Entidades ligadas ao trânsito e especialistas do setor encaram as mudanças na legislação sugeridas pelo governo federal como avanços em algumas partes e preocupações em outras. A proposta foi apresentada ao Congresso Nacional em forma de projeto de lei pelo próprio presidente Jair Bolsonaro na terça-feira e tem como principais medidas o aumento da validade da CNH e do limite anual de pontos para motoristas, a retirada da multa para quem não usar cadeirinha para crianças e o fim do exame toxicológico para motoristas. Em SC, por exemplo, mais de 340 condutores com excesso de pontos na carteira não seriam suspensos se a proposta já estivesse em vigor.
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Algumas alterações figuram entre as mais polêmicas e têm opiniões comuns entre especialistas consultados pela reportagem. É o caso da proposta para o fim da multa para quem deixar de transportar crianças corretamente no banco traseiro, motivo de uma série de posicionamentos contrários. Nos 10 anos em que está em vigor, a exigência da cadeirinha ajudou a reduzir o número de mortes e de acidentes com vítimas envolvendo crianças. Segundo dados da seguradora responsável pelo seguro DPVAT, o número de indenizações por morte de crianças de zero a sete anos caiu 74% em Santa Catarina.
Foram 572 indenizações em 2008 contra 148 em 2018 no Estado. No Brasil, também houve redução, mas de 60% – foram 1,7 mil indenizações por morte de crianças até 7 anos em 2008, contra 680 no último ano.
Entre indenizações por morte referentes apenas a crianças que eram passageiras do carro, o número caiu de 274 para 60 em 10 anos (queda de 78%).
Na nota explicativa do projeto, o governo defende que a retirada da multa buscaria evitar “exageros punitivos”. A contribuição na redução de casos de crianças feridas e mortas é um dos argumentos mais repetidos.
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– Não se pode brincar com a vida humana. A criança tem que estar no banco de trás. O pai que não faz isso não pode ser advertido, ele tem que ser punido porque está colocando em risco um ser humano – defende o ex-diretor do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), José Roberto de Souza Dias.
A estrutura do Detran nos Estados é apontada por especialistas como uma dificuldade para acompanhar as pontuações. No entanto, segundo o Detran-SC, atualmente 35,4 mil condutores do Estado têm impedimentos de suspensão no cadastro. Conforme o órgão, considerando apenas infrações cometidas em 2019, 347 infratores têm de 20 a 40 pontos e, se a regra proposta no projeto estivesse em vigor, não sofreria suspensão.
Aumento de pontos e de validade da CNH é bem avaliado

Outros assuntos também são quase unanimidades entre os especialistas, mas nesse caso com posição favorável às mudanças propostas por Bolsonaro. É o caso do aumento da validade da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de cinco para 10 anos para motoristas e da ampliação do limite de pontos que os condutores podem atingir em um ano, de 20 para 40. O governo defende a mudança porque atualmente seria “cada dia mais comum na conjuntura brasileira” e, no caso de motoristas profissionais, prejudicaria o exercício da profissão.
– Considero razoável. Hoje, dois terços das multas são de cinco a sete pontos. Vinte pontos é uma numeração baixa que qualquer pessoa está sujeita a ter. O ideal seria que ficasse em 30 pontos, mas 40 está de bom tamanho – avalia o presidente do Movimento Nacional de Educação no Trânsito (Monatran), Roberto Bentes de Sá.
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Exame toxicológico é alvo de polêmica
A estrutura do Detran nos Estados é apontada por especialistas como uma dificuldade para acompanhar as pontuações. No entanto, segundo o Detran-SC, atualmente 35,4 mil condutores do Estado têm impedimentos de suspensão no cadastro. Conforme o órgão, considerando apenas infrações cometidas em 2019, 347 infratores têm de 20 a 40 pontos e, se a regra proposta no projeto estivesse em vigor, não sofreria suspensão.
Outro ponto que divide opiniões é o exame toxicológico, que não será mais cobrado a motoristas das categorias C, D e E para emissão ou renovação da CNH – apenas profissionais contratados por empresas ainda devem ter a exigência deste exame na contratação e demissão, por exigência da lei trabalhista.
