Na América Latina hoje, há um país em que o resultado das eleições legislativas é alvo de boicote do governo, outro em que a presidente se recusou a passar a faixa ao sucessor e um terceiro em que um processo de impeachment ameaça a estabilidade. Enquanto Venezuela, Argentina e Brasil derrapam, a Colômbia aparece como exemplo de evolução institucional no continente – e em longo e duro processo de pacificação.

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Farc e Bogotá anunciam acordo inédito a favor das vítimas na Colômbia

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As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), maior e mais antigo grupo guerrilheiro do país, chegou a um pacto histórico com o governo. O documento aborda o sensível ponto das vítimas do conflito armado, fundamental para a conclusão do processo de paz. “Em cumprimento de nosso compromisso de colocar as vítimas no centro do acordo, o governo nacional e as Farc acertaram a criação de um sistema integral da verdade, justiça, indenização e não repetição da violência”, diz nota conjunta dos negociadores governistas e guerrilheiros, divulgada na última terça-feira.

– Esse acordo é a antessala da paz definitiva. A Colômbia passa por um momento importantíssimo da sua história. Muitas coisas vão mudar – diz o sociólogo colombiano Guillermo Molina.

– É o fato político mais importante da América Latina nas últimas décadas – define o ex-presidente uruguaio José Mujica, ele mesmo ex-guerrilheiro que se tornou um dos presidentes mais festejados do seu país.

Esse, aliás, é um dos pontos. Os ex-guerrilheiros que não tiverem sobre seus ombros o peso de crimes “inanistiáveis” (sim, essa expressão tem sido usada frequentemente na Colômbia) poderão ingressar na vida política institucional, como o fizeram o ETA, na Espanha e no Ira na Irlanda.

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O acordo, resultante do ano e meio de discussões específicas sobre esse tema, define ainda o tratamento que receberão os responsáveis por delitos contra a humanidade sob um sistema jurídico especial, que será criado como parte do processo de paz e que inclui penas alternativas de reclusão. Também prevê anistia aos guerrilheiros não envolvidos em delitos atrozes, como sequestro, violência sexual, execuções fora de combate, e só estejam acusados de levantar-se em armas contra o Estado. Era talvez o desafio mais difícil.

Conflito se iniciou há meio século

A pacificação ocorre paralelamente a outras notícias alvissareiras que vêm da Colômbia. O país cresceu 2,5% em 2015 e é dos poucos na América do Sul com boas perspectivas de desempenho macroeconômico para 2016, com previsão de crescimento entre 3,5% e 4% e desemprego e inflação estáveis. A expectativa é de que, caso o acordo de paz seja efetivado, o PIB poderá crescer entre 6,5% e 7% a partir de 2017.

– Não é coincidência. As instituições passam por um momento de maturidade – analisa Molina.

O conflito se iniciou há 51 anos, em 1964, e já deixou 220 mil mortos. Superado esse ponto sensível em relação às vítimas e seus parentes, ficam faltando apenas o mecanismo para o desarmamento dos guerrilheiros e a forma como será referendado o pacto de paz. São temas mais formais. A previsão para ser firmado na íntegra é 23 de março de 2016. Com a conquista de terça-feira passada, o anúncio pode ser antecipado.

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Timochenko, o líder guerrilheiro que levou as Farc à paz

O presidente colombiano, Juan Manuel Santos, manifestou sua euforia pelo Twitter. “Em Havana, chegamos a um acordo com as Farc no ponto das vítimas. Nunca antes estivemos tão perto de um acordo definitivo!”, escreveu. As Nações Unidas, de olho nas negociações colombianas como modelo internacional, emitiram comunicado em que definem as boas novas vindas de Havana como “o começo do último capítulo para o fim definitivo do conflito”.

O pacto sobre vítimas era considerado pelo governo, pelas Farc e pelos congressistas, nos bastidores dos encontros e no parlamento, a parte mais complicada da negociação, motivo pelo qual sua assinatura é vista como a antessala da paz. Haviam sido fechados acordos sobre fórmulas para atender o problema agrário, o cultivo e o tráfico de drogas ilícitas e a participação das Farc na política institucional após baixarem as armas.

OS PONTOS DA PACTO

-Tribunal com jurisdição especial centralizará processos. Quem admitir a culpa será punido com entre cinco e oito anos de prisão para crimes graves. Quem não reconhecer pega até 20 anos em reclusão normal.

-O modelo-base dos julgamentos será o da justiça restaurativa, prevendo restrição de liberdade e serviços públicos, mas não necessariamente cadeia. Poderá haver acordo entre vítima e agressor.

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-Haverá anistia às Farc e a agentes do Estado, mas não para crimes de guerra, genocídio, tortura, violência sexual, execuções extrajudiciais e desaparecimento forçado. Estão suspensos processos contra a cúpula da guerrilha.

-As partes entrarão em acordo para desativar minas terrestres. Será transferida às Farc a qualidade de movimento político. Dois meses após o acordo de paz, as Farc entregarão as armas.

