A vida no campo sempre esteve presente na rotina de dona Maria Aparecida Koch. Filha de pais também agricultores, a atividade garantia comida e sustento para a família em época de dificuldade quando pequena, e se tornou a rotina e fonte de renda ao lado do marido depois de adulta na propriedade em Antônio Carlos, na Grande Florianópolis.
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— A gente tinha que ir junto com eles para a agricultura, para ter o alimento para comer, se não, não tinha farinha, se não, não tinha o fubá, o arroz não tinha. A gente tinha que plantar arroz e descascar, socar para poder cozinhar, para dar para os irmãos. Então todo dia ia para a roça com o pai e a mãe para aprender — relembra.
Dona Maria Aparecida é uma das mais de 1,6 milhão de mulheres que atuam na agropecuária no Brasil, segundo dados do Anuário Estatístico da Agricultura Familiar publicado em 2023, que considera entre as atividades a agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura. Somente no Sul do país, são 435 mil mulheres na agropecuária.
A história de raízes em meio a natureza e aos valores da vida simples, no campo, junto aos animais, permeiam também a trajetória de uma das mulheres de destaque no meio agrícola catarinense. Celles Regina de Matos, médica veterinária e presidente da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc), relembra a escolha por atuar na área e os desafios enfrentados como mulher.
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— Venho de uma comunidade rural do interior do estado de Santa Catarina, do Oeste de Santa Catarina. É o meio onde as pessoas vivem da produção agrícola e onde eu encontro muito sentido na vida, que são os valores da natureza. Então, a partir disso e da convivência com essas pessoas simples do campo, eu entendi que eu gostaria de cuidar disso para o resto da minha vida. Estar no meio desse tipo de pessoas e dar sentido, dar propósito a minha vida ao mexer com a terra, com a água, com os animais — afirma.
A escolha pela medicina veterinária veio ainda em uma época em que a profissão era vista como muito masculina. Com o apoio dos pais e os ensinamentos de professores, Celles iniciou a atuação na área com foco em grandes animais, e foi a primeira veterinária mulher a atuar na prefeitura do município de Arroio Trinta.
Levando método e tecnologia para a cidade, Celles conseguiu auxiliar os produtores locais a aumentaram a produção de leite, carne, acelerarem a industrialização e assim aumentarem a arrecadação do município.
— Eu entendo que, por ser mulher, eu também tinha uma empatia muito grande e ajudava a preencher uma lacuna que havia também na convivência com a mulher produtora rural. E ao preencher essa lacuna junto com elas, nessa convivência, eu encontrei oportunidades de fazer. Na medicina veterinária do município, além do óbvio que usava muito a minha força, derrubar um boi, fazer uma castração, entendi com elas que havia oportunidades da industrialização, de fazer o queijo, industrializar o mel, de fazer aquela matéria prima virar um produto com valor agregado. E quem fazia isso? Era a mulher que fazia esse papel — explica a médica veterinária.
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Os dados do Anuário Estatístico da Agricultura Familiar publicado em 2023 destacam ainda que a maior parte da população rural feminina que atua na agropecuária possui entre 30 e 49 anos, sendo que esse grupo representa 49% do total. Em seguida vêm as mulheres entre 18 e 29 anos, com 19%, e as entre 50 e 59 anos, também com 19%. Por fim, mulheres acima dos 60 anos compõem 10% daquelas na agropecuária, e a população entre 14 e 17 anos corresponde a 3%.
A maior parte dessa população, 523 mil mulheres, atuam por conta própria. Já 494 mil são trabalhadoras familiares auxiliares, 128 mil atuam no setor privado sem carteira assinada, e 93 mil são empregadas no setor privado com carteira assinada.
O último Censo Agropecuário foi feito em 2017, e mostrava que as mulheres estavam à frente de 19% das propriedades rurais no Brasil, um crescimento se comparado aos 13% registrados em 2006. A agricultura familiar é a maioria entre os 5 milhões de estabelecimentos rurais do país, empregando mais de 15 milhões de trabalhadores.
Santa Catarina se destaca como o estado brasileiro com o maior índice de mulheres à frente das propriedades rurais. Quase 19 mil agricultoras, o que representa 11% do total, fazem a gestão de estabelecimentos agropecuários, mostra o Censo.
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O levantamento Anuário Estatístico da Agricultura Familiar ainda aponta que, no Brasil, 30% das mulheres no setor são chefes do domicílio, enquanto 57% são cônjuges, 10% filhas e 4% se configuram em outras posições.
