Aos 45 anos, a paulistana Patrícia Campos Mello ganhou notoriedade. A experiente jornalista, que tem no currículo coberturas internacionais de conflitos e guerras, entrou neste ano para um seleto grupo de profissionais brasileiros, ao conquistar o Maria Moors Cabot, um dos principais prêmios de jornalismo, concedido pela Universidade de Columbia, nos EUA, a jornalistas estrangeiros.

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– Nós todos, jornalistas, a gente continua fazendo o nosso trabalho, investigando, perguntando as perguntas que não são as perguntas que os donos do poder querem ouvir, que é questionamento. Então, quando vem um prêmio desses é um reconhecimento que os jornalistas no Brasil – diz ela ao comentar sobre a conquista.

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A honraria se deve ao trabalho liderado por ela, junto de outros colegas da Folha de S. Paulo, para mostrar o uso irregular do disparo de mensagens em massa, via WhatsApp, na campanha eleitoral de 2018. As reportagens deram origem a uma série de desdobramentos a Justiça e até mesmo alterações na legislação eleitoral. E não apenas isso.

Os materiais jornalísticos desencadearam uma série de ataques contra Patrícia. Ela chegou a contar com o serviço de um guarda-costas, para evitar que as ameaças virtuais se transformassem em algo real. Detalhes dessa história foram documentados no livro “A máquina do ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital”, lançado em julho deste ano pela Companhia das Letras.

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Por telefone, Patricia falou sobre o livro, os ataques que foi submetida, as campanhas de desinformação e fake news que permeiam o mundo digital, os ataques à liberdade de imprensa, a importância do jornalismo profissional e a conquista do prêmio.

Confira na entrevista a seguir:

Na introdução do livro, você relata um episódio em que o seu filho lhe chama para ver um vídeo em que você era atacada na internet. De lá para cá, essa situação, infelizmente, passou a se repetir e com uma intensidade maior. Como isso tem afetado vocês desde então?

A primeira onda de ataques foi em 2018, no meio da campanha eleitoral, que era um período muito sensível às matérias. E aí teve esse evento, uns meses depois, o meu filho achou esse vídeo. E depois isso meio que se tornou o padrão. Toda vez que a gente publicava matérias que fossem investigativas ou tivesse a ver com isso (o uso irregular do disparo de mensagens em massa, via WhatsApp), tinha algum tipo de campanha. Então, em dezembro (de 2018) eu publiquei junto com o Artur Rodrigues umas outras matérias, aí começaram a rolar umas fake news em que era uma foto minha do lado de uma foto do (Jair) Bolsonaro dizendo que eu tinha sido condenada pelo Supremo. Até chegar ao pico, que foi fevereiro deste ano. Como o próprio Bolsonaro e o Eduardo Bolsonaro fizeram vídeo sobre isso, então ficou avassalador.

Vejo que não fui a única. É só a gente pensar… Não precisa nem ir muito longe, na semana passada ele (o presidente Jair Bolsonaro) disse que ia encher a boca do cara de porrada, do repórter de O Globo. Então, assim, acho que acontece mais com mulher, aconteceu muito com a Vera Magalhães, com a Miriam Leitão, várias outras. Mas com homem também. É uma coisa que, infelizmente, faz parte desse governo. Desse tipo de governo. Que é um governo populista e precisa hostilizar a mídia, colocar a mídia como inimigo. Esse tipo de ataque faz parte da estratégia. Então, ele vai se repetir toda vez que o governo sai de um factoide, ou o governo quiser descredibilizar algum tipo de matéria ou informação, eles vão continuar atacando.

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Você fez coberturas de conflitos armados, mas precisou de guarda-costas para viver em São Paulo. Como foi isso para você e sua família nesse período?

Totalmente surreal porque quando eu fazia cobertura de conflito, a gente está numa posição muito privilegiada. A gente sai da sua casa, você tem um teto, uma cama quentinha, você vai num lugar onde tem uma guerra, um conflito, uma situação muito delicada, mas você lá não é o alvo. Você é uma pessoa que escolheu voluntariamente estar lá para fazer uma reportagem, fazer um recorte da situação e voltar. Enquanto que as pessoas que estão lá que são os verdadeiros alvos. Elas estão lá e podem ir comprar pão de manhã e pisar em uma bomba. Por mais que seja uma situação difícil, a gente não é alvo. Enquanto que aqui no Brasil a gente, jornalista, se tornou alvo. Porque é um ataque frontal, personalizado, contra jornalistas. Cada dia um, um veículo.