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ENTREVISTA \ Iván Cepeda, filósofo

“Uma porta foi aberta para a paz”

Tradicional defensor dos direitos humanos na Colômbia e talvez o legislador oposicionista mais ativo no processo de paz, o senador Iván Cepeda, filósofo de profissão e 53 anos de idade, lidera o Polo Democrático Alternativo. Não se descarta que ex-guerrilheiros ingressem no seu partido a partir de março, quando poderão participar da vida política institucional. Filho de ativistas, teve o pai assassinado por paramilitares de direita. Nesta entrevista ZH, ele festeja o pacto em relação às vítimas e projeta um acordo de paz ainda antes da data prevista.

Quais são as suas expectativas a partir do acordo de terça-feira?

Espero que o acordo final de paz chegue muito rápido. Demos passos transcendentais em Havana. Foram apresentados publicamente os acordos para as vítimas. São acordos de 73 páginas, com instrumentos valiosos para estabelecermos a verdade, a justiça, a reparação e a não repetição. É criada uma comissão da verdade com amplos poderes. Uma unidade vai buscar pessoas desaparecidas. Um tribunal terá a jurisdição especial para a paz e vai garantir que os delitos não anistiáveis sejam julgados e sancionados. O programa de reparações, de caráter integral, é muito importante. Enfim, temos instrumentos e instituições para chegarmos à paz e à reconciliação na Colômbia. É um sistema que resulta de anos de lutas pelas vítimas. A paz na Colômbia não virá com impunidade e vai se centrar nas vítimas.

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O acordo da semana passada é o mais importante de todos para garantir o futuro do processo?

Creio que todos os acordos formam uma unidade. Não se pode ver os acordos separadamente. São todos acordos muito importantes. O problema agrário na Colômbia é muito grave, com grande concentração de terras, que foi motivo do conflito armado. E há os acordos sobre temas políticos. Também os do narcotráfico. Todos são fundamentais, que não se podem ver separados.

Mas o acordo de hoje era muito difícil de conseguir, não?

Sim, tinha um grau de dificuldade muito grande. Supõe que se assumam responsabilidades de décadas de violência na Colômbia. Assumir essa responsabilidade é algo histórico, implica a muitas pessoas.

Dos dois lados?

Sim, o acordo foi feito para que não haja impunidade em geral. É inadmissível que haja justiça para a guerrilha e que o Estado e os particulares fiquem com a impunidade.

O caminho da paz está mais fácil agora?

Diria que está bem mais próximo. Há, ainda, dois pontos que são muito difíceis. Mas, sem dúvida, o passo que foi dado agora nos aproxima muito da paz e traça o caminho para o acordo final de forma sólida, firme.

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O senhor acha que o acordo pode ser conseguido ainda antes de 23 de março?

Não quero fazer qualquer previsão. O que posso dizer, sim, é que o governo e as Farc, agora, estão pensando mais em como acelerar as negociações. A discussão não é mais se vão terminar em 23 de março ou antes. A preocupação é fazer com que as negociações sejam cada vez mais rápidas e produtivas. Há a disposição de trabalhar conjuntamente e muito rapidamente. Se vão conseguir antes de 23 de março, depende também de outras dificuldades que devem ser resolvidas.

Como o senhor imagina o futuro da Colômbia?

O que acredito que haverá na Colômbia é uma revolução democrática. Ocorre um acordo histórico, para a Colômbia e para o mundo. Com os acordos celebrados nesta semana, fica claro que as mudanças serão muito grandes no país.

O senhor imagina os atuais guerrilheiros atuando como deputados ou senadores?

Esse deve ser o resultado natural das negociações e da aplicação dos acordos. Há muitas coisas pela frente. É fundamental terminarmos com o paramilitarismo. A Colômbia pode ter situações como as vividas pelo ETA na Espanha e o Ira na Irlanda?

Cada situação política é diferente uma da outra, mas creio que o processo de paz ganha cada dia mais força.Quais as dificuldades mais previsíveis, agora?

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Já citei os paramilitares. É fundamental terminar com eles, que isso não exista mais. Há também os setores que se opõem ao processo, mas que estão cada vez mais debilitados. Também é importante começar um processo de paz com o ELN (Exército de Libertação Nacional, a segunda guerrilha mais importante do país).

É tranquilo que o acordo de paz consiga o apoio de 13% do eleitorado?

As pesquisas que são feitas hoje mostram que há um percentual alto de apoios ao acordo. Confio que assim será.

Como será a vida prática, o cotidiano dos colombianos?

Com a paz, teremos uma grande possibilidade de desenvolvimento. Seremos uma nação diferente, mais democrática. E isso muda tudo, em diversos sentidos. Uma porta foi aberta para a paz e para um futuro melhor. Com justiça e reparação às vítimas, abriu-se a porta da paz. O acordo é muito ambicioso. Teremos de colocá-lo em prática na realidade, e esse será um desafio que temos de saber enfrentar.