No caso da dona Maria, a rotina no campo é compartilhada com o marido, o também agricultor João Koch. Os dois se conheceram aos 16 anos, e depois de sete anos de namoro decidiram se casar e começaram a cultivar na propriedade em que moram até hoje. O trabalho na roça é divido entre os dois. Ele prepara a terra, ela transfere as mudas, eles colhem, organizam a mercadoria e entregam para os restaurantes, que compram a alface, couve, cebolinha e outros produtos que são cultivados em Antônio Carlos.
Além do trabalho no campo, dona Maria se divide entre tarefas domésticas, e destaca a importância da mulher agricultora, ainda pouco reconhecida e com pouco apoio, mas essencial para garantir o alimento na mesa dos catarinenses.
— Somos fortes, guerreiras, não desistimos por qualquer coisa. Todos os dias persistindo, sempre insistindo. E o psicológico, a gente tem que ter sempre pensamento positivo. Sempre pensar no amanhã e sempre com gratidão todos os dias, por tudo. Agradecer mais do que pedir. Eu penso assim — afirma.
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Mulheres catarinenses ocupam cargos de liderança do setor
Depois da atuação como médica veterinária no serviço público e da experiência na agroindústria em diferentes estados brasileiro, Celles Regina recebeu convite para assumir a presidência da Cidasc. Ela afirma que estar nessa posição de destaque dentro do setor veio como resultado da trajetória em que buscou a capacitação e os estudos, e foi um convite recebido com surpresa, mas com sensação de merecimento.
— Acho que ser mulher é ser desafiada todos os dias de diversas maneiras. Na maioria das vezes, veladamente. Mas a gente sabe muito bem como contornar isso. E cada vez isso é menos e menos. As pessoas preparadas estão entendendo que a gente só soma. A gente não subtrai — alega a presidente.
Ela reforça também a importância do agronegócio frente aos desafios de alimentar uma população que cresce, garantindo alimento saudável na mesa das famílias, preservando a terra, em equilíbrio com a natureza.
— O trabalho da gente é sempre uma jornada. A gente está sempre em evolução. E, de fato, a gente tem vivido no mundo agro e, no mundo em geral, essas mudanças climáticas. Elas são fruto de muitos procedimentos que talvez a gente precise rever juntos e com maturidade. E a nossa profissão no agro, ela precisa ser repensada, absorver tecnologias limpas e de modo que a gente dê sustentabilidade ao homem no campo, a mulher no campo, a família no campo — afirma.
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Mulheres catarinenses na agricultura familiar
De Treze Tílias para a Forbes
Edilene Steinwandter, engenheira-agrônoma e atual gerente do Centro de Socioeconomia e Planejamento Agrícola da Epagri, foi listada como uma das 100 mulheres mais poderosas do agro brasileiro em 2021 pela revista. A vontade de trabalhar atendendo produtores rurais e no setor agrícola veio desde cedo, e foi concretizada com o passar dos anos. Ela conta que, quando criança, morava em frente ao escritório municipal da Epagri, que ainda se chamava Caresc, e sonhava em trabalhar lá.
— A minha vontade sempre foi contribuir com o desenvolvimento desse setor e poder auxiliar que a produção de alimentos no mundo seja de acordo com a qualidade que a população merece, em quantidade, e que a gente possa ajudar a segurança alimentar — afirma a ex-presidente da Epagri.
Ela relembra que quando surgiu a oportunidade de estar à frente da empresa, recebeu com surpresa e com responsabilidade, mas as dúvidas também vieram. O medo de não dar conta de conciliar trabalho e maternidade precisou ser superado para honrar a chance de ocupar esse espaço.
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— Então eu pensei, eu vou assumir, porque eu tenho que honrar toda a trajetória das mulheres que fizeram parte dessa história, dessa empresa que eu trabalho, que até então nunca tiveram a oportunidade de assumir um cargo de liderança. E agora essa oportunidade chegou pra mim. Então eu vou assumir e eu vou dar conta — destaca.
No trabalho em campo, Edilene percebeu que por ser uma área de predominância masculina, o homem é quem costuma ir para a área técnica, recebendo as visitas na propriedade, enquanto a mulher ficava em casa, sem envolver e participar das decisões da propriedade.
