*Por Jason Horowitz
Roma – Aumenta na Itália a sensação de que o pior já passou. As semanas de quarentena a que se submeteu o país, que viu um dos surtos mais mortais do coronavírus, podem estar começando a dar bons resultados: as autoridades anunciaram, no início de abril, que o número de novas infecções havia se estabilizado.
Continua depois da publicidade
Esse raio de esperança fez o debate se concentrar no desafio complicado de quando e como se reabrir sem gerar outra onda cataclísmica de contágio. Para isso, as autoridades de saúde e alguns políticos estão se concentrando em uma ideia antes relegada ao âmbito dos romances distópicos e dos filmes de ficção científica.
Ter os anticorpos corretos ao vírus no sangue – ou seja, um indicador de potencial de imunidade – pode em breve determinar quem vai voltar ao trabalho e quem vai continuar em casa, quem permanece em quarentena e quem está livre.
Sob vários aspectos, essa discussão está à frente da ciência. De fato, os pesquisadores, apesar de esperançosos, não têm certeza se os anticorpos indicam imunidade – o que não impediu os políticos de se agarrarem à ideia, principalmente pela forte pressão a que estão submetidos para abrirem a economia e assim evitarem uma depressão econômica generalizada.
Continua depois da publicidade
O presidente conservador da região do Veneto, no nordeste do país, propôs uma "licença" especial para aqueles que tiverem anticorpos que mostrem que tiveram o Covid-19 e se curaram. O ex-primeiro-ministro, Matteo Renzi, que é liberal, já sugeriu um "Passe Covid" para os não infectados. O premiê atual, Giuseppe Conte, disse que, embora a quarentena continue vigente, o governo já começou a trabalhar com os cientistas para determinar como liberar as pessoas recuperadas para o trabalho.
Remetendo a "Admirável Mundo Novo", a argumentação de retomada da rotina chegou com tudo – e, da mesma forma que o número esmagador de mortes, será abordada por países como a Espanha, o Reino Unido e os EUA, onde o contágio ainda é ascendente.

A Itália foi o primeiro país europeu a anunciar uma quarentena em nível nacional, que começou em nove de março – e, quando a proporção de novas infecções começou a desacelerar, tanto as autoridades como os profissionais da saúde começaram a falar com um otimismo contido.
"Estamos começando a ver a luz no fim do túnel. O número de chamadas diminuiu", diz Fabio Arrighini, supervisor de um serviço de ambulâncias em Brescia, na Lombardia, que tem uma das taxas mais altas de mortalidade do país.
Continua depois da publicidade
Mas o debate sobre a mão de obra com base nos anticorpos colocou a Itália novamente na vanguarda infeliz das democracias ocidentais que combatem o vírus com escolhas éticas desconfortáveis e resultado inevitável. Tais questões já foram, aliás, levantadas pelas decisões terríveis tomadas pelos médicos de tratar os mais jovens, que têm mais chance de vida, antes de tratar os idosos e doentes.
Entretanto, mais cedo ou mais tarde praticamente todos os governos terão de atingir um equilíbrio entre a garantia da segurança pública e a "volta ao funcionamento" de seus países. E também podem se ver tendo de pesar o que é melhor para a sociedade em contraponto aos direitos individuais, usando o critério biológico de formas que certamente seriam rejeitadas não fosse pela emergência atual.

"Dá a impressão de dividir a humanidade em dois, os fortes e os fracos; mas, na verdade, o caso é esse mesmo", comenta Michela Marzano, professora de Filosofia Moral da Universidade Descartes de Paris.
Ela alega que, do ponto de vista ético, a questão do uso de anticorpos como base para a movimentação livre reconcilia uma visão utilitarista do que é melhor para a sociedade com o respeito pela humanidade individual, protegendo "os mais frágeis, e não os marginalizando". "Não é discriminação, é proteção."
Continua depois da publicidade
Cientistas na Itália, bem como seus colegas na Alemanha, nos EUA, na China e em outras paragens, já estudam a possibilidade de os anticorpos serem uma fonte em potencial de proteção ou imunidade ao vírus.
A Itália, devido à sua exposição inicial e abrangente, tem a oportunidade de entender como o vírus age e as propriedades biológicas que protegem contra ele.
Veneto pretende dar início à coleta de cem mil amostras de sangue de pessoas da área – começando por milhares de profissionais da saúde e funcionários públicos – para estudar em laboratórios os anticorpos das pessoas que têm o vírus e as que se curaram dele.
Em nenhum outro lugar do país a busca por uma estratégia de anticorpos é mais intensa que na região. Com sua abundância de recursos, consultores de renome e presença da biotecnologia, ela pode estar em uma posição única para influenciar o diálogo mundial e oferecer um conhecimento específico ao resto do mundo.
Continua depois da publicidade

Vizinha à Lombardia, que também foi gravemente atingida pela pandemia, foi em uma de suas cidadezinhas, Vo', que ocorreu a primeira morte na Itália devido ao vírus, que também foi uma das primeiras a se submeter à quarentena.
Vo' tem um fundo genético relativamente homogêneo, o que pode facilitar a pesquisa, e foi submetida a testes extensivos. Depois do surto, as autoridades locais tomaram uma medida extraordinária: submeter a população de três mil habitantes inteira ao exame, incluindo os assintomáticos.
Isso ajudou a eliminar a possibilidade de um surto, e agora os governantes já planejam realizar um teste de anticorpos e sequenciamento de genoma na população inteira para detectar padrões de suscetibilidade ao vírus.
Os resultados devem sair daqui a três ou quatro meses, e talvez ajudem a esclarecer por que algumas pessoas continuaram assintomáticas enquanto outras ficaram doentes, se as que não foram infectadas já tinham anticorpos e se as crianças têm algo que as ajudou a evitar a doença.
Continua depois da publicidade

"No momento, a Itália tem, obviamente, um dos maiores números de pessoas infectadas que se recuperaram da infecção, e isso representa um conjunto único e valioso de informações e dados", afirma Andrea Crisanti, principal cientista consultor do vírus no Veneto e professor de Microbiologia da Universidade de Pádua.
Ele enfatiza a necessidade de uma estratégia cuidadosamente estabelecida para "destravar" a Itália que use o rastreamento de contato, equipamentos de proteção e uma campanha agressiva de testes de anticorpos pós-vírus.
"O planejamento futuro é um dos detalhes mais importantes. Dar início à quarentena é fácil; só que, sem uma estratégia adequada e cuidadosa, são grandes as chances de a epidemia retornar", conclui.
The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
Continua depois da publicidade