Figura conhecida na imprensa do Egito, o professor Abdallah Schleifer, do Middle East Institute, com sede nos EUA, acredita que a oposição ao atual presidente é boa em discursos, mas não soube se organizar para disputar as eleições.

Continua depois da publicidade

Schleifer, um judeu americano que se converteu ao islamismo e hoje mora no Cairo, foi chefe do escritório da NBC na cidade nos anos 70, quando conheceu o subterrâneo do Islã político. Confira os trechos da entrevista a Zero Hora:

Zero Hora – De onde vem essa tradição autocrática do Egito e como isso impacta no atual momento?

Abdallah Schleifer – Pode-se dizer que sua forma moderna, draconiana, vem da revolução que começou com um golpe de Estado nos anos 50 e foi transformada em um tipo de nacionalismo socialista. Quando (Gamal Abdel) Nasser ascendeu ao poder, começou a colocar oficiais no comando de empresas nacionalizadas, e o país virou uma autocracia. Antes, o Egito teve um parlamento eleito. Tinha as suas imperfeições, mas era uma monarquia constitucional e essa tradição democrática se perdeu. Agora, não há aqui a cultura do bom perdedor na política. Por exemplo, na França, quando (François) Hollande derrotou (Nicolas) Sarkozy, este reconheceu a derrota e parabenizou o adversário.

ZH – Esse é o problema da oposição egípcia? Eles não aceitam a derrota?

Continua depois da publicidade

Schleifer – Eles nunca aceitaram o resultado de nenhuma das eleições. Foram duas eleições livres onde democratas, liberais, seculares, esquerdistas – como você quiser chamá-los – fizeram em torno de 20% dos votos para o parlamento. A Irmandade Muçulmana recebeu 48%, e os salafistas, 28%. A oposição acusou-os de trocar comida por votos, mas isso faz parte do jogo aqui. Para os liberais, política é dar discursos na Universidade do Cairo e não uma questão de organizar as massas e os partidos. Antes da queda de Mubarak, só havia dois partidos políticos relevantes: a Irmandade Muçulmana e o Partido Nacional Democrata, de Mubarak, que não era ideológico, mas fisiológico, empregando mais de 2 milhões de pessoas em funções públicas. Quando Mubarak caiu, a base do funcionamento do partido colapsou, e por isso eles fracassaram no parlamento. Portanto, o único partido realmente organizado que sobrou foi a Irmandade.

ZH – E quem é a oposição agora?

Schleifer – Agora, ela é formada por secularistas, democratas, socialistas e os antigos apoiadores de Mubarak. Mas isso é agora, face à vitória de Mursi. Existe um terceiro grupo, que são as pessoas que estão lutando por eles nas ruas, os ultras. São torcedores de futebol fanáticos, muito importantes. Fazem parte do lumpen, são desempregados, pobres e jovens, que costumavam brigar entre si e agora enfrentam a polícia. Quando começaram os protestos na Praça Tahrir, só dois grupos sabiam lutar: os ultras e a Irmandade. Liberais não sabem brigar. Então, a oposição está mentido quando diz que a Irmandade sequestrou a revolução, pois eles estavam juntos desde o início. Eu nunca fui um apoiador da Irmandade, não acredito que minha religião é uma ideologia, mas a cobertura da imprensa é parcial e contra Mursi. Nós tivemos três eleições, e a Irmandade venceu todas. Aliaram-se com os salafistas e conseguiram a maioria no congresso. A oposição diz que o parlamento não representa o Egito, mas isso não faz sentido. Há um longo histórico aqui, de maus perdedores aqui.

ZH – Mas os protestos da última semana são contra um presidente que aumentou os próprios poderes. O que parece é que existe um grande medo de outra ditadura.

Schleifer – Eu acredito que, talvez, haverá outra ditadura. Não sei quais os planos de Mursi a longo prazo, mas eu posso falar das circunstâncias de agora. O Judiciário, que, na maioria, foi escolhido por Mubarak, tem agido contra os representantes eleitos desde o primeiro dia do novo parlamento. O que é mais legítimo? Um parlamento e um presidente eleito pela população ou os juízes apontados por um ditador? Então, é compreensível o que Mursi fez. Era isso ou esperar que a Corte fosse contra ele novamente. Quando isso aconteceu, a oposição liberal decidiu defender uma Corte que fora apontada por Mubarak.

Continua depois da publicidade

ZH – Mas Mubarak governou por 30 anos com poderes de emergência.

Schleifer – Qualquer um que quer ser um ditador usa esse tipo de poder. (Benito) Mussolini, (Juan) Perón o fizeram. Se você é um ditador e vê protestos em massa, o que você faz? Manda a polícia ou seus capangas destruirem os adversários. Os manifestantes destruíram 22 sedes da Irmandade Muçulmana. Mas Mursi não fez nada. Ele é um homem muito paciente. Se é porque ele tem um bom coração ou se é por ele ser um político maquiavélico brilhante, isso só Deus sabe. Os líderes que o estão chamando de ditador ou fascista estão soltos. A primeira coisa que um ditador faria era prendê-los, mas é uma contradição que a imprensa tem ignorado. As pessoas chamam de ditadura, mas estão tendo um grau de liberdade inédito em 60 anos. Antes, ninguém podia fazer isso nem usar esse tipo de linguagem para se referir ao líder do Estado.