O problema no atendimento de crianças autistas não fica restrito às unidades de ensino particulares. Apesar de ser raro o problema da falta de vagas, as escolas públicas lidam com outra dificuldade: a falta de profissionais capacitados para atendimento dos alunos. É o que relata Viviana Barbosa do Nascimento. O diagnóstico da filha ocorreu quando ela tinha um ano e meio, após perceber alguns comportamentos.

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— Comecei a perceber que quando ela ia brincar, nunca brincava com o brinquedo com a função que ele tinha. O meu marido comprou Lego para ela e ela nunca montava. As caixas de leite, nós deixávamos no cantinho e ela enfileirava uma na frente da outra. Comecei a achar estranho, porque uma criança de um ano e meio fazer um negócio desse não é normal, né? Comecei a pesquisar e tudo caía em autismo — lembra Viviana.

A rotina e os desafio das crianças autistas nas escolas de SC

Ao buscar vaga para a filha, Viviana não encontrou dificuldades na rede municipal. Esbarrou, porém, na falta de professor auxiliar. Segundo ela, o Centro Municipal de Educação Alternativa (Cemea), responsável pela avaliação das crianças, alegou que a menina não precisava de um segundo professor por conta do grau de autismo.

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— Cheguei a ir até o Cemea, onde me disseram que uma criança que não anda, não caminha, não leva a colher até a boca, que usa fraldas, só crianças assim, de casos extremos, conseguem o professor auxiliar. Mas na verdade não, têm outras crianças que não têm esse caso extremo e tem esse professor — ela afirma.

Viviana acredita que essa falta de auxílio prejudica, de alguma forma, o aprendizado da criança. Um ponto também defendido por especialistas. De acordo com a fonoaudióloga e integrante da Associação de Pais e Amigos dos Autistas de Blumenau e Microrregião (AMA), Ana Paula Mueller, no ambiente escolar a criança no espectro autista passa por duas dificuldades: comunicação e interação.

Ana Paula afirma que o papel do professor auxiliar, nesses casos, é importante para fazer a mediação – e principalmente garantir o aprendizado.

— O professor não dá conta hoje, numa sala de aula de educação infantil ou do ensino fundamental e dos anos iniciais, de dar essa orientação para a sala e as crianças que têm alguma dificuldade. Então, o professor auxiliar se faz importante por causa disso — afirma a fonoaudióloga.

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A secretaria municipal de Educação de Blumenau informou que, até fevereiro deste ano, 445 profissionais foram contratados para apoio pedagógico nas unidades de ensino. Para que os alunos autistas tenham acesso a este auxílio, eles seguem um fluxo de encaminhamentos das instituições de ensino ao Cemea, onde uma equipe agenda uma visita e avalia o estudante nos aspectos “autonomia em: comunicação, interação social, cuidados pessoais (alimentação, higiene e locomoção), conforme os critérios da legislação vigente”.

Ainda segundo a secretaria, também é oferecida a assessoria pedagógica, feita por pedagogos especialistas no Atendimento Educacional Especializado. “Neste serviço, são prestadas orientações aos professores regentes e dos componentes curriculares, com relação às estratégias pedagógicas no contexto de sala de aula, na perspectiva da educação inclusiva”, afirma a secretaria em nota.

Uma situação parecida ocorre nas escolas estaduais. De acordo com Tânia Maria Fiorini Geremias, coordenadora de Educação Especial da Diretoria de Ensino da Secretaria de Estado da Educação, não é todo estudante que tem o professor auxiliar. Ele é destinado aos alunos com necessidades especiais e que não possuem autonomia. Segundo dados da secretaria, até o ano passado 6.809 estudantes da rede estadual de ensino tinham o diagnóstico.

Mas desde 2021 a Secretaria de Estado da Educação conta com uma nova ferramenta: o Atendimento Educacional Especializado, cujo objetivo é complementar ou suplementar o processo de aprendizagem dos estudantes.

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— O estudante frequenta essas aulas e trabalha as questões específicas do autismo, para que sejam minimizadas as questões em que tem dificuldade — explica Tânia Maria.

A secretaria estadual, em parceria com Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE), iniciou em 2021 a implantação de 11 polos de Atendimento Educacional Especializado em Transtorno do Espectro Autista (TEA), que também têm como objetivo desenvolver técnicas que auxiliem no desenvolvimento dos estudantes.

