Em meados de abril, menos de um mês depois do início oficial das medidas de distanciamento social, fechamento de estabelecimentos e cancelamento de eventos com o objetivo de diminuir a proliferação do coronavírus, artistas e produtores culturais de Santa Catarina já sentiam os efeitos econômicos da pandemia: um levantamento feito no Estado já registrava mais de dez mil eventos suspensos ou cancelados até então.

Continua depois da publicidade

Mesmo em um momento em que muita gente não acreditava que a pandemia poderia durar mais que dois ou três meses, os trabalhadores do setor cultural já eram unânimes em dizer: fomos os primeiros a parar, e seremos os últimos a voltar. E alertavam que o impacto econômico vai muito além do que o público costuma ver: não apenas artistas e produtores são afetados financeiramente; e sim toda uma cadeia produtiva – envolvendo seguranças, motoristas, profissionais de limpeza, bilheteiros, porteiros, garçons, empresas que trabalham com iluminação, com sonorização.

Estamos na metade de agosto – mais quatro meses já se passaram. E o setor de cultura e entretenimento continua sem fazer ideia de quando poderá retornar a uma relativa “normalidade”.

Uma esperança de alívio surgiu na forma da Lei Aldir Blanc, sancionada em junho e batizada em homenagem ao compositor brasileiro falecido no início de maio: criada para auxiliar o setor neste momento de crise, a lei prevê o pagamento de renda emergencial mensal aos trabalhores da cultura, em parcelas de R$ 600; subsídios mensais para a manutenção de espaços artísticos e culturais; e iniciativas como editais, prêmios e chamadas públicas. Santa Catarina vai receber R$ 97,6 milhões; dos quais R$ 45 milhões serão destinados ao Governo do Estado, por meio da Fundação Catarinense de Cultura (FCC), e os outros R$ 52 milhões serão encaminhados diretamente aos municípios.

A Plataforma+Brasil, sistema integrado que reúne as diferentes modalidades de transferência de recusos da União para estados e municípios, concentra os cadastros das cidades. Uma vez recebido o repasse, o Estado e os municípios vão se responsabilizar pela distribuição para trabalhadores, agentes e espaços culturais; que, para isso, deverão se cadastrar em outra plataforma, o Mapa Cultural. Ou seja, antes que artistas e trabalhadores do setor se mobilizem, é preciso que haja um trabalho por parte das próprias cidades, para operacionalizar o recebimento e distribuição dos repasses. E diferentes municípios catarinenses se encontram em diferentes estágios de organização.

Continua depois da publicidade

Marcelos Seixas, presidente do Conselho Estadual de Cultura e membro do Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis relata que, em nível estadual, a Fundação Catarinense de Cultura (FCC) tem acompanhado o processo desde o início.

– Estamos no aguardo da regulamentação da lei, que deve trazer um pouco mais de luz a pontos que ainda estão meio obscuros. Passada a regulamentação, o ritmo de trabalho se acelera; mas ele já vem sendo intenso – afirma. – Estamos fazendo levantamentos; trabalhando na questão dos cadastros. Emitimos um questionário pedindo sugestões dos agentes do setor e da sociedade como um todo sobretudo quanto à aplicação do inciso III, que trata dos editais. Estamos tentando garantir que o processo seja o mais transparente, democrático e participativo possível: chamando a sociedade para discutir, dar sua opinião.

– Estamos participando das discussões entre os estados desde que ainda estávamos na fase de projeto de lei – conta Liliana Bettina Alvez, Gerente de Linguagens Artísticas da FCC. – Acompanhamos a votação na Câmara, no Senado, a sanção. A primeira coisa que fizemos foi criar grupos nacionais de trabalho entre técnicos, para discutir aspectos da lei. Quando ela foi aprovada, fizemos duas sessões de alinhamento com os municípios, em encontros virtuais. Dentro da Fundação, também fizemos um grupo de trabalho com vários técnicos e duas pessoas do Conselho Estadual de Cultura; e nesse grupo estamos organizando a operacionalização da lei aqui no Estado: a parte jurídica, por exemplo, e a parte do cadastro.

– A maioria dos entes, municípios e estados, já está com o plano de trabalho na Plataforma+Brasil, aguardando agora a regulamentação da lei – ela prossegue. – A partir do momento em que sair a regulamentação, nós vamos enviar o plano de trabalho. Não sabemos, porém, quanto tempo depois de enviado o plano de trabalho receberemos os recursos. Inicialmente, a plataforma seria aberta em 25 de julho, e o informado era que receberíamos os recursos em até quinze dias; mas não acreditamos mais que esse será o prazo.

Continua depois da publicidade

Cidades se organizam para receber recursos

Florianópolis tem um grupo nomeado para a operacionalização da lei; formado por servidores da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes e três conselheiros municipais de cultura, que representam a sociedade civil: o grupo vai fazer a regulamentação e aplicação da lei no município, de acordo com suas características e especificidades. Para o dia 17 de agosto, está marcado o Fórum de Cultura da Grande Florianópolis; que tem o objetivo de debater com a sociedade civil o que os cidadãos esperam da aplicação da Lei Aldir Blanc.

