Perri Klass
Na Rua Muçulmana da cidade chinesa de Xian há um quadro de bronze em homenagem à comida de rua. Ali, em uma via movimentada, lotada de barraquinhas vendendo pratos da cozinha islâmico-chinesa – sopa de carne de carneiro com dumplings, panqueca e noodles de feijão-mungo – os turistas podem posar ao lado da estátua de um vendedor de sopa e sua clientela. O cenário reúne as duas maiores atrações da cidade: as estátuas em tamanho natural e os bolinhos, que são soberbos.
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Todo ano, milhares de grupos passam por Xian, na região central do país, e uma das quatro capitais antigas da China. A grande atração é o local onde estão os oito mil guerreiros do exército de terracota, as figuras que Qin Shi Huang, primeiro imperador da China unificada, mandou fazer e enterrar para guardar seu túmulo e lutar suas batalhas na vida imperial após a morte. Uma estadia curta em Xian é perfeitamente possível, apenas para ver as figuras em seu museu a céu aberto e participar do típico “banquete de dumplings”: uma celebração exclusiva da cultura local desses bolinhos deliciosos que inclui as versões doce e salgada, frita, cozida e a vapor e nos mais diferentes formatos, como folhas, flores e até sapos.
Por outro lado, com milênios de história chinesa em exibição, Xian é um lugar incrível para passar mais do que alguns dias. As atrações vão desde dois túmulos imperiais esplêndidos ao melhor da arquitetura sincrética do Islã chinês, passando por um elegante templo budista – tudo isso em um contexto moderno de uma cidade de oito milhões de habitantes com direito a tráfego agressivo, muitas construções e lotada de shopping centers de luxo.
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Em uma noite fria de inverno, meu marido, nosso filho adolescente e eu pegamos o trem noturno de Pequim a Xian. O objetivo da nossa viagem era ver os guerreiros – e comer os dumplings, além de explorar o passado e o presente da cidade. O compartimento era minúsculo, mas aconchegante, com mantas e travesseiros e xícaras de chá quente de manhã, servido um pouco antes de o trem parar na estação principal que fica perto dos muros da cidade, construídos no século XIV e praticamente intactos.
Ficamos em um hotel residencial com apartamentos independentes no centro histórico, perto do bairro muçulmano e de duas torres famosas, também do século XIV, a do Sino e a do Tambor, sendo que ambas estavam completamente cobertas de andaimes.
Não demoramos a descobrir que, embora próximos das famosas iguarias da Rua Muçulmana (cujo nome formal é Beiyuanmen Street), estávamos ainda mais perto das inúmeras possibilidades de outra ruazinha gastronômica, de frente para o hotel, que logo passamos a considerar como nossa propriedade. Apesar de nenhum traço histórico – nem mesmo uma estátua – havia camelôs com carrinhos de dumplings recheados de arroz, um homem que cortava pedaços imensos de pão chato salpicado de cebolinha e um churrasqueiro com uma pequena grelha onde assavam pedaços de carne de porco e frango.
Na Rua Muçulmana, provamos pratos sino-islâmicos, que simplesmente ignoram a carne de porco e usam apenas a de carneiro, além do noodles feito com farinha de feijão-mungo. Mulheres faziam panquecas recheadas de cebolinha na chapa (que também podiam ser recheadas de cebolinha amarela ou carne moída apimentada). Entramos em uma lanchonete para provar nossas primeiras tigelas de “paomo”, talvez o prato mais característico de Xian, uma sopa grossa de carne de carneiro com pedaços de pão chato dentro.
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Xian, o extremo oriental da antiga Rota da Seda, há muito tempo é importante para muçulmanos e budistas, imperadores e comerciantes. A Grande Mesquita foi fundada em 742, pouco depois de o Islamismo ter criado raízes na China. O templo, reformado várias vezes ao longo dos séculos, se destaca por sua arquitetura chinesa, um minarete que lembra muito um pagode e pavilhões decorados com cerâmicas ornamentais brilhantes. Nossa exploração coincidiu com as orações vespertinas e o pátio se encheu de homens de solidéu.
