A menina que brincava de plantão médico com as bonecas cresceu. Aos 32 anos, a catarinense Mariana Dacorégio é médica de emergência no Hospital Civil de Brescia, uma das cidades da região da Lombardia, na Itália, que foi o epicentro da pandemia do coronavírus no país europeu. Por lá, luta para salvar vidas e vencer a Covid-19.

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Natural de Florianópolis, Mariana é filha única de um casal em que o pai é médico do Hospital Celso Ramos e a mãe enfermeira do Hospital Universitário da UFSC. A relação com o ambiente hospitalar e a saúde das outras pessoas iniciou cedo.

– Comecei a frequentar hospital muito cedo. Um ambiente onde me sentia muito segura, porque era um ambiente familiar. Cresci dentro do hospital. Chegou em um ponto em que o único ambiente em que me sentia bem era no hospital – conta.

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Enquanto ainda cursava a faculdade de Medicina na UFSC, Mariana e o namorado, hoje marido, ficaram um ano na Bélgica, onde ela fez estágio em um hospital e ele fez doutorado, em engenharia. O casal gostou da experiência e decidiu voltar a morar na Europa no futuro. Ela se formou. Fez residência no Hospital Celso Ramos, em Florianópolis, e em 2016 mudou-se com o marido para o Velho Mundo. No ano passado, a documentação para atuar na Itália foi concluída e Mariana passou a trabalhar na unidade hospitalar, que é referência no Norte do país, com mais de 2 mil leitos.

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Antes da pandemia, a rotina era tranquila para o casal, que tem um bebê de um ano e três meses. Mariana iniciava a jornada de trabalho pela manhã e saia do hospital por volta das 19h. O plantão era apenas um final de semana por mês. Assim, o casal curtia bastante tempo junto. O pequeno Luca passava o dia na escolinha. No fim da tarde, o marido buscava o garoto, até o retorno de Mariana.

Desde que o coronavírus chegou à Itália, o cenário mudou completamente. Com a escolinha do bebê fechada, por conta do isolamento social, o marido passou a fazer home office e cuida do filho. Mariana sabe a hora que entra na emergência do hospital, mas não tem hora para retornar para casa. Os plantões passaram a ocupar a agenda em todos os finais de semana.

Na entrevista a seguir, feita por telefone, Mariana fala sobre como foi o primeiro contato com a Covid-19, os desafios no enfrentamento da doença, como lida com tantas mortes, sobre o reconhecimento das pessoas e a esperança de viver em um mundo melhor, quando o vírus for superado e a pandemia ficar para trás.

Confira mais na entrevista a seguir:

Como foi o primeiro contato com o coronavírus? Em qual circunstância você atendeu o primeiro paciente com a Covid-19? Do que você se lembra?

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Lembro até do nome do paciente. A gente tem um departamento que chamamos de escala, porque é uma escala. Tem um corredor comprido, em que dos dois lados tem quartos dos pacientes. A gente tem no começo desse corredor dois quartos individuais, e depois os quartos são de dois ou três pacientes. E nesses dois primeiros leitos a gente coloca os pacientes isolados. Às vezes, um paciente que está com cirurgia e a gente quer deixar perto da família, ou um paciente com doença infectocontagiosa que a gente quer isolar.

A gente já sabia que tava rolando… No hospital, tem um prédio com 70 leitos que é só para pacientes com doença infectocontagiosa. Então, estava chegando paciente e indo direto para esses leitos. Daí, tinha um paciente que estava isolado num desses quartos individuais, sozinho. Aí, falaram: “A gente tem uma dúvida, talvez, possa ser um paciente Covid-19”. A minha chefe, naquele dia falou assim: “Vou entrar para ver essa paciente aqui e a gente entra junto e já vê a paciente do lado”. A gente tenta o máximo possível utilizar os nossos EPIs (equipamentos de proteção individual). Se um médico já vai usar aqueles EPIs, não tem muito senso outro médico entrar fazer a mesma coisa para ver outro paciente.

Então, a gente entrou, o paciente estava relativamente bem. A gente caminhou. E naquele ponto a gente ainda não tinha o resultado do exame. Era uma suspeita. Naquele dia (na semana anterior ao Carnaval), isso era de manhã, umas 15h, veio o resultado. Ela (minha chefe) veio toda preocupada: “Mariana, Mariana, o resultado daquele paciente deu positivo”. Toda preocupada. O diretor de enfermagem da unidade chamou nós duas para uma conversa, deu uma folha da medicina preventiva do hospital, uma série de procedimentos a serem seguidos, porque tínhamos sido expostas. Esse foi meu primeiro contato.

Quando você se deu conta da força do coronavírus?

