*Esta reportagem se propõe ser inclusiva, com descrição de legendas e vídeo audiodescritivo

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A reação a um antibiótico empurrou Josiane Cristina Becker para a escuridão. Uma conversa na rede social a encaminhou ao amor. Tinha três anos quando o uso do medicamento receitado em uma farmácia causou uma infecção brutal, queimando-lhe a retina. Estava com 31 anos quando reencontrou o colega de infância Marcos Antônio Schllosser, dos tempos das primeiras atividades para crianças cegas na cidade de Santo Amaro da Imperatriz. A paixão aconteceu na velocidade da luz.

Foram dois anos de namoro. Há um ano entraram no cartório para registrar a união estável. A fase da lua de mel continua. Se faltam olhares a se cruzar, sobram toques delicados, diálogos carinhosos, gentilezas na hora de saber qual bengala é de quem. Nenhum constrangimento com declarações como ¿amor da minha vida¿, ¿se ele for embora, abre-se o meu chão¿, ¿sem ela, a vida ficaria sem graça¿.

Para eles, a paixão entre pessoas cegas é igual a de todo mundo. Capaz de provocar calor no frio, frio no verão; prazer e dor. Mas com uma diferença que nem todos enxergam: a beleza estética não conta.

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– Como não enxergamos, nos baseamos na voz, na conversa, no modo como a mulher se coloca – conta ele, revisor de material em braile e também funcionário da secretaria de Saúde de Florianópolis.

Esse interesse entre cegos costuma despertar curiosidade nas pessoas que desfrutam da condição visual. Há quem pense que eles se buscam mais pelas dificuldades e semelhanças do que pelo desejo.

– Sempre respondo que, exceto o impacto visual, acontece como a um homem considerado normal – responde Shllosser, antes de enumerar o que definitivamente o deixa de quatro na mulher:

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– O toque na pele, o perfume, o cheiro de cabelo lavado.

Josiane estuda Pedagogia na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Trabalha também na Fundação Catarinense para Educação Especial e usa a expressão química para falar de paixão. Para ela, a impossibilidade do visual leva a exploração de sensações que de tão boas encaminham a um sentimento mais profundo, o amor.

– Quando isso ocorre, fundem-se sensações e sentimentos. Uma mistura que dá gosto. Seja cegamente doce demais. Seja cegamente amarga demais.

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A alquimia que faz as pessoas cegas se apaixonarem

MELHOR É SER VISTO COM A ALMA

Namorando ou não, outros jovens cegos falam de suas experiências.

Sou 100% toque – confidencia o estudante do ensino médio Renan Dal Pont, 19 anos, cego total.

O que também incendeia o corpo dele é o cheiro da pessoa:

– Como não enxergo nada, o que me deixa sem saber se estou diante de uma mulher morena, alta, de cabelos curtos ou longos, magra ou gorda, eu me deixo levar por aquilo que funciona como uma espécie de bálsamo.

Se toque e cheiro são bons, diz Renan, é paixão na certa. Tanto faz a pessoa ter cegueira total ou algum resíduo de visão. Mas ele sabe: o mundo não é visto pelas lentes do amor. Muitas vezes, não é fácil conquistar uma pessoa que vê com os olhos. Melhor deixar-se contagiar por uma que vê com a alma.

O coração de Leonardo Apolinário Inácio, 23 anos, outro com cegueira total, também aponta as flechas para o toque.

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– Gosto muito de sentir a mão da outra pessoa. Isso ocorre, por exemplo, quando alguém me ajuda a atravessar a rua – explica o estudante de Direito da Unisul.

Para Leonardo, esse contato pode ser mágico. A temperatura, a textura da pele, o tamanho dos dedos ajuda. Quando dá liga, é como se todas as células, as terminações nervosas e os vasos sanguíneos descarregassem uma sensação de prazer indecifrável:

– Eu acho que o amor é mesmo cego. No meu caso e de tantas outras pessoas, enxergar o outro não é importante para provocar encantamento.

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