— Qual o critério: são oito por turma. Primeiro inicia com os alunos dos anos iniciais. Não fechou, pega o dos anos finais e, se ainda sobrar vaga, pega do ensino médio. O critério é a idade, independente do diagnóstico. Por uma hora e duas vezes por semana, ocorre um atendimento individual e ele também vai lá, com as famílias. É um trabalho bem completo, com familiares e professores — afirma a coordenadora Tânia Maria.

Escolas precisam estar capacitadas para atender os alunos autistas, diz especialista

Capacitação dos professores é essencial

Outra questão levantada por especialistas é a importância da capacitação dos professores para atendimento das crianças autistas. Para Ana Paula Mueller, integrante da Associação de Pais e Amigos dos Autistas de Blumenau e Microrregião (AMA), muitos profissionais não estão preparados, o que prejudica o aprendizado das crianças.

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— O plano educacional individualizado, que devia ser feito para cada criança, está muito precário e parte da questão de capacitação mesmo desses professores que estão lá na sala de aula. Eles precisam ser preparados para isso — afirma Ana Paula.

A pesquisadora Fátima de Kwant diz que uma das soluções é incluir, nos currículos acadêmicos, a capacitação para atendimento de crianças com necessidades especiais.

— Sabemos que muitos professores chegam às escolas e, de repente, recebem um aluno autista e não sabem o que fazer e vão usando a sua intuição (no atendimento), o que às vezes funciona muito bem, mas é muito difícil para esse professor. A escola tem que ajudar, a direção tem que entender, porque os direitos aos autistas existem — afirma a pesquisadora.

Tânia Maria Fiorini Geremias, coordenadora de Educação Especial da Diretoria de Ensino da secretaria estadual de Educação, explica que tem trabalhado para oferecer cursos de formação continuada, a fim de capacitar aqueles que atuam com a educação especial, mas que é necessário mais investimento.

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— É dever do Estado ofertar, mas sem recurso, o Estado não tem como investir na formação de professores, sempre vai ficar aquém da questão da qualidade — diz Tânia Maria.

Em relação às escolas municipais, a União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) informou que, quando ocorre o planejamento da formação de professores, a educação especial está incluída. Além disso há orientação para que as escolas mantenham contato com os pais, promovendo diálogos com os profissionais que atendem a essas crianças.

Conheça os direitos da pessoa com autismo

“Muito mais que ensinar, a escola é um espaço de socialização”, diz mãe

Direito ao acesso à educação. É uma diretriz básica da Lei Nº 12.764 e que deve ser cumprida em todas as esferas. Afinal, assim como as crianças neurotípicas, os autistas também têm o direito a ter um ensino de qualidade e de conviver com outras pessoas.

— Esse convívio com outras crianças é muito importante para não cair naquilo que todo mundo diz que o autista vive no próprio mundo. A sociedade quer que aquela criança fique em casa. Mas o desenvolvimento não vai acontecer sozinho, sem nada, sem outros coleguinhas, sem professores que se comprometam ao desafio de ensinar de uma maneira mais criativa, às vezes de uma maneira diferente. A inclusão pede não só pela integração, de deixar a criança dentro da escola, a inclusão é chamar para participar — afirma a especialista Fátima de Kwant.

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E a escola é fundamental no desenvolvimento da criança. Foi o que aconteceu no caso de Pedro Smith, nove anos. Diagnosticado com autismo quando tinha um ano, a mãe conta que foi dentro do ambiente escolar que ele conseguiu desenvolver diversas habilidades, como ler e escrever ao mesmo tempo que as demais crianças.

— Aos cinco anos ele ingressou na rede municipal e iniciou com uma professora de apoio, que passou a dar um suporte pedagógico a ele. Foi aí que ele começou, de fato, a ter uma inclusão social, além da parte pedagógica. Porque muito mais que ensinar, a escola é um espaço de socialização entre as crianças — pontua a mãe, Laryssa Smith.

Filho de Laryssa conseguiu se desenvolver na escola junto com o professor auxiliar – (Foto: Arquivo pessoal)

Atualmente no quarto ano, Pedro segue tendo o apoio do professor em sala de aula, mas Laryssa salienta que o aprendizado segue sendo diferenciado. Por exemplo, as tarefas da escola são adaptadas para que a criança possa compreender o conteúdo. Um incremento que auxiliou ainda mais no desenvolvimento do menino.