Foi muito emblemático, porque até o ponto que a gente uns três pacientes (com Covid-19) na nossa unidade, a gente ligava para a infectologista e ela falava para a gente qual o leito que a gente podia levar o paciente, porque ele ia para um dos 70 leitos que o hospital tinha de isolamento. E nesse dia, ela (a infectologista) falou assim: “Cada um fica com o seu Covid”. E bateu o telefone na cara da gente (risos). Porque naquele dia, naquele momento, tinham mais 120 pacientes positivos de coronavírus no pronto-socorro. Então, ela não estava preocupada com o paciente que estava na minha unidade, que tinha um médico, uma cama, tinha tudo. Aquele paciente para ela estava resolvido. Foi muito emblemático. O recado foi: “Eu que sou infectologista não posso mais cuidar de todo mundo, vocês vão ter que cuidar”.

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Qual foi o dia mais difícil no trabalho desde o início da pandemia?

Os dias mais difíceis não são os dias mais pesados como carga de trabalho. São os dias em que a gente dá notícias ruins para os pacientes, e dá notícias ruins para as famílias. No último domingo (dia 29 de março) aconteceu uma coisa bem pesada. Eu estava trabalhando e na passagem do plantão tinham me informado que tinha uma paciente que estava muito agitada porque o marido dela estava internado em outro hospital, também com a doença (Covid-19), que os filhos tinham ligado e tinham dito que estava muito grave.

É muito forte porque essas famílias não têm o direito de se despedir.

Fui lá no quarto, não tive dúvida, pedi o nome dele, liguei para o outro hospital e comecei a procurar. Liguei em todos os departamentos e não achei. Então, liguei na direção e me confirmaram que ele estava morto há uma semana. É muito forte porque essas famílias não têm o direito de se despedir, porque esses pacientes são levados em caixão fechado, são incinerados, as famílias não fazem velório. Não ter nem a chance de se despedir, de ver uma pessoa, é uma coisa que para mim foi muito forte. Eu perguntei à ela quantos anos eles estavam casados. Ela falou: “Sou casada há 45 aos, mas ainda não foi o suficiente”.

Como você lida com tantas mortes?

O triste não é perder 11 mil pacientes, como a gente vê nos jornais, o que é mais triste é perder cada um deles. É saber da história, é saber o nome do filho, é saber do neto que nasce na semana que vem, é saber do marido que estava esperando, do aniversário de casamento no mês seguinte, cada uma dessas histórias que marca a gente. Não é o número de mortos no total. São histórias, são seres humanos. É o pai de alguém, é o irmão de alguém. A gente fala no hospital que ele é o amor de alguém.

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Mariana e a equipe que trabalha junto com ela no hospital no combate ao novo coronavírus (Foto: Arquivo Pessoal)

Há registro de médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde infectados e até, infelizmente, de alguns que perderam a vida. Algum dos seus colegas morreu vítima do coronavírus?

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No hospital onde trabalho, mais ou menos 25% de todo o staff de médicos, enfermeiros e trabalhadores em geral, estão doentes. Desse total, apenas um senhor faleceu. Um senhor que trabalhava como assistente. Tenho muitos colegas médicos doentes, mas graças a Deus, todos eles tiveram quadros leves. Na Itália, tem 70 casos de médicos (até a terça-feira, dia 31 de março) que faleceram por causa da doença.

Como você se sentiu quando soube da morte do colega no hospital?

É sempre muito triste perder alguém da equipe. Não era uma pessoa com quem eu trabalhava diretamente, não o conhecia, mas é claro que a gente fica muito chateada. No hospital a gente costuma falar que a gente tem medo de não sentir medo. Porque não tenho medo de ficar doente, não tenho medo de morrer por causa da doença. Tenho uma segurança tão grande de que preciso fazer o meu trabalho, que não tenho esse medo.

O mundo está olhando para vocês, profissionais da saúde, como heróis. Como você se sente com isso?

Não me sinto nada como uma heroína, esse é o meu trabalho. Fui treinada para isso. Tenho o prazer e a honra de trabalhar numa situação dessa. Eu me sinto privilegiada de ajudar numa situação como essa. Uma coisa que é muito linda é como a gente é tratado aqui. Em todos os momentos, em todos os lugares têm faixas enormes escrito “Vai ficar tudo bem” em volta do hospital. A gente recebe biscoito, bolo, torta, tudo escrito “Vai ficar tudo bem”, “Muito obrigado”, “Vocês são incríveis”. Todo momento que a gente liga para as famílias, que a gente fala ao telefone eles são muito atenciosos, agradecem muito. É um reconhecimento diferente do que a gente tinha antes.

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Mariana e parte da equipe do Hospital Civil de Brescia, na Itália (Foto: Arquivo Pessoal)

Você viu que em diversos lugares do mundo as pessoas têm rendido homenagem a vocês, profissionais da saúde. Como você encara isso?