— Eu sempre busquei envolver a família, trazer a esposa pra ir junto, trazer a família, os filhos para a decisão familiar. Porque nós observamos que a invisibilidade da mulher no geral, mas em especial no campo, ela é e ainda é muito grande. Preocupa que a grande maioria dos estabelecimentos gerenciados por homens não tem participação da mulher na decisão — afirma.
A engenheira agrônoma explica que dos 183 mil estabelecimentos rurais de Santa Catarina, cerca de 10%, o equivalente a 18 mil, são gerenciados por mulheres. Todo esse contexto faz com que o trabalho dos técnicos ganhe relevância por observar as particularidades das famílias e integrar, já que as mulheres têm responsabilidades equivalentes dentro das propriedades. Desde 2019, a Epagri busca reverter essa invisibilização através de projetos e capacitações para mulheres agricultoras e pescadoras.
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— Além de se sentir importante, útil, ter visibilidade no seu trabalho, muitas têm o sonho de uma autonomia financeira. E a autonomia financeira está muito relacionada com a autoestima, com a alegria, com o empoderamento. E é um projeto lindo, porque ao final do curso as mulheres têm a possibilidade de, junto com os técnicos da Epagri, apresentar o seu projeto de vida. E o governo do Estado entra com recurso financeiro para aportar esse projeto de vida — explica.
Epagri busca criar projeto de vida para mulheres no campo
Para debater de violência contra a mulher e até a educação financeira, passando por educação ambiental, gênero, políticas públicas e outras temáticas, surgiu o projeto Flor e Ser, coordenado pela Epagri desde 2022, e que já atendeu 40 mulheres. Ao final do curso, voltado para agricultoras e pescadoras, as mulheres apresentam um “projeto de vida”, a ser executado por elas.
— Esse projeto nasceu da necessidade que a gente sentiu no trabalho, no campo, de que as mulheres precisam de um espaço para elas, para trocar experiências, para conversar e para discutir alguns temas que geralmente são meio proibidos — explica a extensionista social da Epagri e coordenadora do Curso de Mulheres em Ação Flor e Ser.
O projeto a ser apresentado no final deve ser um sonho, que esteja conectado com a agricultura familiar para assim ter direito a um valor do projeto Realize, ligado a secretaria da Agricultura de Santa Catarina. Entre as iniciativas de destaque nas edições realizadas estão projetos de panificadora sem glúten e lactose, chalés, venda de amendoim no saquinho, entre outras.
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Ana Maria Machado é uma das mulheres que participa da edição 2024 do programa. Moradora do Morro do Fortunato, em Garopaba, a horta orgânica é o sustento da família e já passa de geração em geração. Ela conta que o curso a motiva a se tornar ainda mais forte, e já planeja o “projeto de vida” do final do curso.
— Eu já tenho o projeto lá na minha horta, a gente está para terminar uma cozinha, porque ali a gente recebe pessoas de fora, como crianças de vários lugares do município, até de fora também já recebemos. Então a gente está querendo fazer um projeto melhor para receber as pessoas, que seja assim bem valorizado, que dê para conhecer mais a horta que dá a vista pra praia e para lagoa — detalha.
Outra participante deste ano é Wellen Dias, microempresária de Tijucas, que aos 13 anos teve a ideia de montar uma unidade de beneficiamento de conservas que se tornou a fonte de renda da família. Estudante do Colégio Agrícola e com o pai desempregado na época, ela propôs o projeto em casa, que foi abraçado pela família.
— Eu levei essa ideia para casa porque o meu pai ainda estava desempregado, a gente estava numa fase só sobrevivendo, e aí eu trouxe a ideia e a gente abraçou. Começamos aos trancos e barrancos e tudo muito engatinhando, muito devagar, mas a coisa foi se desenvolvendo — relembra.
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Wellen segue atuando ao lado dos pais 18 anos depois, ainda que planeje também iniciativas mais pessoais, como o desenvolvimento de compotas e geleias. As “conservas doces” devem ser o projeto final da empreendedora, que trouxe a mãe para o curso para que ela ampliasse os horizontes ao trocar e interagir com outras mulheres do campo.
— Muitas pessoas veem o pessoal do agro como uma coisinha pequena e na verdade ele não é. Ele é a base de tudo. Todos os outros negócios vem porque o agro existe. Então, assim, aqui ele mostra a nossa importância, ele nos faz crescer, nos enxergar como uma pessoa grande, faz a gente entender a nossa importância para família do agro e para as famílias que vem nas nas cadeias seguintes — finaliza.
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