– Estamos fazendo um levantamento oficial, a partir do qual vamos ter uma noção melhor de quantos espaços culturais temos na cidade, para saber quantos poderão ser beneficiados – completa Cris Villar, presidente do Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis. – Pelo valor que a cidade vai receber, nós devemos ter condições de atender cerca de 230 espaços. A partir disso, teremos critérios de corte: um dos principais critérios, baseado na lei, é a confirmação de pelo menos dois anos de atividade; além da comprovação de que as atividades foram paradas por causa da pandemia. Não é necessário que seja um estabelecimento físico, aliás: grupos teatrais e folclóricos podem requerer esse benefício, por exemplo, desde que provem que foram impactados. Os critérios para os editais também serão debatidos no Fórum da semana que vem.

Em Blumenau, a movimentação vem acontecendo desde abril.

– Desde abril já temos um panorama que vem se consolidando – diz Rodrigo Ramos, Secretário Municipal de Cultura e Relações Institucionais da cidade, e atualmente presidente do Colegiado de Cultura da AMMVI (Associação dos Municípios do Médio Vale do Itajaí). – A AMMVI está trabalhando de forma conjunta. Estamos nos organizando e orientando para estruturar o plano de ação especialmente nos municípios menores, para então poder começar a dimensionar as propostas. Temos um calendário mais ou menos definido, porque queremos realizar as atividades e ações uniformemente entre os municípios. Em Blumenau já temos montado o comitê gestor. Mas, como todo mundo, estamos aguardando a regulamentação: sem a regulamentação pronta, não conhecemos os pormenores da lei.

Já na cidade de Joinville, nas palavras de Cassio Correia, presidente da Associação Joinvilense de Teatro (AJOTE) e Presidente do Conselho Municipal de Política Cultural de Joinville, houve “um longo silêncio por parte da Secretaria de Cultura e Turismo” da cidade: apenas nos últimos dias, depois de muita pressão vinda do setor artístico do município, as coisas começaram a andar.

Continua depois da publicidade

 – Temos um movimento organizado na cidade que há tempos vem participando de diversas reuniões online para acompanhar a situação, e não víamos o poder público de Joinville tendo uma participação muito ativa; ou, pelo menos, não compartilhando muito com a sociedade civil – ele explica. – Não estávamos tendo respostas. Começamos a pedir apoio da Câmara de Vereadores; protocolamos diversos ofícios em nome do conselho de cultura e do movimento Mobiliza Cultura Joinville. Conseguimos uma reunião online com um grupo de trabalho que criamos dentro do movimento; e, mesmo assim, depois passamos mais um longo tempo sem ter nenhum retorno.

Outros ofícios, direcionados às comissões de legislação, educação e cultura da Câmara de Vereadores foram protocolados, com cópia para o Secretário de Cultura da Cidade, até que finalmente houvesse avanços.

– As últimas informações que a gente tem até são bastante positivas – comemora Cassio. – Já tenho autorização da Secretaria para chamar uma reunião extraordinária do conselho de cultura para a próxima semana, com pauta única da Lei Aldir Blanc, onde serão apresentadas as propostas para os incisos II e III, que ficarão sob responsabilidade dos municípios (o inciso I fica sob responsabilidade do Estado).

Mapeamento cultural será fundamental

Joinville deve receber mais de R$ 3,5 milhões, o maior montante entre as cidades de Santa Catarina. Com a estruturação do plano de trabalho e o cadastro do município na Plataforma+Brasil, e a regulamentação da lei, a próxima etapa deve ser o cadastro individual no Mapa Cultural; mesmo processo, é claro, que deverá ser seguido por moradores das outras cidades catarinenses, e de mais doze estados brasileiros.

Continua depois da publicidade

– A plataforma por onde as pessoas vão solicitar os recursos está sendo desenvolvida entre treze estados que vão utilizar o sistema – explica Liliana Bettina Alvez, da FCC. – Vamos usar o Mapa Cultural, uma plataforma de software livre que foi criada em 2013 e está sendo aperfeiçoada por um grupo de desenvolvedores. Estamos em processo de melhoramento da plataforma; verificando, por exemplo, as questões do acesso via celular e da segurança da informação, por causa dos dados que serão inseridos pelas pessoas.

– A partir do cadastro e da solicitação, será feita uma análise: essa análise não é de mérito cultural, não é pra determinar se essa pessoa tem currículo, claro. É uma análise da necessidade de cada um – Marcelos Seixas complementa. – Homologada essa solicitação, a pessoa vai para a fila de recebimento. Acho que o inciso I, o benefício pessoa física, não deve ser tão demorado assim; porque já existe todo um sistema estruturado. A liberação desse recurso é relativamente simples. Os incisos II e III são mais complicados. O mínimo que eu prevejo para a liberação dos recursos do inciso I é de uns 30, 45 dias. Para os incisos II e III, de 60 dias para mais.