Essa história de a gente ter um guarda-costas andando comigo era basicamente porque ligavam no meu celular, distribuíam a minha agenda, as coisas que eu ia fazer em grupos, incitando as pessoas a irem aos lugares. A princípio, tendo a acreditar que maluco de internet é maluco de internet. Mas a gente nunca sabe, né? Ainda mais quando essas coisas migram. Essas coisas estão migrando cada vez mais do mundo on-line para o mundo real. A gente viu o Dida Sampaio, fotojornalista, que foi agredido no dia 3 de maio, em uma manifestação. A gente viu o pessoal na frente da casa do Felipe Neto.

O mais surreal é isso. A gente vive em um país que é uma democracia, que em tese não tem uma guerra, a não ser nas periferias em que existe uma guerra, mas a gente, como jornalista, se torna um alvo. É uma situação totalmente bizarra.

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Você escreve no livro que com o avanço da tecnologia políticos de diversos países passaram a recorrer a exércitos de robôs para construir narrativas que os favoreçam. Você usa a frase “Fatos são moldáveis”. Isso vai além daquela analogia do copo com água pela metade, onde tem quem vê o copo meio cheio e quem veja ele meio vazio. Qual o perigo disso?

O perigo é que as pessoas vivem em realidades paralelas. Por exemplo, se você pensar em relação à Covid-19, o governo federal – estou falando isso em relação ao Brasil, mas tem em vários outros países – começou, desde o fim de abril, não publicavam nas redes sociais do governo, o número de pessoas mortas pela Covid, só pessoas curadas e infectadas. Em todas as redes sociais do governo. Depois em junho, tentaram mudar a forma da estatística, que ia omitir. Mas o fato é que se você é uma pessoa que só se informa nas redes sociais do governo, em blogs bolsonaristas ou influenciadores, você tem uma visão absolutamente distorcida da realidade. Você acha que está tudo ótimo no Brasil, não que tem 121 mil mortes (até a última segunda-feira, dia 31 de agosto).

Então assim você consegue montar essas realidades paralelas e isso tudo tem estratégia. Você começa a bombardear de vários lugares, a gente chama de “fire hose” – mangueira de incêndio – porque começa a vir essa mensagem que você quer emplacar de vários lados: vem das redes de TV amigas, Facebook, WhatsApp, rede social do presidente… As pessoas começam a acreditar, você vive em uma bolha informacional. Você moda os fatos literalmente.

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Tem uma frase que é atribuída ao ex-senador americano Daniel Moyniham: “Você tem direito às suas próprias opiniões e não aos seus próprios fatos”. Hoje em dia, as pessoas acham que têm direito aos próprios fatos. Porque se elas viverem dependendo da bolha informacional em que elas vivem, terão uma visão absolutamente distorcida da realidade.

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Vivemos um momento em que a informação é primordial, na prevenção e na luta para salvar vidas no combate à Covid-19. Ao mesmo tempo, há quem atue para desinformar e disseminar notícias falsas. É o momento de o jornalismo profissional mostrar a importância para a vida das pessoas?

É o momento essencial para o jornalismo profissional. Têm pesquisas que mostram que as pessoas estão revalorizando o papel do jornalismo. Ou seja, quando se trata de um momento de vida, ela quer algum tipo de selo, de garantia que a informação foi checada, que o outro lado foi procurado. Ao invés de ir direto e confiar 100% na tia do zap, com origem incerta, que você recebe pelas nas redes sociais. Em tese, acho que isso é muito importante. A gente vê todo tipo de reportagem que foi feita durante a pandemia, tentando descobrir os números reais de casos… A maioria dos veículos de imprensa se juntou aos governos estaduais para conseguir os números, quando o governo federal fez menção de começar a distorcer estatística.

Não é o blogueiro que fica em casa sentado escrevendo, é o repórter que vai ao hospital para mostrar como está, que vai à periferia mostrar se as pessoas estão conseguindo receber o auxílio emergencial ou não. Isso mostrou que tem uma grande diferença entre blog, influenciador, rede social e jornalismo profissional. Não estou dizendo é perfeito, mas pelo menos quando erra, vai lá corrigir, tenta ouvir todos os lados, tem essa tentativa de ser equilibrado. No momento de pandemia é muito importante, porque a informação errada pode significar a morte. A gente viu que teve um boato no Irã de algum “remédio milagroso” para a Covid-19 que as pessoas começaram a tomar e morreram.

