O que era pra ser uma consulta médica em busca de tratamento para síndrome de burnout adquirida após uma mudança de local de trabalho acabou se tornando um pesadelo na vida de Rosi*. Ela, que já carregava traumas anteriores, hoje lida também com as consequências da violência sexual que relata ter sofrido em agosto deste ano. A vítima procurou a polícia e sua denúncia motivou a prisão preventiva do médico que atuava na saúde pública de Joinville, em um posto de saúde. Ele está detido desde o dia 1° de outubro. A mulher o acusa de ter se aproveitado de seu estado de vulnerabilidade para cometer o crime. A defesa do médico não quis se manifestar até o momento.
Continua depois da publicidade
> Acesse para receber notícias de Joinville e região pelo WhatsApp
Para entender como a mulher chegou até o médico, a reportagem do AN narra a ordem cronológica dos acontecimentos, com base em seus relatos exclusivos — desde a motivação de seu distúrbio psíquico até 3 de agosto de 2021, dia do primeiro e único encontro que diz ter tido com o profissional. As informações constam também no processo que tramita na Justiça e no inquérito policial, já concluído.
***
Rosi é mãe solo de uma menina de 7 anos e foi criada pelos avós. Ela conta que sempre teve uma vida simples, mas sua avó batalhava para que não faltasse nada dentro de casa. Foi neste cenário humilde, porém estável, que Rosi nasceu e que a possibilitou formar-se em pedagogia.
Continua depois da publicidade
Desde que iniciou a carreira, há 12 anos, atuava na rede particular de ensino. Porém, neste ano, passou a trabalhar na rede municipal. E foi aí que a realidade das famílias carentes que vivem na cidade passou a abalar a professora, que pelo excesso no trabalho, foi diagnosticada meses depois com burnout.
– Em maio e junho, começou a dar um frio que doía e as crianças iam de bermuda porque não tinham roupa. Aí eu comecei a virar a noite arrecadando roupa, comida, gás… Como não tenho carro, levava [as arrecadações] a pé ou dava jeito de levar de Uber. Aí eu fui adquirindo a síndrome. As pessoas me alertavam, mas eu via que estava dando conta do trabalho e da minha filha e pensava “está tudo bem”. Mas não estava – relata.
Dias e noites chorando
Rosi conta que passava dias e noites chorando preocupada em resolver a situação das famílias. Durante suas férias de julho, inclusive, ficou em função disso. Mesmo muito abalada, foi à escola na segunda-feira de 2 de agosto, data de retorno das aulas.
Naquele dia, diz, apenas os professores se reuniram a fim de decidir alguns assuntos para receber os estudantes no dia seguinte. Mas Rosi não conseguiu se concentrar e passou a reunião inteira aos prantos.
Continua depois da publicidade
– No dia 3, eu consegui ir só até o estacionamento da escola, estava com o carro da minha mãe que passava uns dias em Joinville. Mas eu chorava tanto, de soluçar, e não consegui entrar na escola. Foi ali que percebi que precisava de ajuda – conta.
A professora já vinha sendo tratada por um psiquiatra por causa de outras questões vivenciadas anteriormente. Mas, como o profissional estava em home office por causa da pandemia, decidiu buscar atendimento no posto de saúde do servidor público, com uma forte crise de pânico, conforme relata.
Lá, foi informada que poderia ser atendida apenas no posto de saúde de seu bairro, no Iririú. No entanto, por causa de seu estado alterado, uma psicóloga atendeu Rosi, em uma conversa que durou cerca de duas horas. Em seguida, ela passou por um clínico geral que lhe deu uma guia de urgência para atendimento com um especialista na unidade básica do Iririú. Por causa do horário, Rosi deixou para ir ao posto no dia seguinte.
Eu gritava pra dentro, eu sentia o meu grito, mas aquilo era uma tortura pra mim. Ouvia o meu grito e percebia que ele não estava saindo. Me senti hipnotizada.
Dia da consulta com o médico
No dia, Rosi ficou com a filha pela manhã e à tarde levou a menina à escola. A quarta-feira tinha começado tranquila, mas durante o trajeto ao posto, onde supostamente receberia atendimento psiquiátrico, foi tomada por outra crise de choro.
Continua depois da publicidade
Apesar de bastante abalada, ela conseguiu chegar na unidade de saúde, onde foi informada que um clínico geral com especialidade em psiquiatria poderia encaixar seu atendimento durante alguma brecha na agenda.
– Eu decidi esperar a consulta porque se eu saísse dali eu poderia tirar a minha vida, então decidi esperar. Era ficar ou tirar a minha vida. Mas infelizmente, naquele dia, acabei perdendo um pouco dela.
Minutos depois, Rosi ouviu seu nome e entrou para a consulta. Foi aí que, segundo ela, seu pesadelo teve início.
– Ele me chamou e falou pra alguém no corredor: “fala pra ninguém interromper, porque ela não está bem”. Quando entrei no consultório, já achei estranho porque ele tinha uma cadeira em frente sua mesa e uma outra do lado dele. Fiquei pensando que no meu psiquiatra não era assim. Mas sentei na cadeira à frente da mesa. Aí eu ouvi o “clack” da porta, que era daquelas maçanetas redondas. Percebi que ele a trancou. Eu até levantei os ombros do susto e me veio à cabeça de novo: “meu médico não tranca a porta”. Em seguida, ele disse “você senta aqui”, apontando para o lado dele – narra Rosi. Ela lembra que a frase foi dita com um tom de voz rude, e ela acabou mudando de lugar.
Continua depois da publicidade
Já sentada ao seu lado, ela conta que o médico começou a perguntar sobre sua vida pessoal, inclusive se a mulher estava solteira. Rosi contou sobre o que a levou a ser diagnosticada com burnout e, após ser questionada pelo profissional, acabou também tocando em outros episódios traumáticos que já havia vivenciado. Foi aí que, segundo ela, o médico se aproveitou de sua vulnerabilidade.