Embora a proposta cause preocupações de alguns especialistas, para entidades que representam profissionais, é considerada positiva. O argumento é que hoje seria um tratamento dado apenas a esses condutores, além de representar um custo a mais. Há crítica ao fato de que não seria a forma mais eficiente de evitar motoristas sob uso de substâncias entorpecentes.
A Polícia Militar Rodoviária (PMRv), a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e o Detran-SC foram procurados pela reportagem, mas não quiseram comentar as mudanças propostas no projeto de lei.
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ALTERAÇÕES EM ANÁLISE
Confira o que o governo federal quer mudar na legislação de trânsito e como especialistas catarinenses reagem a cada proposta:
Assento para crianças
COMO É HOJE
O CTB não trata do uso de cadeirinhas para crianças, mas uma resolução do Contran prevê a obrigatoriedade. O CTB, no entanto, estabelece que crianças com idade inferior a 10 anos devem ser transportadas nos bancos traseiros. O descumprimento é considerado infração gravíssima, com multa e retenção do veículo.
O QUE O PROJETO DE LEI PROPÕE
Texto traz regras para o uso das cadeirinhas. Ficam obrigatórias para menores de até sete anos e meio; até os 10 anos, precisam ficar no banco de trás. Eventuais advertências ocorreriam apenas por escrito.
O equipamento no mundo inteiro é comprovadamente eficiente. O ECA prevê que é obrigação de família, sociedade em geral e poder público resguardar a integridade física e a vida das crianças. Não parece que as medidas venham nesse sentido. Enio Gentil Vieira Júnior, presidente da Comissão da Criança e Adolescente da OAB-SC
Sou contra essa ideia (da retirada da multa). Não se pode tirar essa responsabilidade dos pais. Se não tiver a obrigação, a mãe vai sentar na frente, colocar o filho no colo e, em acidentes, ele será primeiro a receber o impacto. Cabe agora ao Congresso aprimorar o projeto. Roberto Bentes de Sá, presidente do Movimento Nacional de Educação no Trânsito
Bicicletas e patinetes motorizadas
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COMO É HOJE
O artigo 134 do CTB, referente ao licenciamento, não cita bicicletas ou veículos motorizados.
O QUE O PROJETO DE LEI PROPÕE
A proposta passa a mencionar bicicletas e equipamentos motorizados, como as patinetes elétricas, e os coloca como veículos “não sujeitos a registro, licenciamento e emplacamento para circulação nas vias” – que poderão ser especificados pelo Contran.
"O projeto leva a competência de emplacar para o Contran. É um veículo que precisa de capacitação do usuário, tem que limitar idade mínima, delimitar locais. É um veículo delicado, doméstico, a gente tira como exemplo as bicicletas elétricas. É um momento novo e ainda é preciso avançar. Fábio Campos, especialista em trânsito, coordenador do movimento Maio Amarelo e presidente da Associação Catarinense do Trânsito
"No meu entender, o importante é que as empresas de patinetes elétricas não podem operar antes de a atividade ser regulamentada, porque as consequências aparecem nos acidentes. As bicicletas elétricas também precisam de regulamentação, pelo mesmo motivo: causam um número enorme de acidentes. Rodolfo Alberto Rizzotto, coordenador do SOS Estradas e um dos fundadores da ONG Trânsito Amigo
Validade de CNH e habilitação
COMO É HOJE
Os motoristas até 65 anos de idade devem realizar os exames para renovação da CNH a cada cinco anos. Para os motoristas com mais de 65, a renovação é a cada três anos.
O QUE O PROJETO PROPÕE
A renovação da CNH passaria a ser feita a cada 10 anos para condutores de até 65 anos e a cada cinco anos para motoristas a partir dos 65 anos. As CNHs já expedidas teriam o prazo de validade automaticamente prorrogado.