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Isso mostra pra gente quão desigual é essa luta, porque enquanto o jornalismo profissional custa dinheiro, você tem que pagar jornalista, infraestrutura, viagem etc e você tem que remunerar isso, tendo paywall ou assinatura… Fake news, não. É de graça e se espalha muito rápido. É uma luta muito desigual e que a gente está lutando.

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Com as diversas restrições sociais impostas pela pandemia, as campanhas destas eleições deste ano devem reforçar ainda mais a presença dos candidatos no mundo digital. Você acredita que o eleitor está preparado para auxiliar a Justiça Eleitoral a fiscalizar e denunciar possíveis abusos e irregularidades?

A eleição de 2018 foi emblemática porque a sociedade acordou para o uso desse tipo de instrumento para tentar manipular o debate público. Na época, por exemplo, o disparo em massa de WhatsApp não era proibido. Ele só era ilegal se fosse feito com caixa dois, ou se fosse campanha de notícia falsa. Agora, hoje em dia, é proibido pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Desde novembro do ano passado, isso já mudou. Neste sentido, este lado do disparo em massa, as pessoas estão mais alertas para isso e talvez tenha um pouco menos. Embora ainda esteja sendo feito.

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Mas sempre tem uma coisa nova, né. Essa coisa da tecnologia, você pode até tampar um buraco que eles vão achar outro tipo. Dessa vez vai ser muito mensagem pelo Instagram, ou vão começar a criar aplicativo para os apoiadores de determinado candidato, que é uma coisa que já aconteceu nas eleições de 2020 dos Estados Unidos e na Índia desde 2016. Não sei se a gente talvez esteja mais preparado para não ser tão crédulo com o que bem pelo WhatsApp e denunciar quando começam a mandar um monte de coisa e começam a botar a gente em grupo. É difícil a gente acompanhar as inovações tecnológicas, vão vir coisas diferentes.

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E a Justiça Eleitoral, está mais preparada para fiscalizar?

É um pouco enxugar gelo. Acho que está mais preparada do que em 2018, porque na época apesar de ter se falado e feito reuniões sobre fake news, estava muito despreparada. Dessa vez existe uma vontade de fiscalizar, de ficar em cima, ouviram a sociedade civil, mas é um trabalho muito grande. Primeiro, porque fiscalizar o que tem dentro de grupo de WhatsApp fechado, criptografado, não tem como você fazer isso. Depende mesmo de denúncias, de ter pessoas que estão conscientizadas e que denunciam. Existe uma vontade do TSE de não repetir os erros de 2018, que já é uma coisa muito bem-vinda.

Nesta semana, temos o início de uma fase importante para as eleições de 2020, com as convenções partidárias que definirão os candidatos que vão disputar a prefeitura e cadeiras nas câmaras de vereadores dos 5.570 municípios brasileiros. A partir do que você reportou e até mesmo vivenciou nas eleições de 2018, o que podemos esperar nas disputas deste ano?

Tem uma coisa que a gente tem que internalizar: nunca mais a gente vai ter campanha política sem usar os dados das pessoas para tornar as campanhas mais eficientes. É só a gente pensar. Quando você faz uma campanha política ou uma propaganda normal, você tem que apelar para o mínimo denominador comum. Você tem que fazer uma imagem que vai agradar um público amplo. Só que você fazendo propaganda eleitoral pela internet, você pode hipersegmentar as suas mensagens. Por exemplo, você pode divulgar uma mensagem para, sei lá, grupos de fãs de clube de tiro, outra mensagem para tal, você pode, usando o Facebook, determinar exatamente a audiência e você faz umas mensagens muito mais eficientes.

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Então, uma das coisas que a gente tem que se resignar é que essa coisa de usarem os nossos dados para nos mandarem mensagens hipersegmentadas é um negócio que veio para ficar. Isso não vai embora. Talvez, algumas das práticas que foram muito abusivas, do tipo do disparo em massa, apareçam um pouco menos dessa vez, mas eles vão achar outros tipos de instrumentos para usar os nossos dados para tornar a propaganda política mais eficiente.

