O padre Júlio Renato Lancellotti tem levado a orientação do Papa Francisco, de uma Igreja pobre com e para os pobres, à risca em São Paulo. É ele que aos 72 anos sai da paróquia com uma grande máscara de gás e partilha com pessoas que tem fome alimentos e alento.
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Em entrevista a NSC, o líder religioso reconhecido por desenvolver trabalhos em prol das populações vulneráveis fala sobre o tem visto nas ruas de São Paulo e como ele acredita que o cenário possa ser mudado. Confira na entrevista a seguir:
O que é miséria e o que é a fome?
Muitas vezes uma é consequência da outra. O estado de miserabilidade de grande parte da população gera como consequência a fome. A miserabilidade trás como uma consequência quase que inevitável a fome. A fome não só quantitativa quanto qualitativa. Gerando desnutrição e subnutrição. É uma coisa muito ligada na outra.
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O senhor fala muito que estamos em crise humanitária, o que isso quer dizer?
Sim, isso quer dizer, negar os direitos fundamentais da pessoa humana. O que nos vemos nesta crise humanitária, por exemplo, é no que tange a população em situação de rua, o não acesso a água potável, o não acesso a uma alimentação regular, ou seja, a pessoa não sabe se vai comer, não tem previsão de alimentação, não tem as mínimas condições de higiene, vive em situação de insegurança. Então é uma crise humanitária poque lesa a dignidade humana e nega as questões fundamentais da vida humana.
Quais são os impactos da fome no dia a dia das pessoas que ainda tem uma casa para morar?
O que nós temos visto é que muitas pessoas têm que escolher: ou ter o teto ou comer. Alguns que conservam o teto vão para a rua para conseguir comida, para se alimentar de várias formas, nem que seja revirando o saco de lixo ou esperando o resto de bares restaurantes e lanchonetes. Como vimos a pouco tempo em Cuiabá aquela fila do osso. As pessoas têm que achar meios de sobrevivência que são extremamente indignas e extremamente desumanas e aviltantes. Degradam a dignidade da pessoa.
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O que o senhor sente quando atende as populações nas ruas com a entrega da comida?
Me toca muito avidez com que eles comem, a angústia e muitas vezes ver eles comendo tristes. Muitas vezes eles não têm a alegria daquela comida. Eles estão comendo tristes, ávidos, como uma rapidez muito grande. Vejo na rua em determinados lugares, que ele não acabou de comer o marmitex e ele já estendeu a mão para pegar outro. É a urgência, é o medo da fome. A fome é uma sensação tão ruim que tem que tentar evitar. Eles comem muito, para garantir que vai ter uma reserva para aguentar a incerteza de quando vai comer outra vez.
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O senhor foi muito criticado por distribuir comida para população de rua de São Paulo com o argumento de que isso aumentaria a criminalidade. Esse tipo de argumento ainda é utilizado por pessoas que se evitam participar de ações como essas. Qual o seu posicionamento?
Refleti ainda hoje sobre isso. E olha, nem em situação de guerra nós podemos privar os prisioneiros de guerra de alimentação. Isso é uma convenção internacional. É completamente antiético considerar que a pessoa por ser dependente química ou estar em vulnerabilidade aguda, na rua, que lhe seja negado alimento.
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O senhor já vinha percebendo um aumento da miséria e da fome antes mesmo da pandemia?
Sim, há um aumento desde 2016. Um aumento do empobrecimento do nosso povo, e como isso um aumento da fome e o aumento das pessoas que estão em situação de rua. Como diz o papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, esse é o efeito de um sistema que tem a lógica do descarte. A população que está na rua e a população faminta é uma população descartável.
O que pode ser feito para reverter esse cenário?
Acho que todos nós temos que ter duas posturas, atender a necessidade imediata e lutar para a transformação deste sistema.