– Ele falou coisas horríveis sobre minha filha e que eu estava sofrendo assim porque eu merecia, porque matei pessoas na vida passada. E aquilo foi me diminuindo, eu fui me sentindo uma amoeba, deslizando na cadeira. Ele ainda disse “se prepare, porque tem muito mais aprovação pra você viver”. Minha alma foi saindo e eu fiquei ali, olhando pra ele, parada, sem conseguir fazer nada – relata.
– Até que ele levantou e falou assim: “eu sei o que você precisa, de alguém que cuide de você e eu vou cuidar de você”. E eu gritei pra dentro nesta hora, e congelei. Eu não conseguia falar, chorava pra dentro – conclui.
Foi neste momento que, segundo Rosi, o médico teria tirado sua máscara, aberto o cinto da própria calça e iniciado o abuso. Ela afirma que o ato durou cerca de 40 minutos. Depois, ele voltou a sentar-se na cadeira, “como se nada tivesse acontecido”, diz, e receitou três medicamentos, um deles com propriedades de inibição leve das funções do sistema nervoso central e que pode ter efeito sedativo. Ao todo, Rosi acredita ter ficado cerca de duas horas dentro da sala com o médico.
Continua depois da publicidade
– Lembro que ele disse assim: “Se prepare, que da próxima vez será no cinema. Tenho tudo sobre você na ficha aqui”. Eu não abria a minha boca, não conseguia falar. Eu gritava pra dentro, eu sentia o meu grito, mas aquilo era uma tortura pra mim. Ouvia o meu grito e percebia que ele não estava saindo. Me senti hipnotizada – relata.
A denúncia
Na saída do posto, Rosi conta que foi orientada a não comprar os medicamentos receitados pelo médico e, somado à sua falta de dinheiro, já que está afastada do trabalho por atestado médico, acabou seguindo a dica.
Apenas no dia seguinte afirma ter se dado conta do que havia sofrido. Aliado a uma crise de choro, Rosi diz ter sido tomada por lembranças sobre o ocorrido. Durante a tarde, procurou novamente a profissional que a tinha atendido no posto destinado a servidores públicos e foi encorajada a denunciar.
– Ela e a assistente social foram comigo na delegacia, ao hospital e me acompanharam no exame de corpo de delito. Sempre que fecho os olhos, lembro daquele olhar dele em minha direção. Ele é intimidador, me ameaçou com o cargo dele. Eu temo pela minha vida, mesmo com ele preso. Que pesadelo horrível – desabafa.
Continua depois da publicidade
A partir de então, Rosi diz que tenta realizar perícia no INSS para reconhecer a doença que foi diagnosticada e receber auxílio, já que possui atestados médicos que comprovam a burnout.
Desde agosto, a mulher conta que sua perícia já foi reagendada em duas ocasiões e, agora, segundo ela, só deve acontecer em janeiro de 2022.
– Eu estou sem receber um real desde o dia que fizeram isso comigo. Como que podem fazer isso? Está sendo uma tortura – questiona, em lágrimas.
A reportagem da NSC procurou o INSS que, por meio de nota confirmou a solicitação da mulher de uma perícia médica por meio de análise documental. A nota diz:
Continua depois da publicidade
“Como a documentação não estava em conformidade com as exigências impostas pela portaria que regulamenta essa forma de perícia, ela precisará passar por uma perícia presencial. A Perícia Médica Federal poderá atendê-la no próximo dia 27 de outubro. Ela deve comparecer à APS Joinville às 9h, munida de toda a documentação médica de que dispuser.”
Outras denúncias
A reportagem também conversou com a delegada Cláudia Cristiane Gonçalves de Lima Gonzaga, titular da Delegacia da Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami) de Joinville que informou que mais duas mulheres procuraram a Dpcami para relatar abusos por parte do médico, também sofridos no posto de saúde.
A prisão preventiva do médico foi decretada no início de outubro, quando ele foi indiciado por estupro após a denúncia de Rosi. O caso agora está com o Ministério Público, que já ofereceu a denúncia à Justiça. Desde agosto o médico também não trabalha mais para a prefeitura de Joinville, que o exonerou do cargo.
Por ora, conforme Cláudia, o médico deve permanecer detido, mas a prisão pode ser revertida a qualquer momento, caso o MP ou a Justiça entenda não ser mais cabível. Com relação às demais denúncias, a investigação segue em curso.
Continua depois da publicidade
A delegada confirmou que o homem já responde a outro processo pela mesma acusação na Bahia. O caso, no entanto, segue em sigilo.
– É por estupro de vulnerável, mas não temos mais informações do processo em si – finaliza.
O que diz a defesa
A reportagem entrou em contato com a defesa do médico diversas vezes via mensagens e por meio de ligações para se pronunciar sobre as acusações. Inicialmente, no início da noite de quarta-feira (20), foi pedido que entrássemos em contato na tarde de quinta-feira (21). No entanto, na manhã de quinta, o advogado informou que “a defesa irá se manifestar nos autos da ação penal. Assim, não há o que tratarmos no momento”.
*Por orientação da defesa da mulher, a reportagem decidiu por ocultar seu nome verdadeiro e utilizar um nome fictício.
Continua depois da publicidade
Leia também
> Carga de café avaliada em R$ 300 mil é apreendida em empresa de reciclagem de Araquari
> Norte de SC tem metade da população vacinada com duas doses contra a Covid-19
> Quanto custaria para asfaltar todas as ruas sem pavimentação em Joinville
> Em Joinville, 8,2 mil de 30 mil pessoas aptas procuraram dose de reforço contra Covid