Não é à toa que muitos definem a controversa Lei da Mídia como um embate entre a presidente Cristina Kirchner e o Grupo Clarín, principal conglomerado de comunicações local e aliado do kirchnerismo até quatro anos atrás. Ambos se aferram à lógica quando perfilam argumentos. De um lado, Cristina justifica a norma dizendo que democratiza a mídia e restringe monopólios. O Clarín, acusado pelo governo de monopolizar a informação, argumenta ter direito adquirido às licenças das quais precisaria se desfazer, reclama de inconstitucionalidade e argumenta que os amigos do poder serão os beneficiados ao se repartirem novas concessões. Na quinta-feira, o Clarín foi à Justiça e prorrogou liminar que impede a aplicação plena da lei – prevista para a última sexta-feira, o 7D (abreviatura de 7 de dezembro). O governo se utilizou do recurso per saltum (que pula instâncias) para acionar a Corte Suprema, que se reúne na terça-feira. Em entrevista a ZH no sábado à tarde, o gerente de comunicações do Clarín, Martín Etchevers, explicou a estratégia a ser utilizada pela empresa no duelo que se avizinha. Confira:

Continua depois da publicidade

Zero Hora – O 7D se tornou um embate judicial. Como o Clarín vê este momento da disputa?

Martín Etchevers – O que ocorreu na quinta-feira (a decisão judicial) trouxe ordem frente à tentativa do governo de avançar sobre nossas licenças. A Justiça disse que o governo não poderia fazê-lo sem que se decidisse o juízo de mérito sobre a constitucionalidade de dois artigos da Lei de Mídia. Se a Justiça decide que são inconstitucionais e o governo já tiver nos tirado as licenças, haveria um dano irreparável. Trabalhamos para que se demonstre por que os artigos são inconstitucionais. Não querem vozes independentes na Argentina. O governo de Cristina Kirchner controla mais de 80% das rádios e TVs, direta ou indiretamente. Somos poucos os independentes da publicidade oficial.

ZH – O senhor acha que cláusulas da lei são direcionadas especificamente contra o Clarín?

Etchevers – Deputados do governo dizem que essa lei tem nome e sobrenome. Nos últimos dois meses, o governo iniciou ações para pressionar o Poder Judiciário. Pretendeu recusar juízes e nomear juízes vinculados ao governo, processou juízes por não decidir conforme o que o governo queria. E agora essa lei de per saltum, pela qual pretende saltar instâncias para não dar direito de defesa. O governo não aceita que o contrariem.

Continua depois da publicidade

ZH – O governo espera decisão da Corte Suprema. O que fará o Clarín?

Etchevers – A Corte Suprema se reúne, e pode haver alguma decisão a respeito da ação do governo. Mas a própria lei per saltum não permite que o governo apele de uma decisão de segunda instância. O per saltum é contra sentenças de primeira instância.

ZH – O Clarín só reclama de direito adquirido?

Etchevers – Há dois artigos inconstitucionais. O resto da lei, os 164 artigos vigentes, estamos cumprindo, o Grupo Clarín foi o primeiro a cumprir. Mas há dois que são inconstitucionais. Um retroage a licenças vigentes, outorgadas pelo Estado e que têm vigor por diversos anos. Nossa licença para o Canal 13 (TV aberta) vence em 2024, e o governo pretendia fazê-la terminar nos próximos dias. Isso não ocorreu na Venezuela, no Equador e na Bolívia, onde licenças haviam vencido e não foram renovadas. No nosso caso, pretende-se cortá-las quando faltam mais de 10 anos de exploração. O outro artigo também é inconstitucional, é discriminatório. Beneficia empresas que dependem do governo, permite-se a essas empresas expandir sem limites. As empresas que dependem de fazer jornalismo se veem limitadas.

ZH – O senhor compara o governo argentino ao venezuelano?

Etchevers – O argentino usa roupagem mais sofisticada. Mas o sentido de silenciar as vozes críticas é o mesmo. E com o agravante de que nem sequer se respeitam os prazos das licenças.

A Lei da Mídia

– A Lei de Regulação de Serviços de Comunicação Audiovisual (Lei da Mídia) procura descentralizar os serviços de comunicação audiovisual.

Continua depois da publicidade

– As concessões durarão 10 anos e poderão ser prorrogadas uma vez por igual período.

– Cada grupo de comunicação pode ter 24 licenças de meios audiovisuais (o Clarín tem quase 10 vezes isso) e nunca superar 35% da fatia nacional do mercado (o Clarín atinge 41% do marcado de rádio, 38% de TV aberta e 59% da TV a cabo), o que impede a existência de redes nacionais de TV.

– O Clarín seria especialmente atingido pela proibição de ter, ao mesmo tempo, um canal de TV aberta e um canal de TV a cabo – o Clarín tem a emissora de TV a cabo Todo Noticias (responsável por grande parte da arrecadação do grupo) e a de TV aberta El Trece (de forte penetração popular).

– A programação deverá contar com, no mínimo, 70% de produção nacional e, no caso das rádios, pelo menos 30% de música nacional. A presença de grupos estrangeiros fica limitada a 30% do capital acionário de uma empresa.