a porta foi o meu tio, não o meu pai, nem minha mãe. Da minha família, só havia sobrado meu tio e minha tia, isso que meu pai tinha mais de 10 irmãos, além de duas primas que estiveram comigo na Marcha da Morte. Em Auschwitz, nós sentíamos o cheiro, que era horrível, e víamos a fumaça, mas não sabíamos que eram os corpos de nossos familiares. Eles nos diziam que estavam queimando os corpos de quem já havia morrido naturalmente. Pensávamos que as nossas famílias também estavam trabalhando em outros lugares. Mas entraram em um “banho” e…
Qual era o seu estado físico e de saúde quando a guerra terminou?
Por trabalhar tanto, o físico não estava muito bom. Mas, de resto, estava tudo bem. Claro que dói o coração, mas o que posso fazer? Eu estava feliz com o fim da guerra. Durante a guerra, havia bastante preocupações: que não nos matassem, que cuidássemos o que falávamos. Eu trabalhava, todos trabalhavam. Mas eu trabalhei mais, porque sou honrada, decente. Pensava que depois da guerra tudo ia ser bem, ia reencontrar minha família, todo seria igual como antes. Porque Hitler havia perdido. E nós estávamos do lado dos romenos, que estavam do lado dos americanos.
Apesar de toda a série de desgraças, como a senhora mesmo fala, houve algum episódio de humanidade nesse período?
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Sim, havia um soldado que tomava conta de nós e que se apaixonou por uma judia. Havia uma moça judia linda e eles se apaixonaram. Depois, quando descobriram, ele foi transferido para outro campo. Acredito que, depois da guerra, eles se encontraram, porque viviam um amor muito bonito. Depois, havia uma médica que gostava de mulheres. E escolheu outra moça judia que parecia uma estrela de cinema para ser sua amante. Uma vez, quando caí desmaiada, exausta, na fábrica de munições em Sömmerda, essa médica me levou ao hospital. Ela era tão boa comigo, que pensei que ela também fosse me escolher para ser sua amante (risos). Mas ela só me deu um paletó de presente. Não era dela, havia um montão de roupas, que todos deixaram, mas ela achou que devia me dar para eu não passar tanto frio.
A senhora pensava por que estava ali?
Porque era judia. Isso eu sabia. Eu sempre pensava: vou a Israel assim que terminar a guerra. E quase fui. Meus tios quiseram ir aos Estados Unidos, mas eu fiquei em Satu Mare e me casei com um homem que não queria ter casado. Ele também era judeu, era um homem muito bom, tinha dinheiro, mas eu não era apaixonada por ele, faltava alguma coisa. Ficamos em Satu Mare por dois anos e depois tivemos que fugir do comunismo, porque nos tiravam todos os poucos bens que haviam nos restado. Viajamos até a Áustria em caixas de papelão dentro de trens de carga. Lá, fiz um curso de corte e costura por dois anos, conseguimos documentação e pegamos um voo que nos levaria diretamente até o Peru, mas houve uma parada em Cabo Verde. Quando finalmente chegamos na América Latina, refiz minha vida, tive minha filha e viajei para vários lugares. Conheci um italiano em um café de estilo suíço, onde ia se encontrar com minhas amigas. Ele me deu um beijo de língua, quase desmaiei, porque nunca havia ganhado um beijo daquele. Fui viver com ele e viemos para o Brasil, em São Paulo. Ele comprou uma residência e colocou em meu nome. Depois, ele me abandonou. Em 2015, meu genro me trouxe para cá [São José].
Aqui em SC, há movimentos neonazistas. O que diria para quem acredita que o Holocausto não aconteceu?
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Eu não sei, não sou tão inteligente para escolher uma palavra boa. Só posso dizer que aconteceu. Posso mostrar coisas que aconteceram. Mas o que mais posso fazer? Ir gritar por aí? Podemos dizer no que acreditamos e no que acreditamos, são crenças pessoais. No começo, essas pessoas deviam pensar que seria impossível fazer algo tão terrível. Matar gente por nada e agarrar suas fortunas.
É possível perdoar e ser feliz?
Eu não sei. Há muita dor no meu coração. Por tanta injustiça. Mas essa gente que nasceu depois, que culpa tem? Penso assim. Não gosto dos alemães, o que posso fazer? Sei que eles não têm culpa do que passou. Mas, se vier outro Hitler, sei que faria o mesmo. Eu estive perto de morrer, mas não penso mais nisso. Porque eu gosto muito da vida. A alegria me ajuda a não pensar tanto.
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