Em uma travessa da Rua Muçulmana fica o palácio de um nobre da dinastia Ming, Gao Yue Song, que ficou famoso há 400 anos por ficar em segundo no exame imperial confuciano; uma placa na parede da casa reconhece a inteligência do garoto de doze anos. Passeamos pela residência tranquila e espaçosa, apresentada como a casa de “um erudito”, com sua sucessão de salas e pátios.
No dia seguinte, finalmente fomos para a principal atração da cidade: o Exército de Terracota. A viagem de ônibus para o interior, passando por universidades e spas, levou uma hora; aliás, a região é famosa pelas qualidades curativas e estéticas de suas termas.
O Museu dos Guerreiros e Cavalos de Terracota está disposto em uma série de prédios imensos, semelhantes a hangares, que se estendem ao longo das três trincheiras principais escavadas para acomodar as figuras descobertas em 1974. Na primeira ficam milhares de estátuas, em tamanho natural, dispostas em fileiras; na segunda há um grupo menor, que inclui carruagens e cavalos. No terceiro é possível se aproximar dos guerreiros individualmente, dispostos em caixas de vidro. Sem dúvida, é um local estranho e maravilhoso para uma visita, seja para refletir a respeito da vaidade dos imperadores, admirar a habilidade dos escultores – que conseguiram dar a cada um uma personalidade distinta – ou imaginar como foi a vida e a rotina daqueles que lutaram em guerras imperiais.
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No dia seguinte tomamos o café da manhã na vielinha sem nome de frente para o hotel, mais precisamente com um vendedor que tinha uma grelha adaptada à parte superior de uma bicicleta e preparava sanduíches de frango com ovo frito e servidos em pãezinhos chineses com dois tipos de molho apimentado.
A seguir, saímos à procura de uma entrada que nos levasse para a parte superior da muralha que cerca Xian – e logo nos vimos caminhando por uma área da Cidade Velha em que se vendia principalmente material de caligrafia: tintas, tinteiros e selos. Uma vez lá em cima, pudemos acompanhar uma parte da circunferência do centro antigo, de guarita em guarita, passando por cabines de aluguel de bicicleta – para os corajosos que quisessem percorrer os quase 13 km sobre duas rodas.
Mais tarde, pegamos um táxi para o Pagode Big Wild Goose, um templo budista de 652 d.C. cercado por pavilhões decorados com entalhes de pedra em homenagem ao estudioso Xuanzang, monge budista do século VII que viajou por toda a China e depois seguiu para a Índia em busca da sabedoria e dos textos budistas sagrados que o templo foi construído para abrigar. Subimos os sete lances da escadaria interior e pudemos apreciar lá de cima a versão moderna de Xian.
No nosso último dia, visitamos Hanyangling, outro complexo tumular luxuoso – esse do imperador Liu Qi, da dinastia Han, que reinou de 156 a 141 a.C., e sua imperatriz Wang. Ele também foi enterrado com figuras de terracota, embora bem diferentes dos soldados, arqueiros, oficiais e condutores do exército mais famoso, tanto em tamanho como objetivo. Para começar que as estátuas de Hanyangling são do tamanho de bonecas e incluem miniaturas de ovelhas, cabras, vacas e porcos, possivelmente enviados para o além-túmulo como fonte de alimento. No imenso museu subterrâneo é possível ver os compartimentos divididos para as figuras humanas e/ou os bandos de animais.
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Na nossa última manhã, fomos tomar o café da manhã com o homem do sanduíche de frango, mas dessa vez ele me perguntou se voltaríamos no dia seguinte. De fato, eu bem que poderia passar mais alguns dias em Xian; havia muita coisa ainda a explorar em uma cidade que merece ser absorvida com todos os sentidos.