— Ele tem dificuldade para escrever, então precisa que o material seja adaptado. Isso foi importante para que meu filho pudesse alfabetizar na idade de todos os outros colegas. A professora de apoio resume o texto, coloca as palavras principais e aí o Pedro consegue responder uma pergunta sobre aquele texto. Sem esse profissional fazendo essas adaptações, o meu filho não conseguiria acompanhar —complementa.

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Já Alice Schorn Verdade conta que a acolhida da escola foi fundamental no retorno às aulas durante a pandemia, que gerou um melhor conforto para a filha Rafaela, sete anos.

— Seria a primeira vez que ela iria para uma para uma sala de volta com os colegas. Então, conversei com as professoras e pedi para que a Rafaela fosse antes do início das aulas para conhecer o ambiente e isso foi muito positivo — pontua Alice.

Adaptação na escola foi fundamental durante a pandemia – (Foto: Arquivo pessoal)

A inclusão de alunos autistas na escola regular também é defendida pelo apresentador da TV Globo Marcos Mion, pai de Romeo, que deu nome a lei de 2020 que criou cria a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno de Espectro Autista.

— O autismo não é uma doença, é só uma forma de funcionar. Tem quem diga que os neurodiversos não deveriam ir para as escolas regulares porque eles atrapalham a convivência com as crianças neurotípicas. Meu filho me ensina, ele não atrapalha! Ensina muito e não só a mim, mas a todos que convivem com ele. Ensina coisas que nenhuma escola ensina. Ensina valores que tornam todos ao seu redor melhores. Nenhuma escola sozinha ensina isso. A inclusão não é boa apenas para o deficiente. Isso é tão importante de ser entendido! Porque para você ser um ser humano legal, evoluído, você tem que viver com a diversidade — pontua.

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“Uma escola inclusiva deve receber todas as crianças”, afirma coordenador do MP-SC

Em abril de 2022, o Ministério Público de Santa Catarina lançou a campanha “As Entrelinhas do Autismo”, uma cartilha de orientações sobre o tema. O coordenador do Centro de Apoio da Infância e Juventude do MP-SC, João Luiz Botega, é taxativo:

— Se uma escola não se considera apta para receber uma criança com deficiência, ela não é uma escola boa para ninguém. Toda escola precisa ser inclusiva. Uma escola inclusiva deve receber todas as crianças.

Ele afirma que a lei 12.764 chegou a ter a constitucionalidade discutida no Supremo Tribunal Federal (STF), que reconhece a validade do texto. Assim, as escolas precisam seguir o entendimento de que crianças no espectro autista precisam ser aceitas nas unidades dentro de todas as condições estabelecidas no regramento, sem qualquer custo extra. Mas Botega lembra de algo que as mães ouvidas por esta reportagem contam com dor:

— Muitas vezes, a recusa por vaga não vem escancarada. Ela é criada de outras formas.

A orientação é a de que, em caso de discriminação ou de negação de vagas, os pais denunciem por meio do Ministério Público, Procon ou Disque 100.

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O que diz a legislação?

A lei nº 12.764 — conhecida como Lei Berenice Piana —, de 27 de dezembro de 2012, institui a Política Nacional dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autista. O texto cita a responsabilidade do poder público quanto ao atendimento das pessoas que possuem o espectro e determina uma série de direitos, desde o diagnóstico precoce até o acesso à educação e ao mercado de trabalho.

O direito a vagas nas escolas é garantido pelo artigo 7º que diz que “o gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos”.

Além disso, em 2020, ela foi incrementada com a sanção da lei 13.977, batizada de “Lei Romeo Mion”, que cria a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno de Espectro Autista, que dá prioridade no atendimento em estabelecimentos e serviços públicos e privados, principalmente na área da educação, saúde e assistência social.

Já em âmbito estadual, os direitos das pessoas autistas são garantidos por meio da lei 17.292 de outubro de 2017, que criou a Política de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Ela obriga a inclusão de estudantes com o espectro nas classes comuns de ensino regular e a garantia de atendimento educacional especializado de forma gratuita, além de determinar a inclusão de um segundo professor de turma quando o estudante for diagnosticado “com sintomatologia exacerbada”.

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