– Esse dinheiro é um dinheiro público; ele vai ter que passar pela legislação. Isso são complicadores dentro da administração pública – afirma Rodrigo Ramos, que aposta em uma demora ainda maior. – A chegada desse dinheiro para os primeiros contemplados deve acontecer lá por novembro; e isso nunca é explicado para a classe artística. As pessoas leem sobre a Lei Aldir Blanc e acham que o dinheiro está liberado, está aqui no município, é só vir buscar. E aí vai caber a nós, aos municípios, dizer “espera, o dinheiro não está aqui, está lá no Banco do Brasil; antes de qualquer coisa você precisa trazer esse e esse e esse documento para ser analisado.”

– A grande questão é se os municípios vão aproveitar a oportunidade para fazer um amplo mapeamento cultural, desprovido de preconceitos – Marcelo pondera. – É fundamental que sejam identificados os espaços e as pessoas que estão precisando fazer uso desse recurso. Temos um grupo na cultura que está acostumado a trabalhar e a sobreviver via editais; e um outro grupo completamente despreparado, às vezes até mesmo sem acesso à internet, a plataformas virtuais. Essa é uma grande dificuldade: como fazer o recurso chegar a quem realmente está precisando? O dinheiro é significativo, mas é finito. Já temos estimativas que mostram que não vai ser suficiente para todo mundo.

Continua depois da publicidade

– Virou um discurso político – Rodrigo é categórico. – Muita gente acha que a lei está aí e vai ajudar todo mundo, sendo que nem todo mundo vai receber. Claro que é um dinheiro importante, significativo, que vai estar circulando pela economia criativa das cidades. Mas vai dar para todo mundo? Não, não vai dar para todo mundo.

Liliana Bettina Alvez reforça a participação da sociedade como uma importante ferramenta para garantir que o dinheiro chegue onde de fato precisa chegar:

– É importante que as pessoas participem desses diálogos que nós estamos promovendo; porque acreditamos que, quanto mais dialogarmos entre as setoriais, municípios, sociedade civil, mais fácil vai ser direcionar os recursos para quem realmente precisa – destaca. – Queremos que seja um processo bem transparente.

Diante das incertezas, Rodrigo Ramos relembra que é importante que “produtores e artistas fiquem atentos” e procurem outras plataformas, participem regularmente de outros editais e recursos de fomento: em Blumenau (que deve receber cerca de R$ 2 milhões da Lei Aldir Blanc), por exemplo, a Câmara de Vereadores aprovou o projeto de lei que cria um prêmio e um festival cultural para socorrer os artistas e produtores da cidade prejudicados pela crise. R$ 30 mil do Fundo Municipal de Cultura serão aplicados no Prêmio Emergencial Leide Regina de Liz. O prêmio vai escolher projetos culturais a serem apresentados no Festival Multicultural Blumenau On-Line, em data a ser agendada.

Continua depois da publicidade

Liliana, da FCC, lista mais algumas iniciativas; como o Edital Elisabete Anderle, no valor de R$ 5,6 milhões, e o Prêmio Catarinense de Cinema, de R$ 5 milhões. Além disso, há um Edital Emergencial em tramitação na ALESC (Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina), no valor de R$ 4 milhões: R$ 2 milhões liberados pelo Governo do Estado; e R$ 2 milhões liberados pela ALESC. Segundo Liliana, a expectativa é de que o Edital Emergencial seja publicado muito em breve.

Da cabine de luz para a união de forças

Seja como for, a expectativa criada pela lei Aldir Blanc em quem depende das atividades e eventos culturais para se sustentar é grande.

– A gente espera que chegue em todos os cantos da cultura, que muita gente possa ser atendida – diz o iluminador cênico Flávio Andrade, de Joinville. – E que seja menos burocrático: nossos editais costumam ser um parto para conseguir.

Flávio trabalha como iluminador de teatro há 30 anos: nativo de São Paulo, mudou-se para Joinville há 11 anos; e percebeu uma carência no mercado – quem fazia iluminação para companhias e espetáculos teatrais eram as mesmas companhias que trabalhavam com shows musicais; e as especificidades são diferentes. Aos poucos, Flávio passou a atender quase todas as companhias de teatro e dança da cidade; e assumiu nada menos que o Festival de Dança de Joinville a partir de 2018.

Continua depois da publicidade

– Depois do primeiro decreto eu já fiquei um mês parado em casa, achando que isso ia passar logo – ele relata. – Tínhamos um planejamento de um ano de eventos e espetáculos, já. Com o cancelamento de um evento depois do outro, eu e meu sócio decidimos vender pinhão: estava chegando a época de festa junina, a safra estava começando a sair, a Festa do Pinhão de Lages tinha sido cancelada… Então montamos uma barraca, e estamos vendendo pinhão. Com isso, por enquanto, temos conseguido ajudar todas as famílias que trabalham com a gente. Graças a Deus.