*Por Raymond Zhong

No auge do surto de coronavírus na China, as autoridades fizeram uso rápido dos dispositivos de rastreamento existentes no bolso de todos – os smartphones – para identificar e isolar as pessoas que poderiam estar espalhando a doença.

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Meses depois, as estatísticas oficiais do país sugerem que o pior da epidemia já passou, mas os aplicativos de monitoramento do governo dificilmente se tornam obsoletos. Em vez disso, estão aos poucos se transformando em um acessório permanente da vida cotidiana, com potencial para ser usado de maneira preocupante e invasiva.

Embora a tecnologia tenha, sem dúvida, ajudado muitos trabalhadores e empregadores a voltar à vida normal, isso também gerou preocupação na China, onde as pessoas estão cada vez mais tentando proteger sua privacidade digital. Empresas e agências governamentais chinesas têm um histórico heterogêneo de manter as informações pessoais a salvo de hackers e de vazamentos. As autoridades também têm uma visão ampla do uso de ferramentas de vigilância de alta tecnologia em nome do bem-estar público.

O software de rastreamento de vírus do governo vem coletando informações da população, incluindo dados de localização, em centenas de cidades em toda a China. E poucos limites foram estabelecidos quanto à forma como esses dados podem ser usados. Agora, autoridades de alguns lugares estão carregando seus aplicativos com novos recursos, esperando que o software permaneça como mais do que apenas uma medida de emergência.

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Zhou Jiangyong, secretário do Partido Comunista do centro tecnológico oriental de Hangzhou, disse que o aplicativo da cidade deve ser um “guardião íntimo da saúde” para os moradores, que é usado com frequência e “tão amado que você não conseguirá se separar dele”, de acordo com um anúncio oficial.

Os governos em todo o mundo estão tentando equilibrar a saúde pública e a privacidade pessoal à medida que retiram limites para proteger sua população do vírus. Na China, no entanto, a preocupação não é apenas com uma possível vigilância.

Os líderes do país há muito buscam aproveitar vastas quantidades de informações digitais para governar sua imensa e às vezes indisciplinada nação de forma mais eficiente. Mas quando os sistemas de computador têm tanta autoridade sobre a vida das pessoas, os bugs de software e os dados imprecisos podem ter grandes consequências no mundo real. Também não está nada claro que os cidadãos se sintam confortáveis com seu governo sabendo tanto sobre eles, mesmo quando o objetivo é eficiência e conveniência.

“A prevenção e o controle de epidemias precisam do apoio da tecnologia de big data, mas isso não significa que agências e indivíduos possam aleatoriamente coletar informações dos cidadãos em nome da prevenção e do controle”, escreveu Li Sihui, pesquisador da Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, em Wuhan, em um comentário recente.

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As pessoas na China se inscrevem no sistema de rastreamento de vírus enviando suas informações pessoais, viagens recentes e status de saúde em um dos vários aplicativos. O software usa esses e outros dados para atribuir um código de cor – verde, amarelo ou vermelho – que indica se o usuário é um risco de infecção. Funcionários postados em frente ao metrô, aos escritórios e aos shoppings impedem a entrada de qualquer um que não tenha o código verde.

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(Foto: Mojo Wang / The New York Times)

As autoridades nunca explicaram em detalhes como o sistema define o código de cor de um indivíduo, algo que causou espanto entre as pessoas que receberam o amarelo ou o vermelho sem entender o porquê. O “The New York Times” mostrou em março que um software de codificação de saúde amplamente utilizado coletava dados de localização e parecia enviá-los à polícia, embora não esteja clara a maneira como essa informação era usada.

Em Hangzhou, onde o sistema foi pioneiro, as autoridades estão explorando a expansão do código de saúde para classificar os cidadãos com um “índice de saúde pessoal”, de acordo com um post recente em uma conta oficial de mídia social. Não se sabe como o ranking seria usado, mas um gráfico no post mostra os usuários recebendo uma pontuação de 0 a 100 com base em quanto dormem, quantos passos dão, quanto fumam e bebem e outras métricas não especificadas.

A reação foi rápida. “Vigiar e discriminar pessoas insalubres não viola descaradamente a privacidade?”, postou o escritor Wang Xin na plataforma social Weibo, onde tem dois milhões e meio de seguidores.

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As cidades chinesas estão agora tentando diferentes maneiras de manter os residentes colados aos seus aplicativos de vírus. Xangai quer que seu programa se torne um assistente digital para acessar serviços locais de todos os tipos, não apenas médicos. Na cidade de Xining, o software desbloqueia cupons para lojas locais como uma forma de impulsionar a economia.

Em Hangzhou, em abril, as autoridades começaram a vincular o aplicativo da cidade aos registros médicos dos cidadãos. Isso permitiu que os moradores agendassem visitas hospitalares usando o aplicativo. Um documento da prefeitura também descreve situações em que os códigos das pessoas poderiam ser escaneados para obter acesso a uma leitura de sua saúde geral.

Em uma consulta com o médico, por exemplo. Ou ao avaliar trabalhadores para empregos que requerem aptidão física, como o de motorista. Até mesmo monitorando grandes multidões reunidas.

No entanto, tais informações facilmente acessíveis poderiam permitir a discriminação. As seguradoras poderiam aumentar as taxas para pessoas com códigos vermelhos ou amarelos. Os empregadores podem negar empregos ou promoções.

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Em fevereiro, o regulador de internet da China emitiu diretrizes que impedem que informações pessoais coletadas para combater a epidemia sejam usadas para outros fins. Mas não está claro se a mesma restrição seria válida para os aplicativos, como o de Hangzhou, que foram criados para combater o vírus, mas que depois se transformaram em uma ferramenta mais geral.

Nem o regulador da internet nem as autoridades de saúde de Hangzhou responderam aos pedidos de comentário.

Em um condado na província de Zhejiang, da qual Hangzhou é a capital, as autoridades estão ampliando o conceito de código de saúde para além da saúde pública, um possível sinal de até que ponto esse experimento no controle social digitalizado pode chegar.

Recentemente, autoridades do Partido Comunista no condado de Tiantai, perto da cidade de Taizhou, resolveram desenvolver uma ferramenta separada que chamam de “código de saúde da honestidade”, disse Qiu Yinwei, vice-diretor local de operações. O código representa o grau de retidão e diligência dos membros do partido na realização do trabalho partidário. “A ideia é mostrar se seu espírito partidário é saudável, e não se seu corpo é saudável”, disse Xu Yicou, secretário do partido na vila de Shitangxu.

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Como os códigos de saúde originais, os códigos de honestidade vêm em verde, amarelo ou vermelho. Por enquanto, eles não são gerados por software em celulares individuais. Em vez disso, as autoridades os geram com base em seus registros sobre membros do partido.

Depois que são impressos em papel, os códigos podem ser digitalizados com um aplicativo de telefone para trazer mais informações. Membros do partido com códigos vermelhos enfrentam investigação e disciplina, de acordo com o “Zhejiang Daily”, um jornal estatal.

O periódico contou a história de Xu Xujiao, secretário do partido de Youyi. A associação local de idosos usou fundos públicos indevidamente, afirmou o jornal, e, como punição, o código de honestidade de Xu foi alterado de verde para amarelo.

Em resposta, ele “prontamente mudou seu pensamento, corrigiu sua atitude e se dedicou ao seu trabalho”, relatou o jornal.

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Em pouco tempo, seu código ficou verde novamente.

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