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"Não vejo impacto de segurança no trânsito sobre essa mudança. É mais a parte administrativa, que é renovar o exame médico. O exame, como é feito hoje, fazendo daqui a 10 anos, não identifica um problema de saúde nas pessoas. Não vejo nada que interfira na segurança. Fábio Campos, especialista em trânsito, coordenador do movimento Maio Amarelo e presidente da Associação Catarinense do Trânsito
"Com relação a estender a validade da Carteira Nacional de Habilitação, sou a favor, inclusive com a possibilidade de se fazer exames médicos em outros locais. Ou seja, não precisa fazer só no Cartório de Medicina de Tráfego no Brasil. Rodolfo Alberto Rizzotto, coordenador do SOS Estradas e um dos fundadores da ONG Trânsito Amigo
Faróis baixos de dia

COMO É HOJE
Condutores precisam usar farol baixo durante o dia em túneis com iluminação pública e rodovias.
O QUE O PROJETO PROPÕE
É mantida a obrigatoriedade do uso de farol baixo de dia apenas em rodovias de pista simples, ou ainda em túneis, sob chuva, neblina ou cerração. Condutor que não usar luz baixa de dia só será multado “no caso de o proprietário (do veículo) ser pessoa jurídica e não haver identificação do condutor”.
"Sou a favor da suspensão (da exigência) durante o dia. Muita gente esquece. Principalmente quem mora em Florianópolis porque tem rodovias estaduais dentro do município, ligando bairros. Você às vezes se despercebe, é um ato normal. Poderia ser obrigado em rodovia de mão dupla. Roberto Bentes de Sá, presidente do Movimento Nacional de Educação no Trânsito
"É uma insensatez (a mudança). Na medida em que você tem o farol do carro ligado durante o dia, é visto perfeitamente. Os faróis ligados reduzem acidentes. Por isso, vários estados dos EUA usam o procedimento. Faltou algum técnico para dizer que se liga o farol porque a máxima do trânsito é ver e ser visto. José Roberto de Souza Dias, ex-diretor do Denatran e um dos subscritores do CTB
Exame toxicológico
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COMO É HOJE
O CTB determina que condutores de caminhões (categoria C), ônibus ou micro-ônibus (D) e veículos com reboques acoplados (E) sejam submetidos a exames toxicológicos para habilitação e renovação da CNH. O objetivo é identificar substâncias psicoativas que possam comprometer a capacidade de direção.
O QUE O PROJETO PROPÕE
Exclui o artigo anterior, ou seja, o exame não seria mais obrigatório para esses motoristas.
"Dezenas de milhões de brasileiros são transportados todos os dias por motoristas que têm que fazer o exame toxicológico. Esse exame fez com que mais de 2 milhões de motoristas de categoria C, D e E não renovassem a carteira, na maioria, porque não passariam. Com o projeto, muitas pessoas serão conduzidas sem segurança. Rodolfo Alberto Rizzotto, coordenador do SOS Estradas e fundador da ONG Trânsito Amigo
"Entendo que o exame toxicológico, se devia existir, teria que ser para todos. Por que só para caminhoneiros? Ou é para todos ou para ninguém. Sem dúvida a gente aprova. O que precisa é fiscalização severa nas rodovias. Francisco Biazotto, presidente do Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens de SC (Sindicam-SC) e da Federação dos Caminhoneiros Autônomos de SC (Fecam-SC)
Limite dos pontos na carteira
COMO É HOJE
Os condutores que somarem 20 pontos na CNH, no período de um ano, têm a carteira suspensa.
O QUE O PROJETO DE LEI PROPÕE
Aumenta de 20 para 40 pontos o limite que resultará na suspensão da CNH.
"Vejo como positivo (o aumento do limite para a suspensão). Os 20 pontos, você atinge com três multas gravíssimas. Não vejo sentido de somar a pontuação dos motoristas em situações como parar em um lugar proibido. Acho que o importante é punir aquilo que coloca em risco a vida humana. José Roberto de Souza Dias, ex-diretor do Denatran e um dos subscritores do Código de Trânsito Brasileiro (CTB)
"Já havia um projeto que falava em aumentar de 20 para 30 pontos e não progrediu. Dificilmente vai passar. Acredito que não exerce modificação no comportamento do condutor. Até porque a maioria dos Estados não pune adequadamente porque demora, e as infrações acabam prescrevendo. Em Santa Catarina, não vai ter diferença, porque não se está punindo. Ilson Krieger, presidente da Comissão de Direito do Trânsito da OAB-SC