Isso é uma realidade e a gente tem que ficar em cima, investigando. TSE ficar em cima, jornalista ficar em cima para ver o que surge de irregularidade nova.

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Entre os desdobramentos das reportagens conduzidas por você e outros colegas da Folha de S.Paulo estão processos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que podem levar à cassação da chapa Bolsonaro-Mourão. Como você tem acompanhado esses desdobramentos?

Têm quatro ações no TSE que são relacionadas à primeira matéria, do dia 18 de outubro (de 2018), que os empresários estavam comprando pacotes de disparo em massa contra o então candidato Fernando Haddad (PT), e as outras ações são referentes à matéria do 3 de dezembro (de 2018), que mostravam como era o mecanismo, como usa o chip, etc. Essas ações correram devagar muito tempo, mas a partir do ano passado, foi uma conjunção de fatores, as coisas andaram um pouco mais e agora reabriram a produção de provas, estão voltando nessas ações. Então assim, eu acompanho, fiquei bastante satisfeita de você ter um bom período de investigar esse tipo de coisa. E saber que agora tem a CPMI, os dois inquéritos do Supremo, essas ações no TSE e acho que existe uma vontade de investigar, mas a gente sabe que a profundidade de investigação depende de contexto político.

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Você foi ganhou neste ano um dos principais prêmios de jornalismo, o Maria Moors Cabot de 2020. Ele é concedido pela Universidade de Columbia, nos EUA, a jornalistas estrangeiros. Qual é o significado dessa conquista?

Eu representei os jornalistas brasileiros, que em conjunto, estão enfrentando uma condição de hostilidade. Nós todos, jornalistas, a gente continua fazendo o nosso trabalho, investigando, perguntando as perguntas que não são as perguntas que os donos do poder querem ouvir, que é questionamento. Então, quando vem um prêmio desses é um reconhecimento que os jornalistas no Brasil, talvez em especial as mulheres, porque a gente sofre um tipo de ataque muito característico, é um incentivo para a gente continuar a fazer o nosso trabalho. Apesar de todos os ataques, as tentativas de intimidação são várias, vejo como um baita incentivo para todos os jornalistas brasileiros, principalmente mulheres jornalistas, pra gente continuar investigando apesar de todas essas tentativas de intimidação.

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Um dos princípios da Declaração de Chapultepec, de 1994, diz que “Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa”. Porém, o jornalismo profissional tem sido constantemente atacado pela máquina do ódio. Nos últimos dias de agosto, perfis de veículos de imprensa no Facebook tiveram imagens pornográficas publicadas nas fanpages, por exemplo. Como vamos superar essa fase?

(Risos). É a pergunta de 1 milhão de dólares. Acho que essa máquina do ódio é parte integrante desse tipo de governo populista digital. Essas campanhas de desinformação estão dentro da estratégia do governante que não quer imprensa agindo como filtro ou vigilante, checando as coisas. Acho que essa temporada de ódio veio para ficar, a gente tem que agir com as armas que a gente tem, que é: boa informação. Informação checada. E no caso de ser ofensas pessoais, tem que processar, ir na Justiça. Não podem ficar impunes. É uma realidade que não vejo fim tão logo nem no Brasil, nem nos Estados Unidos. As sociedades estão num grau de polarização muito grande e quando há muita polarização vai ter esse tipo de coisa.

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Você é filha de um conceituado jornalista, Hélio Campos Mello. O seu filho está acompanhando o seu trabalho e os desdobramentos dele. Acredita que isso pode influenciá-lo? Você gostaria de vê-lo exercendo a mesma profissão no futuro?

Pois é. E o meu irmão menor também é jornalista. (Risos). Sou apaixonada pelo que eu faço. É uma profissão que é uma megaprivilégio, a gente tem a oportunidade de conhecer pessoas superinteressantes, se aprofundar em assuntos, de ajudar a dar voz para certas pessoas, acho incrível. Mas é uma profissão que tem desafios, inclusive de mercado de trabalho. Ele está acompanhando tudo, coitado acho que deve ficar até com uma overdose de todos esses assuntos, em casa. Se ele quiser ser, vou dar o maior incentivo. Ele sabe que é difícil, sempre fala: “Mamãe, você trabalha demais!”.

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