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É incrível. Sempre tive um forte vínculo com os pacientes, sempre brinco com os meus pacientes que sempre tive os melhores. Os meus pacientes sempre foram pessoas muito gratas, que me deram muita satisfação de cuidá-los. Sempre fui muito grata por poder aprender com eles. Nesse momento ver que as pessoas respeitam a gente, respeitam aquilo que a gente diz para elas, quando a gente diz “Olha, não é para sair de casa”, eles ouvem a gente, eles não estão ouvindo o primeiro-ministro, o governador, eles ouvem a gente dizer. A gente vai para o Facebook e para o Instagram mostrar o rosto machucado, e dizer: “A gente está trabalhando para você ficar em casa”. E as pessoas ouvirem esse recado, é uma satisfação muito grande.

Você acha que quando a pandemia passar sairemos disso tudo mais humanos, mais solidários?

É minha a minha grande esperança. Minha grande esperança é que essa doença ensine as pessoas a pensarem no outro. A valorizarem profissionais que foram muito esquecidos. Não só os médicos, não só quem trabalha em hospital. Nessa crise toda aumentou muito a valorização do trabalho dos caminhoneiros, que entregam a nossa comida. Do pessoal que trabalha em supermercado. De quem recolhe o nosso lixo. São profissionais que sempre trabalharam nas sombras e que agora as pessoas conseguem ver também como grandes heróis, conseguem fazer os bastidores para que a gente continue em casa.

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Mariana e o filho Luca, de um ano e três meses (Foto: Arquivo Pessoal)

Vi que você e o marido têm um blog para, como vocês mesmo descrevem “família e amigos acompanharem nossas aventuras pela terra da polenta brustolada”. A última postagem foi em abril do ano passado, falando sobre o nascimento do Luca. Como você tem lidado com a maternidade, a pandemia e o isolamento social?

E falta de rede de apoio, porque somos só nós três (risos). É caos total, irrestrito. Meu marido é engenheiro. Estou aqui no quarto do meu filho, apoiada na bancada de trabalho dele (marido), que tem todos os fios, coisinhas, luzinhas e aparelhos do mundo. Então, é a sensação de estar trabalhando 24 horas por dia. Porque quando chego em casa, preciso ficar com o Luca, para o meu marido poder trabalhar. Quando não estou em casa, ele (o marido) fica 100% com o bebê. A gente se vira para fazer o que dá.

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A gente vê que tem muita gente reclamando que “está em casa, não tem mais nada para fazer, estou entendiado”, e a gente aqui no “Se vira nos 30” fabuloso, que a gente nunca passou por isso na vida. Os dias não acabam mais, a gente tem sempre muita coisa para fazer. Está sendo superestressante. Mas uma coisa que me perguntam muito é se estou fazendo quarentena do meu filho, se eu não beijo, não abaraço… Não tem como. Uma das coisas que faz a gente continuar e seguir em frente é ter a família e ter o apoio de quem a gente ama.

E depois de um dia agitado assim, como é botar a cabeça no travesseiro para dormir?

Não sei se tenho o grande privilégio ou azar de que o meu filho mama ainda, então, ainda passo a noite inteira sem pensar no que aconteceu. Dou de mamar, acalmo, faço carinho, tenho pouco tempo para processar o que aconteceu ao longo do dia. Às vezes, é uma dádiva. Porque quando a gente fica remoendo tudo aquilo que passou no dia, às vezes é um problema.

Por aqui, no Brasil e também em Santa Catarina, há muita gente que ainda minimize a Covid-19. Diante do que você vê diariamente aí na Itália, qual recado você deixa para quem pensa assim?

Estou enfrentando uma doença como a gente nunca viu, passando por coisas que eu nunca vivi, que os meus colegas e os meus professores, que trabalham ali (no hospital) há 20, 30 anos nunca viram. A gente está passando por uma guerra. A gente está perdendo uma quantidade tão grande de vidas, que a gente só quer gritar para o mundo inteiro que as pessoas nos escutem. Que elas não cometam o mesmo erro que a gente cometeu, de achar que era só uma gripe. Porque a gente também já achou que era só uma gripe. E quando chegou a gente não estava preparado.

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Então, por favor, façam o que vocês puderem para que essa mensagem seja levada adiante. Se as pessoas não podem parar de trabalhar, não tem problema. Que elas trabalhem. Mas elas podem parar de ir à praia, de fazer o churrasco, de ir na casa do vizinho para conversar, de ir no mercado comprar uma cervejinha porque deu vontade. Todas essas coisas são medidas tão pequenas, tão insignificantes para cada um, mas que no sentido global da epidemia faz uma diferença absurda.