Cortaram os cabelos de Sansão, é força que se foi. No Ultimate Fighting Championship (UFC), havia sansões tirando força de peruca. Melena falsa. Injeção de hormônios.
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Vitor Belfort tinha data marcada para enfrentar o americano Chris Weidman, mas viu espoliada a chance de disputar o cinturão dos médios. O brasileiro era usuário da Terapia de Reposição de Testosterona (TRT), banida no início do mês pela Comissão Atlética de Nevada (NSAC).
Um dia depois da decisão, a Comissão Atlética Brasileira de MMA (CABMMA) seguiu o exemplo de Nevada e decretou tolerância zero à TRT. A dobradinha acalmou os ânimos de fãs, lutadores e do próprio presidente do UFC, Dana White, todos apontando que injetar testosterona desequilibrava os combates – Belfort talvez não tenha ajudado a si mesmo ao enfileirar nocautes espetaculares em três adversários gabaritados, o último deles Dan Henderson, sujeito nunca antes nocauteado e também usuário da TRT.
– A TRT era muito malvista, afetava a integridade do esporte. O MMA sempre buscou mostrar quem é melhor a partir da técnica. O próprio Royce Gracie mostrou que o mais técnico deve vencer, e é isso que deve prevalecer – diz Caju Freitas, editor do blog No Mundo das Lutas.
O treinador de boxe Peterson Barbizan lembra que as próprias divisões por peso e níveis (como as faixas) buscam equilibrar ao máximo os competidores.
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– Como profissional de Educação Física, acho problemático o uso indiscriminado de quaisquer substâncias que interfiram no desempenho dos atletas. Quanto à saúde, me parece clara a possibilidade de danos. No caso de anabolizantes, sobrecarga hepática, renal, mudanças comportamentais, esterilidade e desequilíbrios hormonais.
O mestre de jiu-jitsu Sylvio da Matta Behring aponta que a TRT confere vantagens pouco consideradas por quem não vive o esporte de dentro:
– O uso de qualquer recurso que venha a desequilibrar um combate pode ser prejudicial aos dois (competidores) em vários aspectos. O mais perigoso é o psicológico, pois o lutador “limpo” já sabe que entra em desvantagem. Qualquer alternativa que venha colocar algum limite nessa bagunça é muito bem-vinda. Sem testes e punições, estamos condenando algumas gerações.
Por outro lado, Chael Sonnen sugere que pode morrer sem TRT, água benta que faria do peso-médio um melhor vizinho, marido e até dono de cachorro. A “exceção para uso terapêutico” vinha sendo concedida a quem demonstrasse deficiência na produção de testosterona. Sonnen e Belfort sofreriam de hipogonadismo, diminuição da atividade dos testículos. Por isso a TRT é uma terapia de reposição. Antes de desigualar, a ideia seria nivelar a gangorra do esporte. Diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), o médico Alexandre Hohl vê o banimento como uma “solução burra”:
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– Para evitar o doping, eles simplesmente dizem que não pode usar absolutamente nada. Se os teus níves de testosterona estão baixos, o tratamento vai te deixar abaixo, acima ou no meio do caminho? Qual é a dificuldade em examinar se os atletas estão no meio do caminho?
Grosso modo, são dois grupos de causas que podem dar origem ao hipogonadismo: ou o problema está na cabeça ou a coisa é mais embaixo (veja infográfico). Para além de causas congênitas, andropausa e traumas, o abuso de anabolizantes é o gatilho mais comum. Banir a TRT funcionaria, então, como uma punição retroativa, excluindo do esporte quem tomou bomba no passado.

Infográfico: Henrique Tramontina / Arte ZH
– O que se diz é que alguns atletas usaram tanto anabolizantes que o testículo não trabalha mais. Então “bem feito” para eles? Não é assim que funciona. Uma pessoa com hipogonadismo não terá qualidade de vida se não repuser a testosterona. Aumenta o risco de diabetes, criam-se depósitos de gordura, a questão sexual piora sobremaneira. Podendo ou não lutar, é um cara que vai ficar doente, sem tratamento. Existe a capacidade de diagnosticar quem é doente e quem não é – reitera Hohl.
Ao voltar arsenal contra a TRT, a comunidade do MMA, além de enquadrar o hipogonadismo como condição adquirida via anabolizantes, também ergue suspeita quanto à capacidade da NSAC, “guru” das demais comissões atléticas, de identificar quem é doente e quem não é.
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É fácil burlar?
O ex-campeão dos meio-médios Georges Saint-Pierre acaba de anunciar um hiato na carreira, entre os motivos a inconformidade com a política antidoping do UFC.
O canadense é uma das vozes mais ativas do esporte a se pronunciar a favor de testes-surpresa, como recomenda a Agência Mundial Antidoping, liderada pelo Comitê Olímpico Internacional. Assim, não há como saber quando alguém vai bater à porta anunciando um exame, em contraste ao sistema em vigor, que permitiria ao lutador criar “ciclos” prevendo a limpeza do organismo na data dos testes. O médico Alexandre Hohl concorda com os testes randômicos, mas observa que coletar amostras no dia da luta soluciona boa parte dos problemas, já que chegar limpo para o combate após se entupir de elixires durante o treinamento seria desvantajoso para a performance.
Outro alvo de reclamações é o próprio teste, que seria pouco rigoroso. Em fóruns de fãs na internet, é comum a alegação de que bastaria injetar epitestosterona para “mascarar” o exame T/E. Ocorre que epitestosterona não é coisa que se compre em loja, então esse dedo em riste pode baixar. Ainda assim, o método T/E dá margem para desculpas nebulosas. Flagrados com muito mais T do que E, o ciclista Floyd Landis e o lutador Alistair Overeem colocaram a culpa não no excesso de T, mas na carência de E. Somente um teste de isótopos de carbono foi capaz de comprovar que Landis estava mesmo dopado ao vencer a Tour de France de 2006.
Aplicado pela Associação Voluntária Antidoping (VADA, na sigla em inglês) e considerado o mais rigoroso para esportes de combate, o teste de isótopos de carbono é o que Saint-Pierre quer ver no UFC. Críticos buscando “livrar o boxe de qualquer suspeita” também defendem a adoção do método VADA pela modalidade. Organização independente, a VADA estaria blindada contra as pressões e os interesses de cartolas e seus bolsos gordos de panos quentes para quando aquele superstar lucrativo for apanhado no doping.
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O teste-surpresa de Belfort não teve resultado divulgado, mas pode ter pingado a gota d?água que as comissões atléticas esperavam para banir a TRT, embora sem alterar o sistema de testes. Se uma rotina de exames rigorosa possibilitaria identificar casos em que a TRT é usada corretamente, ao menos o impacto mais imediato do banimento já preserva a integridade orgânica do esporte. A revanche brasileira contra Weidman, marcada para 24 de maio, ficou a cargo do ex-campeão dos meio-pesados Lyoto Machida, carateca famoso por aderir a uma dieta nada sintética. Toda manhã, Machida acorda, vai ao banheiro, mija em um copo e bebe a própria urina.

Infográfico: Henrique Tramontina / Arte ZH. Estudos indicam que 5% dos atletas pode chegar a produzir, naturalmente, 3,71 vezes mais testosterona do que epitestosterona. Um grupo ainda menor, com 1% dos esportistas com os maiores índices, registra um T/E de até 5,25:1. Esses números servem de referência para a elaboração de testes mais ou menos rigorosos.
Infográfico: Henrique Tramontina / Arte ZH